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6.1 Arte Sequencial

7.5. CAPÍTULO 3: AQUELE QUE VIU O DESCONHECIDO

7.5.2 SIDURI E URSHANAB

Os personagens que encontra após passar o Jardim dos Deuses são, como foi descrito, nem “mortais nem numes”, não são sujeitos de culto, não são figuras de templos, são ferramentas literárias. Ainda que estejam no “além-mundo”, são extremamente familiares: representam profissões e paradigmas da sociedade em questão (Mesopotâmia). A primeira que encontra: Siduri, que em hurrita, significa “moça jovem” (HARRIS, 2003, p.123), tem uma participação muito mais relevante na versão Babilônica Antiga, que precede a famosa versão standard (atribuída à Sin-leqe- uninni). Entre uma leitura rápida, percebe-se sua função e a de Urshanabi meramente como ouvintes de Gilgamesh e suas objeções à vida comum.

Não surpreendentemente, de uma versão à outra suas falas são trocadas, repetidas e ainda sim permanecem compatíveis, consistem mais uma vez em repetição formulística (a função de cada um se faz diferente pelos detalhes). No entanto, na versão de Sandars, por conta de ser uma tradução poética compilando as duas referências (ou mais, incluindo material hitita e hurrita), se tornam personagens mais relacionáveis. Siduri é identificada como uma moça da taverna, numa função relacionada à bebida – cerveja e vinho (SANDARS, 1972, p.56). Argumenta-se que figura como uma classe independente, pois assim ocorria a estrutura de tal função, a sabitu – taberneira (HARRIS, 2003, p.228). Ainda que aqui vale notar que ocorre a 'inversão' da profissão em como se dá na grande terra, e nesse espaço: a profissão da taberneira estava sob o domínio de Ninkasi (ASHER-GREVE, 2013, p.184); e a taverna, de Ishtar (HARRIS, 2003, p.122). Harris compara a inversão com o papel que a harimtu tem sob Enkidu: enquanto a prostituta que se despe toma o papel materno sob ele; a jovem moça da taverna que se veste (com um véu) é a que ouve as palavras (ouvir a história configura uma relação, intimidade, hospedagem) do Gilgamesh que lamenta, lhe dirigindo palavras de confiança. Revelar seu rosto é da fórmula matrimonial, significa alcançar intimidade (GREENGUS, 1966, p.72). A inversão ocorreu na relação da harimtu como mãe, aqui toma a forma da taberneira, inverso nesse espaço em relação ao da grande terra (nota-se inclusive pela vestimenta – descreve-se como coberta até com um véu; certamente não era assim no contexto sumério, ou babilônico, da sabitu). Ela é mais próxima da “modesta esposa do período Assírio” (HARRIS, 2003).

As palavras que se seguem tem um significado complexo pela ordem que apresenta (há uma relação de duplicidade de problema-solução), na adaptação dediquei menos tempo e exposição em nuance do discurso, e repeti seu significado na expressão e desapontamento dela (pág. 113 da adaptação). Relacionado ao contexto da adaptação, menciono nada à respeito de Utnapishtim (ou o Longínquo, enquanto sujeito) até que Gilgamesh se distancie de Siduri, até que se parta da taverna (representando uma classe, um estilo de vida da terra da qual partiu). Valorizo o contexto em que se dá nessa versão em relação à tradução de Sandars, justificando uma linearidade histórica das quais procedem (o mais original possível). Abordagem que se faz mais concisa à explicação: “inicialmente, Gilgamesh não estava buscando Utnapishtim. Ele vagava futilmente, buscando mas não encontrando sua própria perda de sentido na vida (…) talvez tivesse pouca esperança de alívio de sua dor existencial (psicológica). Ele não tinha direções até alcançar Siduri” (ABUSCH, 1993, p.55). Ele reconta à ela a história de sua vida ao lado de Enkidu e da morte de seu companheiro. No contexto da busca internalizada, ele está em constante lamentação, e se põe em busca não de renovação, mas de fuga, escape da realidade (busca a vida, no contexto moderno, um “sentido para”). Na estrutura de sua fala, Gilgamesh apresenta primeiro a morte de seu companheiro, e refere-se como teme (a morte) agora, o elemento “agora que vi tua face” é ambíguo. Na adaptação faço valer tanto quanto referenciando à morte tanto quanto à Siduri.

