• Nenhum resultado encontrado

6.1 Arte Sequencial

7.3. CAPÍTULO 1: SUPERANDO TODOS OS REIS

7.3.7 Cerimônia e Renovação

A respeito de cerimônias, no longo do primeiro capítulo, o períbolo de Ishtar contém classes especiais de administradores, servidores, sacerdotes e sacerdotisas, que configuram os administradores dos recursos do E-Anna e organizam as festividades ao seu entorno. Entre eles, os sacerdotes gala33 e as naditu34 são

mencionados ou implicados como algumas das importantes habitantes do templo. Embora não sejam mencionados enquanto classe separada de uma instituição religiosa (que na adaptação se julga como uma instituição coesa), sabe-se que formaram parte importante dessa mesma “casa do céu” (que foi referida como o centro da cidade). Na adaptação, são essas habitantes que supervisionam os afazeres do soberano e mantém a ordem, não pela força do rei (lugal), mas são de certa forma seus agentes, operam em interesse de uma classe de elite (que é personificada na história pela mãe de Gilgamesh – Ninsun). Dito isto, é sob estas figuras que recaem o cumprimento de ordens estabelecidas pelo rei, junto às práticas que desfiam a relação entre servos do estado e aprofundam tanto a diferenciação e alienação, dele perante o povo, e do povo perante ele. São estas figuras que mantém a ordem em sua ausência, e mediam sua aparição e imagens públicas. Entre o cumprimento de ordens, está a organização de rituais e uma série de práticas, como refere-se no conteúdo da primeira tábua (relembrando a configuração do motivo em três fases, estes garantem a “opressão noite e dia”). Em um momento crucial ao fim do capítulo, revela-se mais uma vez a regra na qual o rei exige relação sexual com uma mulher do povo (incluindo

33 Sacerdotes Gala eram responsáveis por coros de lamentação, no dialeto eme-sal. KRAMER, 1963, p.82 34 Naditu podia ser um título religioso, monástico (para sacerdotes e sacerdotisas), e constituía uma classe

social (referente à elite). As mulheres não casavam, porém também não passavam heranças. TETLOW, 2004, p. 80-85; 105

das que pertençam classes estabilizadas, configuram aqui até as harimtu e naditu, independente do conceito-tradução adotado), especificamente na noite de seu casamento, substancialmente o mesmo que uma jus primae noctis medieval. No contexto da adaptação, esse é um evento que faz uma simetria com o evento no E- Anna. Enquanto o primeiro evento era representativo do templo enquanto patrimônio privado do rei e de uma classe elitizada, à noite; ao dia se comemora um akitu (durante o mês nisag, “primeiros frutos”, estabelecendo um novo ano), é público – porém nele o rei não participa. Em contrapartida, as classes habitantes do E-Anna preparam à escuras o leito da noiva em outra parte da cidade, o que na situação é uma colocação irônica.

À respeito do akitu, como ficou conhecido principalmente pela celebração Babilônica (período de cerca de 1000 a.C.), vale informar que esse evento não é referido por nome, mas está implícito a nomenclatura do mês em que ocorre, nissanu, ou o sumério nisag (COHEN, 1993, p.80), de onde vem o hebraico Nisan, no qual se celebra a Páscoa (Março-Abril). O contexto do ritual ainda gera significativo debate, sobretudo à respeito de sua origem e conteúdo (SOMMER, 2000, p.81). Há a eminência de um sumo-sacerdote (na adaptação, colocado como Ensi), ou o rei de fato (seria o Gilgamesh, Lugal, que no entanto está ausente), segundo informação muito posterior (período Seleucida, 312-63 a.C.), o sacerdote “pune” o rei para fazê-lo admitir que não fez coisas erradas, e este jura assim governar a cidade, e não deixá-la

Figura 38: Naditu, Harimtu, En e Gala;

comparação com as figuras de alabastro identificadas com os sacerdotes (Louvre).

