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5. CONTEXTUALIZANDO A OBRA

5.2 Das traduções

5.2.1 O Cuneiforme

A edição usada como texto-base a narrar os principais eventos do quadrinho (excluindo-se detalhes não mencionados, como aspectos da vida social em Uruk, trazida a luz por descobertas arqueológicas, ou o Enuma Elish Babilônico, bem posterior em relação a menção mais antiga de Gilgamesh) é uma tradução de N.K. Sandars, datando de 1960, revisada em 1972 e 1987, respectivamente. Aqui será muitas vezes referida como “material de referência” ou “versão original”, “versão de Sandars”. Antes dessa tradução, a autora nota a importância das traduções de R. Campbell Thompson (1930) e das referências adicionais de materiais sumérios traduzidos por Samuel Noah Kramer (tradutor de diversos materiais entre a década de 40 e 60, muitos deles utilizados nesse documento); versões mais atuais incluem o trabalho de Andrew R. George, com uma edição crítica de 2003. Devido a sequência em que os materiais “originais” se montavam, a possibilidade da tradução dos materiais ocorreu separadamente e necessitou de revisões ao longo do século XIX e XX. Um ponto de partida em comum para o processo foi o decifrar da “Inscrição de Dario” (em Behistun, atual Irã), um entalhe multilíngue contendo Persa, Babilônico e Elamita arcaicos. A partir daí se decifrou o cuneiforme (KRAMER, 1963, p.6). A efetiva importância da descoberta se deu pelo eventual achado de mais tábuas. Segundo a autora, a importância pública sobre o achado se deu “(...)vinte anos mais tarde (1872)”, pela publicação de George Smith, entitulada The Chaldean Accounts of The Great Flood.

Nesse contexto, a sua publicação era a tradução de uma versão incompleta da tábua XI. Assim, a epopeia não chega até nós numa forma separada da bíblia, e sim como um material a parte, julgando-se como pertencente da mesma civilização que Nimrod (suposto criador da torre de Babel) fazia parte, por isso o título The Chaldean Account of Genesis (SMITH, 1876), sequência de The Chaldean Account of the Great Flood de 1872. A primeira edição era senão uma tábua incompleta do épico, publicado sob a supervisão da Archaeological Biblical Society: como se fosse uma narrativa de eventos comuns entre as histórias, servindo de prova definitiva ou de factoide como adendo a escritura. Por mais que existam semelhanças no material narrativo, sejam nos

episódios da confusão das línguas ou no dilúvio, de onde temos o personagem Utnapishtim, o protótipo babilônico do Noé bíblico (CAMPBELL, 1949, p.171-172), entende-se pela reconstrução histórica que a única coisa em comum é o uso de ferramentas narrativas. Em todos os casos é pertinente reconstruir a ecologia dos achados de acordo com o estudo etno-linguístico e uma reconstrução socio-política apropriada. O seguinte trabalho não busca afirmar ou reconstruir essa ecologia, pois não se dedica como um tratado arqueológico; mas irá em todo caso apontá-la enquanto aparecer no enredo, seja através de um artefato representado na obra, ou como justificativa de alguma concordância para garantir o andamento da história. A datação cronológica atual evidencia que o Gilgamesh precede qualquer fragmento da bíblia hebraica, portanto as similitudes temáticas não se tratam de relatar um acontecimento em comum, mas sim de seus autores possuírem ferramentas narrativas em comum.

5.2.2 Arqueologia

Vale contextualizar a escola de arqueologia que figurava no período de sua des- ocultação, no fim do século 19, reiterada subliminarmente no título do estudo: o registro dos Caldeus sobre o Dilúvio, em tradução livre. Como a arqueologia ainda era fortemente baseada numa concepção de cronologia montada sob uma perspectiva bíblica, colocando evidências em serviço de reconstruir um período ou tempo que conecta-se com aqueles presentes no antigo testamento (Tanakh), onde arqueólogos, eram também estudiosos da bíblia, realizava-se escavações na Palestina para iluminar, decifrar, e nos seus “maiores excessos” provar a bíblia (DEVER, 1990). Emprega-se o termo “Arqueologia da Palestina” para distinguir as abordagens da arqueologia com as diferentes escolas desenvolvidas na medida que as descobertas foram acontecendo nos dois últimos séculos, se usa hoje “estudos Orientais” também com conotação política. É necessário buscar o contexto da obra como objeto de estudo e inclusive da arqueologia como ciência para projetar um dos objetivos do projeto: assegurar a renovação de fontes literárias. A arqueologia como estrutura científica serve para analisar um texto ou coletânea (ex: Bíblia) como objeto de pesquisa. Arqueologia é uma ciência no sentido moderno de conhecimento sistemático, de onde se buscam evidências materiais de civilizações antigas e tenta reconstruí-las, na medida do possível (através inclusive da arte), de maneira a demonstrar o ambiente e as organizações de uma ou mais épocas históricas (VILAR, 1969, p.672). A respeito de

conteúdos religiosos e filosóficos, como ciência o material concreto que descobertas providenciam variam de: locais de culto, objetos sagrados; e outros materiais, com conhecimento a respeito do que é referenciado nos textos religiosos, rituais, costumes e tradições. Mitologias (do grego μυθολογία ou estudo da narrativa) são usadas comumente como pistas de eventos e lugares que se tornam obscuros, sobrepostos, planos de fundo num processo reverso de “desmistificação” (BULTMANN, 1984, p.203). Exemplos notáveis como a Tróia homérica é material concretos da complexidade histórica acerca da construção da narrativa (mito). Entre preponentes dessa escola de arqueologia está William F. Albright (1891-1971), a cujo respeito é citado:

“Dos primórdios do que chamamos de arqueologia bíblica, talvez 150 anos atrás, estudiosos, em sua maioria estudiosos ocidentais, tentaram usar dados arqueológicos para “provarem” a Bíblia. E por um bom tempo pensaram que isso funcionava. William Albright, o grande pai de nossa disciplina, frequentemente discutia sobre a “revolução arqueológica”. Bem, a revolução veio, porém não como Albright pensou. A verdade em questão hoje é que a arqueologia levanta mais questões sobre a Bíblia hebraica e até o Novo Testamento do que nos traz respostas, e isso é muito perturbador para algumas pessoas.”