Siduri lhe responde em uma ordem inversa, começando com a colocação de que nunca encontrará imortalidade, pois isso é reservado aos deuses – como lhe deixou claro Shamash – para a seguir, listar os benefícios da vida, mais uma vez assim como Shamash persuadiu Enkidu para aliviar o fado de sua morte: no entanto diferentemente dele, o fez ao lembrar-lhe das competências da vida mortal, banhar-te, se vestir, etc. (HARRIS, 2003, p.124). Cada verso mencionado tem um paralelo com a condição atual de Gilgamesh. Em suma, lhe tocava de volta para a realidade, como teria feito Shamash. Na adaptação, inverti a ordem de sua resposta e apresentei a colocação de vida (imortal) enquanto privilégio dos deuses em contraste com a morte no fim de sua resposta (pág. 113 da adaptação). Nesse sentido, ocultei um significado ambíguo de “agora que vi tua face”, que empreita um campo maior de significado, ao apresentar que Gilgamesh buscava um possível pedido matrimonial (vide a tradição do véu).

Se Utnapishtim como personagem tivesse sido revelado (como se faz na versão standard), poderíamos interpretar que Gilgamesh estivesse buscando por ele quando passou pela adega, no entanto, esse não é o caso – não é o significado original, sequer o que a passagem diz (ABUSCH, 1993, p.5). Gilgamesh não busca a vida eterna (não a concebe), mas ainda sim foge da morte (deve haver outra morte). Ele sabe que inclusive deuses (o touro) podem morrer (aqui colocando o significado “deuses” com uma amplitude muito maior do que quando começa a história, que tratava viver e morrer quantitativamente; não se compara deuses 'fenômenos naturais' com os deuses que decretam, por exemplo), e busca escapar da morte não para ter a longevidade, mas sim para viver como um deus: e se morrer, também terá sido como um (ibid, 1986, p.143). Foge da realidade (a imortalidade não passa de fantasia), negando a morte – ao deixar sem resolver as perdas que tivera em vida, e o destino de um homem (destino, enquanto fado, trata-se de um decreto). Viver no mundo da jovem moça significa viver sem viver, morrer sem morrer; esse espaço liminar atravessa o conceito nume-divino (como é de sua fama agora, “um terço mortal”), e é Siduri quem deve relembrá-lo de sua posição e devolvê-lo ao seu mundo. Tanto a morte e a divindade existem num plano absoluto e não-humano; ao humano, tanto os mortos quanto os imortais representam a morte (afinal, Ereshkigal, Kur e Nergal são seus representantes – são imortais, também). A união homem e imortal trata-se de um impasse, há uma possibilidade de esterilidade e morte (ibid, 1993, p.56). É um sinal de improdutividade – “aquele que deita-se com uma deusa imortal perde para sempre sua

força e vigor” (SANDARS, 1972, p.51), cujo desfecho não vai desempenhar papel nem em forças criativas ou destrutivas, que determinam o mundo. No contexto da adaptação, onde Gilgamesh alterou esse funcionamento, Siduri o toca de sua taverna exatamente para que retorne a desempenhar seu papel, seu destino (dando a entender que ela faz o seu – cerveja e vinho – e logo é cúmplice do que Shamash pratica enquanto um ordenador do universo).

Abusch argumenta a presença desse suposto “pedido de união” e aqui cabe como mais um contraste, inversão ao que se dera no decorrer da história: pedisse uma união com Siduri, faria exatamente o papel de Ishtar (no capítulo 2), ela, negando-o (e tocando de volta para vida mortal, abençoando-o com uma cônjuge mortal), faria o papel dele. Omito essa percepção na adaptação, a relação de vê-la sob o véu enquanto uma figura de linguagem sobre a intimidade alcançada (pelo ouvir de sua história) é ecoada até na Odisseia através de Calipso, pelo que se atesta, inclusive, na etimologia – καλύπτω “se cobrir” (ABUSCH, 1993, p.6), enquanto na adaptação apenas direciono Gilgamesh até uma resposta definitiva, sem permear essa questão de impossibilidade de união mortal e divina. Para essa omissão, justifico que (na adaptação) Gilgamesh não perseguia isso. Admitindo que sabia que tal união era possível (através de sua procedência – Ninsun sua mãe é uma deusa), não buscava passar mais tempo na taverna, não buscava mais relações, de qualquer maneira. Diferente dessa versão, Gilgamesh não é recusado por Siduri pois ele sequer propõe a ela. Ela lamenta-se que em sua ansiedade e teimosia, o herói parte para longe tanto de Uruk (onde tem de desempenhar o papel que Shamash dedicou à ele), quanto mais de sua margem (então embarcando no que julga ser fútil). A menção “sempre à margem” é uma ferramenta autoral para ecoar a maldição de Enkidu sobre a harimtu, que também se aplica à sabitu enquanto classe. Shamhat, Ishtar e Siduri possuem papéis que às vezes se encontram ao longo do épico, mas não busco explorá-los ao fundo por brevidade e linearidade na narrativa.