Fonte: Obra do autor;

ser destruída (com uma função paralela ao do Lugal em relação aos Ensi nessa adaptação; aqui no entanto Enkidu será responsável pela retificação da conduta de Gilgamesh). Noutro contexto, como a virada de ano representa, é um ritual onde o deus-chefe (no exemplo Babilônico, Marduk), como deus criador, recria mais uma vez a terra habitável, ao derrotar seu inimigo (em termos de diferente valor, aqui aparecendo como Tiamat – até o tempo do período de Uruk, antes do culto à Marduk, esse evento era tido como pacífico). Em suma, o “rei-cantor na antiga Babilônia devia entoar (…) o poema narrativo de como a ordem cósmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as anteriores trevas amorfas (...)” a fim de providenciar a renovação do ano e instaurar a ordem como se fosse um novo ciclo do mundo (TORRANO, 1991, p.19-20), como se voltasse à fonte original para prover essa renovação. Em todas as instâncias mencionadas, à respeito da tradição babilônica, o ponto convergente se refere ao redigir do poema Enuma Elish, ou uma versão do Enuma Elish (SOMMER, 2000, p.84). Esse ato é entendido como uma renovação do mandato, de natureza tanto mítica (narrativa) quanto política, em todos os casos, e é o marco do início de mais um ciclo agrícola.

A nós o festival nos interessa enquanto Uruk (e não a Babilônia ou a Assíria) é a cidade-estado que engloba Gilgamesh (mais uma vez enquanto arquétipo atemporal, não o contraparte histórico), e por isso também se torna palco desse tipo de evento. No material de referência (a tradução poética, edição de N.K. Sandars) não faz referência à esse evento, mas mais uma vez, justifico sua apresentação aqui para enriquecer o contexto em que a jornada de Enkidu e Gilgamesh se concluem, seus caminhos se encontram, seus destinos se entrelaçam. Em relação ao tratar a “jus primae noctis” como paralelo desse evento diurno, nota-se mais uma irregularidade do rei, ao manter responsável pela organização do casamento, sacerdotes (aqui seus agentes, invariavelmente de que classe provenham: pois o E-Anna constitui sua própria classe) relacionados à uma deusa “infiel, mas que amamos mais”. Fala esta que se conecta com material de referência além do épico, pelo fato de Inanna-Ishtar enquanto elemento proveniente de outra cidade (Aratta); ou até por influência semítica, até ser incluída no panteão local (WESTENHOLZ, 2013, p.134). Num contexto histórico, a método de explicação, Inanna-Ishtar já foi equiparada ou celebrada num possível “Ritual de Casamento Sagrado”, onde o “par” era ninguém menos que um rei de Uruk, aqui Inanna (ressaltando essa tradição enquanto Suméria) é, na verdade, representada por uma sacerdotisa (ou prostituta, ou uma naditu). Os

dois se uniam no ato sexual para garantir “fecundidade e vida nova” (KRAMER, 1963, p.141) para Suméria (em específico, Uruk, onde presidia toda casta de sacerdotes à Inanna, deusa da cidade). O evento (episódio mitológico) que dá origem ao suposto ritual – hoje colocado em questão (ROTH, 2008, p.23) – será explorado no segundo capítulo na trama, referente a um antecessor de Gilgamesh em algumas gerações, e no momento é desconhecido pelo leitor. Admite-se que tal ritual pode ter sido mera metáfora, ou o único exemplo de 'prostituição' de alguém com uma função num templo (e ainda sob uma regulamentação própria), onde o resto das colocações à respeito deste eram exageros ou cumpriam função poética para legitimar o rei com poderes divinos (ASHER-GREVE, 2013, p.284). Pelo que se assume, Gilgamesh substitui o evento da renovação das forças cósmicas com um hieros-gamos, mas por vias anônimas. Anônimas, mas como se faz em Uruk, já é bem conhecida, pelos “sussurros, palavras não engolidas”.

O culto de Inanna (especificamente, no próprio E-Anna) oferecia algum sentido de unidade religiosa no período epônimo, a se ter em conta o apoio e participação de outras cidades-estado (citam-se: Ur, Larsa, Zabalam, Urum, Arina e Kesh), onde havia falta do mesmo sentido em relação estritamente política, pela característica efêmera da guerra enquanto disputa. Trocas de presente entre reis (ensi) era mais um gesto, no entanto nem sempre selavam a paz. Comenta-se a unidade do culto no E-Anna pela evidência de tábuas com símbolos das cidades mencionadas, atribuindo presentes dirigindo à essa estrutura da cidade. No período de Ur, escavações revelaram silos separados para a manutenção de exemplos de tais presentes. Pelo que indica no símbolo em suas fechaduras, eram destinados à Uruk (MIEROOP, 2004, p.50), mesmo que não era mais o mesmo centro ou tivesse o mesmo prestígio do período (vale lembrar mais uma vez do caráter do renascimento sumério, onde centros votivos foram evidentemente reestruturados e habitados novamente). No contexto da obra, simulei esse tipo de oferenda (de outras cidades-estado) em junção ao característico akitu babilônico. Trata-se de um evento popular, populoso, e central. A maior festa do ano, e no caso, a ausência do seu Lugal garante duas coisas: livre interdependência dos ensi, e o descaso do jovem soberano com a tradição que só lhe rendeu desilusões. A seleção arbitrária de tradições e a troca de seus atributos marca outro nível de infração perante os deuses, cuja eminente ameaça de desestabilidade se trata apenas de um fado previsível.