(DEVER, 2008)

Colocando em contraponto a metodologia do período de Albright com a arqueologia processual, ou nova arqueologia, metodologia que inclui processos tais como a reconstrução da ecologia dos artefatos encontrados, ao admitir que os objetivos da arqueologia são senão os mesmos que o da antropologia (WILLEY; PHILLIPS, 1958), referentes sobre a vida em volta dos objetos e artefatos e não a eles somente, argumenta-se que com a arqueologia em particular, somos capazes de chegar a “história atrás da história”. Ao mesmo tempo, ela “abrange a nossa visão ao suprir história política com histórias socio-econômicas e culturais” (DEVER, 1996). Esse debate de metodologias nos situa mais próximos do contexto em que o Épico foi trazido ao entendimento público num primeiro momento. Textos como o épico e a bíblia são artefatos. O tratamento diferenciado dessas narrativas distintas é senão resquício da maneira como foi levado o estudo dos achados arqueológicos durante um determinado período histórico, segundo metodologias de uma escola específica (aqui referenciada em relação ao autor Albright). A preocupação da arqueologia contemporânea não é provar que os mitos são histórias verídicas, mas sim descobrir o mundo histórico na qual os

mitos, os livros da bíblia, se basearam e de qual maneira os adaptaram para dar a eles seu significado8. Paralelos e similitudes nas histórias podem ser traçados, desde a

confusão das línguas (no mito do Antigo Testamento no episódio de Nimrod, no mito Sumério através do deus Enki, o Ea Babilônico), um possível “Éden” (o local Dilmun na própria epopeia, mais uma vez referido em Campbell como um “protótipo” ou ensaio, que aqui admito como sendo uma colocação irresponsável) até ao dilúvio (Noé no Gênesis, e mais uma vez, Utnapishtim como é narrado na epopeia), mas todos estes eventos têm uma natureza mais ou menos episódica, interdependente. Tais “paralelos” serão endereçados individualmente no tópico referente ao enredo, como e quando se apresentarem.

5.2.3. Tradução Acadêmica ou Poética

A versão utilizada para o projeto, de Sandars, é definida pela autora como: “(...) não é uma nova tradução do original cuneiforme (...)”,e diferencia entre tradução “acadêmica” e “literária” (do qual sua obra de tradução faria parte desse segundo grupo), no primeiro caracteriza: “(...) esses textos são de difícil leitura, pois tendem a enfatizar, e não a mitigar, os defeitos e falhas do original”, aponta-lhes presença de lacunas e sua função como objeto de estudo de assiriologistas e estudantes da área, levando o texto a ter um “mau vernáculo”, e acrescenta “Este processo acadêmico fornece ao estudante e ao especialista aquilo que eles precisam, mas apresenta ao leitor comum uma página que mais se assemelha a um problema de palavras-cruzadas inacabado.” (SANDARS, 1972, p.75). Nesse sentido, a versão utilizada que emprega os principais acontecimentos do ciclo no quadrinho são baseadas numa versão poética, onde lacunas são ocultadas e certos termos específicos são traduzidos para a familiaridade do leitor comum. Na adaptação, esses significados específicos re- aparecem ou são omissos: a cada caso, se justificará no longo desse documento. As lacunas não estão presentes, o fluxo da história é contido em três capítulos, onde os principais eventos estão agregados sob um anacronismo – referências a datas ocorrem somente no prólogo e epílogo, mais uma vez nota-se que assim se faz por função poética.

8 Nesse contexto, admite-se que as escrituras não configuram “mais uma relíquia isolada da antiguidade”, ao ser comparável com um contexto maior no qual estava imerso (Oriente Próximo). DEVER,1990 p.32. No caso, é nesse contexto que se encontra a Epopéia, sujeita de adaptação.

Num período tardio, outras histórias a respeito do mesmo herói foram continuadas (a exemplo, Gilgamesh, Enkidu e o Submundo, história Acadiana que serve de Apêndice a tábua XII, porém não corresponde ao resto dos conteúdos, trazendo personagens outrora falecidos como se estivessem vivos) porém nem todas convém-se agregar no ciclo, pela falta de conexão com o que se considera o “cânone”. Como uma fonte de narrativa menos recorrida, ainda que mais arcaica – portanto fundamental, no sentido etimológico de arkhé (TORRANO, 1991, p.15), entendida como um método de transliteração de tradições orais – afinal tratamos de um poema transcrito, de tradições orais para meios escritos, no sentido de que possui valores em comum que embasam tanto as narrativas clássicas (tanto as obras homéricas e as bíblicas do Antigo Testamento) quanto literatura atual, esse “plano de fundo” em comum com as obras épicas (aqui uma categorização moderna) de maior circulação se tornou interesse de re-imaginação, re-interpretação e adaptação de vários artistas mundo afora.

5.3 A Abrangência do Épico