Para questão de síntese, reduzo e reorganizo as falas dos personagens, e direciono a abordagem de Gilgamesh como uma “teimosia” em se recordar da morte ('ele ainda está obcecado com a morte'), enquanto configura-se uma duplicidade problema-solução com a resposta de Siduri: ela lhe deseja aconselhar, para seu bem- estar, mas não deseja que encontre uma vida com ela (ela é uma classe independente), nega-lhe estadia.

É o momento que tem de deixar de lado a memória e ausência do companheiro masculino (enquanto jovem guerreiro), ao passo que não pode buscar uma relação com uma nume feminina (agora que estava exausto): seu destino está traçado, e se faz na ordem de sua resposta – Siduri o aconselha a uma vida mortal, com sua vida se expandindo pela de sua progênie com mulher mortal. Se foi a harimtu mortal que introduziu Enkidu à vida na cidade, onde teve de aprender e aceitar o rei, a sabitu divinizada (“vive entre os deuses”) é quem deve reintroduzir o rei, agora ausente em viagem, para onde lhe cabe – a relação da normalidade, a busca por esposa e criança, afinal, somente pela progênie teria 'imortalidade'. Essa era a única forma de imortalidade que poderia alcançar (e no contexto, incluo menção à Ninsun como o tendo educado a prezar pelos deuses, pág.113 do quadrinho). Apesar de bem- intencionada e empática, Siduri não o convence, ou não dissuade seu ímpeto teimoso, que por um jogo de palavras concebe a solução não de alcançar outra morte mas outra vida.

No contexto da versão Babilônica, Gilgamesh busca vida, não necessariamente, imortal. Siduri é quem explica que vida ele terá, mas nenhuma vida ou amor escapa à morte. Não é por causa dessa inescapabilidade, no entanto, que ele deveria permitir que o pesadume da morte lhe impedisse de viver enquanto vivo, mortal (como Shamash comenta à respeito de seus hábitos – o da vida naquele tempo, como ancestral que se porta como os mortos, como a vida desolada, em miséria e abandono). Ao mencionar que ele viu a morte, ela indiretamente abre o espaço para que ele interprete que há quem viu a vida. Etimologicamente, esse descrito é Utnapishtim, “(Aquele) Que Viu a Vida” (ABUSCH, 1993, p.11). Antes de Siduri, Gilgamesh vagava, após esse episódio, ele começou a perseguir.

Ele segue o seguinte raciocínio: Enkidu teve esposas e filhos, porém pereceu. Ninsun era imortal, teve o filho porém não viveu junto à Lugalbanda (que aqui está numa classe contraditória – ancestral: um deus, porém morto). Configura-se que não somente é o primeiro rei cujo conselheiro não é divino, assim também sua consorte não poderia ser divina, contrariando a relação aludida de Lugabanda e Ninsun (supondo que foram um casal e criaram Gilgamesh). Esse tipo de argumento necessitaria de uma complexa referência, no entanto opto por omitir isso, tornando-se apenas interpretativo o decorrer do tempo enquanto plano de fundo dessa alteração na configuração da côrte do rei divino e de isso ser um plano dos deuses. Seu destino,

agora, é o do barqueiro. Sem demonstrar intenção dessa “proposta de casamento” no estudo de Abusch, esboço linearidade no roteiro da versão standard, mas ainda preservando o significado da versão Babilônica Antiga (de que até aí não buscava Utnapishtim). Reitero que a menção ao banhar-se, vestir roupas (que para nós soa banal) e às crianças e esposa “tomarem-lhe a mão” não são mero artifício, cumprem a função de reintroduzi-lo à vida normal. O encontro quase instantâneo com ela após Shamash indica apenas que algum tempo passou. Agora, ao encontrar Urshanabi, se encontrará com o tempo na forma do trabalho, eis que começa involuntariamente sua obra, a noção de imortalidade não mais pela progênie, mas por obras que durem. Esse, afinal, é o caminho que julga ser pelo qual Lugalbanda passou. Indicação disso está na narração de Urshanabi logo que se apresenta: “quem passa por Siduri...”, aludindo que Gilgamesh não é o primeiro ou único a passar por esse caminho.