O desafio à altura de Gilgamesh, ou que se equipara a Gilgamesh, se trata da solução do conflito no primeiro capítulo, a opressão de Uruk. Enkidu, como arquétipo, já foi discutido. Gilgamesh em condição estacionária na própria capital ofende os deuses ao usar a ordem que criaram em seu bel-prazer. Enkidu, em procissão de caráter iniciático em relação à ordem social, figura recebendo a chance de encontrar seu destino (aqui, no sentido de lote mas também vocação). Ele, no entanto, não libertará Uruk por uma intenção vindicativa, reacionária ou por justiça. Como todos os personagens são ferramentas dos destinos e fados prescritos pelos numes, não importa sua intenção, a consequência de seu ato será a luta com Gilgamesh e a eventual reconciliação entre ele e o povo. Esse é um momento chave para a dispersão dos demais figurantes, incluindo a harimtu, mencionando finalmente seu “nome”, Shamhat (lit. “voluptuosa”). Seu nome característico pode-se tratar como metáfora, adjetivo, e não necessariamente nome próprio (FOSTER, 1987, p.67), por isso optei revelá-lo apenas para fazer jus à individualidade de uma personagem que, no contexto, não é mera figurante, mas, ao mesmo tempo, faz algo já previsto (afinal como todos acontecimentos, previsto pelos deuses).

Daqui há um movimento para além do mês nisanu e direto ao mês Assírio Ab (Acadiano: Abu, lit: “pai”), que se situa entre em Julho-Agosto, e onde se realizavam competições atléticas. Havia uma questão ritual no enfrentamento e na luta-livre, associadas (no período Assírio) à Gilgamesh, enquanto lutador 'incorrigível'. Tradição separada ocorre, associada à Ninurta e Inanna-Ishtar (na cidade-estado de Mari), e não é estranha como precedente de um casamento (TIGAY, 2002, p. 187). Mais uma vez, na adaptação esse contexto cerimonial e social se insere de maneira atemporal e com função de mover a narrativa, solucionar o conflito (com todos os motivos relativos do período, como especula-se a configuração do casamento como “prêmio” ao vencedor dos torneios). Enkidu não o faz em intenção, mas preserva a qualidade de campeão das tradições que Gilgamesh deturpa, entre elas, especificamente o casamento (referenciado em temática, inclusive, como no sarcasmo em relação à sua aparência – parecendo um noivo, pág.45 da adaptação), se tornando o “pastor de povos” que Gilgamesh deixou de ser (FOSTER, 1987, p.65). Segundo Foster, essa parte configura os dois primeiros passos de Gilgamesh à cerca do próprio auto- conhecimento; sua amizade com Enkidu é sancionada pelos anciãos (aqui creio que seja apropriado a título de comparação lembrar a menção aos anciãos enquanto

conselho no episódio omitido, Gilgamesh e Agga, no caso da adaptação pode ser sub- entendido que esse conselho exista mesmo, uma organização distante e alusiva às ágoras), que prontamente o introduzem como habitante do templo (E-Anna). Não se trata de motivo irônico, que Enkidu, tendo encarnado o princípio do casamento, se torna habitante do templo onde figuram prostitutas, eunucos, e demais figuras cuja sexualidade e hábitos não reflitam a unidade familiar, mas apenas mais uma etapa na sua jornada, configurando-o como mais um elemento adotado pelo templo (e a elite), por mais estrangeiro e “indomável” que aparente ser, agora se torna igual de Gilgamesh. Assim, em paz – numa guerra apenas em caráter cerimonial, – a cidade prospera.