A continuidade ancestral-progênie é paralela ao contexto de medir o tempo enquanto preservar de leis e obras (não somente 'domínio', mas também a preocupação de Shamash), a mensagem de Siduri era à favor de assegurar isso, à um rei se desejava “uma vida de muitos dias, a satisfação em crescer e amadurecer em saúde”, ao mesmo passo que Gilgamesh aqui personifica um sumério em crescimento, e comedia-se pelo “desprezo e antipatia” que quantitativamente (ou em frequência) “se relaciona com sua mortalidade”. Ao sumério (cabeça preta), Siduri lhe transmite um valor acadiano, impregnado no próprio vocabulário (desse povo) onde se “atestam a centralidade da família e o apelo à sua continuidade” (HARRIS, 2003, p.31; 5). Para sanar a difusão de ambos os valores para o personagem, assim “como em outras sociedades antigas, idade cronológica era irrelevante” (ibid, 2003, p.55), supõe que ao mesmo tempo que alcançara a glória equiparável a de Lugalbanda no segundo capítulo (derrotando Humbaba no anonimato, e Gugalanna em público), ainda se exaustava por tentar exceder o dote que Shamash lhe concedeu. Não o faz, mas não por desprezo ou em receio do deus: não se isenta, no entanto, de questioná-lo, mesmo agora sabendo que não terá as respostas que procura. Recusou entender por Shamash, um nume; por Siduri, 'favorecida' pelos numes (ou uma própria, em qualidade sujeita e inferior aos que decretam), e estendeu sua busca ao Longínquo (agora sim, como personagem, um ancestral ante-diluviano, que se recorda em história).

Se na adaptação Siduri está relacionada aos conceitos Babilônicos e Assírios (ambos sucessores de Uruk) e com os ofícios presididos por Ishtar; Urshanabi está associado ao que precede o período de Uruk: Eridu, Ubaid e Dilmun, beirando a Pré- História. Sua função está associada à Enki-Ea e sua côrte, os apkallu organizadores do E-Absu. Seu encontro coloca Gilgamesh na posição do período de Uruk e no Dinástico Inicial, no conceito já discorrido das colônias e empórios distantes. Exceto que seu trabalho não se faz em busca de jóias, cedros, ou numa questão material – aqui ele não é mais o rei que comanda, ele é o trabalhador sujeito, o faz de maneira ignorante. “Sua rejeição ao mundo e aos privilégios da cultura são uma rejeição da própria morte” (KIRK, 1973, p.149-151), encontra-se no “limbo indiferente, pré- hierárquico de(ntro de) nós mesmos” (NORTWICK, 1992, p.27), aqui externalizado na rápida aparência do “último cais”.

Siduri pode negar uma proposta à margem, ela está a espera de visitantes. Urshanabi exige o trabalho de quem cruzar a margem. Ironicamente, serve ao morador do outro lado, Utnapishtim. Eles mesmos possuem regras em Dilmun “foz dos rios”, que senão refletem aos da própria Grande Terra (e na página 129 da adaptação, Gilgamesh julga ser um absurdo – pela ironia de que ele, rei, não sentia o peso do que decretava em Uruk e só sente agora), refletindo o familiar no que é distante. A questão de trabalho e ofício se faz presente mais uma vez em relação ao da categorização da regra e penas em casuística – o 'absurdo' aqui se faz pelo fato de que o sujeito do julgamento ou pena (Gilgamesh defendendo Urshanabi do exílio) não reconhece algum dos fatores que se faz valer a lei. Gilgamesh não é onisciente como Shamash,

Figura 71: "Último Cais" (obra do autor);

não vê como o Sol, então não percebe como as coisas ali, tal como na terra que vive, também possuem um preço, causam uma consequência. Uso disso para introduzir uma forma primitiva de consequencialismo onde deixa a realidade de juiz de Shamash próxima a do adivinho asipu, cuja justiça se faz pelo cálculo de riscos e consequências, e não em virtude de mérito ou das intenções individuais. Gilgamesh podia fazer o que ninguém fez, mas isso não lhe renderia nada que não tivesse sido previsto. Shamash é quem lembra o mortal de que tudo tem seu valor, mas também os coloca em ordem. Às vezes, o trabalho não rende nada de extraordinário: até para percebê-lo é necessário se dedicar às obras. E o rei tem de lembrar os súditos a fazê- lo. Para Urshanabi, Gilgamesh lança a mesma fórmula de lamentação que lançou à Siduri, exceto que não adereça “agora que vi tua face”, substituindo-a com um pedido de “direção”, “para onde”. Urshanabi é apresentado na adaptação como ser irônico, sarcástico, e de aparência meio-humana. O represento de maneira que nele se misturam a aparência de ancião e recém-nascido, mas não tem a antipatia do ancião nem o sofrimento do crescimento (do jovem), comede seu duro ofício (que se equipara a qualquer ser anônimo que teria organizado o espaço abandonado, desolado) com colocações irônicas e sarcásticas, nas quais ele mesmo projeta o próprio sucesso ou fracasso, em auto-congratulações que narra ao leitor. Ele é o narrador, no prólogo ele coloca em andamento a noção do viajante, cita como o mestre dos barcos o seu ofício, um dos mais importantes nesse pântano – a transformação do ambiente, a travessia e a logística dentro do transporte de recursos vitais – o junco, os cestos, os peixes, as sementes, etc. Das pedras preciosas ao grão, todos tem o mesmo valor aqui.

Figura 72: Embarcações sumérias. Fonte: Penn Museum e

O “rio grande” que passam, no entanto, não recebe tais presentes. Tratam-se das águas da morte, diferenciam-se do da água da vida. Nesse contexto, a água doce, fértil, é Absu, é o sêmen de Enki-Ea que fertiliza a terra58, a morte equivale as águas

estéreis de Tiamat. Por liberdade poética, atribuindo à ironia de Urshanabi, deturpo o significado dessas coordenadas, introduzindo conhecimento estritamente científico e moderno nas colocações de Urshanabi (pág.117 do quadrinho; aludindo a conceitos de gravidade e rotação da terra) ainda que essencialistas na página anterior (tratando morte e vida como constituintes, substâncias), explicando de maneira fantasiosa a função das serpentes urnu. Esse conceito teve tradução difícil (em Sandars assim permanece, urnu), há considerações que tratam como estritamente metafórico e referente à uma técnica de travessia dos pântanos que se perdeu59.

A aparência do personagem foi sendo relatada de forma diferente ao longo dos anos, na tradição suméria60, é provavelmente um homem, na tradição Assíria já tem

aparência monstruosa. Aqui, o submundo de Kur e o Absu (poço subterrâneo, abismo, o vértice do mapa-mundi) se 'fundem', são indistinguíveis. Embora retratado como antecessor de Caronte, Urshanabi não é necessariamente o barqueiro do submundo, tampouco passam pelo mesmo destino de Enkidu – seguem apenas o caminho do Sol. Represento a travessia nesse mesmo conceito, onde existe água em todas as formas (mais uma vez apropriando o conceito científico moderno, da água podendo ser tanto líquida e gasosa), da substância de Ea e Enlil (o éter, ar, espírito). Embora admita, aqui, há a necessidade de considerar essas substâncias de forma elementar e essencial, atribuída sempre a dois numes diferentes.

Chegando ao Dilmun, Gilgamesh se impressiona com a aparência comum e honesta de Utnapishtim. À respeito de Dilmun, cita-se “(...) a ave da morte não lançava o grito da morte, o leão não devorava, o lob não lacerava a ovelha, a pomba não pranteava (...)” (tradução61 de SANDARS, 1972, p.59), embora o termo seja

empregado para um local próximo à Eridu (onde se atesta o culto à Enki), hoje identificado como o Bahrain. Responde à suas perguntas com diversas referências

58 Enki e a Ordem Mundial (tradução) – Universidadede Oxford, ETCSL – http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi- bin/etcsl.cgi?text=t.1.1.3

59 É possível que as “cobras urnu” sejam na verdade uma metáfora a cordas, e as pedras sejam manufaturadas e entrelaçadas, uma lançada da canoa ou embarcação para fora, possibilitando um manuseio por cima da água parada (TIGAY, 2002, p.64).

60 Aparece em Enlil e Ninlil, versos 117-142 – Universidade de Oxford, ETCSL (tradução)– http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.2.1#

61 À partir de uma tábua achada em Nippur, Enki e Ninhursag, versos 5-10. Tradução disponível em:

adicionais (Geshtu-E, na página 117 e Mammetum na página 119 do quadrinho; ambos são referência à tradição do Atrahasis acadiano) do qual o protagonista ignora (ele é sumério e supõe-se que desconhece essa tradição). Seu diálogo ocorre em teor filosófico, Utnapishtim prontamente coloca em função as tradições literárias em respeito à Sabedoria62, e enquanto a linguagem de Siduri era conciliatória, a do

ancestral, admite-se, “tem um tom pessimista” (SANDAR, 1972, p.59). Isto se faz pela sua própria experiência e percepção. Dá a entender que nessa região, não há reflexo do mundo da Grande Terra, apenas há o que se entende por ancestralidade. Ao narrar sobre o dilúvio, é necessário introduzir os próximos numes, que na adaptação coloco à par da prerrogativa de destruir e preservar a humanidade “num único momento”.