• Nenhum resultado encontrado

6.1 Arte Sequencial

7.5. CAPÍTULO 3: AQUELE QUE VIU O DESCONHECIDO

7.5.1 UTU-SHAMASH E NANNA-SIN

“Como Shamash (em forma) e Adad (em coragem)”, ocorre nas primeiras linhas da trama (pág.9 do quadrinho), nos serve de introdução ao protótipo, arquétipo de Rei soberano Gilgamesh, tanto no material adaptado e na sua 'fonte' (Tábua I). Sem considerar o caráter desses adjetivos, é também através desses deuses que se fazem preces no contexto de adivinhação, em específico no extispício (prática que supõe de “leitura de fenômenos” nas entranhas de um animal), durante o período babilônico: os numes mencionados trabalham em conjunto; num processo cósmico que Adad (os

efeitos meteorológicos) fornecem um impulso ao real ator (Shamash – o Sol) do processo cósmico (a virada de um dia), a adivinhação ocorre de noite (STEINKELLER, 2005, p.11-47). Para referência, não há a noção da gravidade, os ventos tomam posição importante enquanto movimento do sol. Esse fato e a derrota de Humbaba somam-se ao caráter de Gilgamesh no processo de purificação. É também na noite que Gilgamesh percorre a campina, após banir o mal e perder seu companheiro e conselheiro ao custo da reinvenção do cosmo (tópico anterior). Tivesse permanecido em Uruk, estaria mais uma vez no paradigma do rei oprimido pelo tédio ou pela repetição de seu trabalho.

Configurando-se o sentido estabelecido por Foster, o capítulo apresenta a quinta e última etapa: A Redefinição do Ser (Transcendência). Nesse sentido metafórico, um tema tão banal quanto a virada da noite ao dia se torna um motivo de transcendência. Uma percepção que se escapa do protagonista, pois pela morte do companheiro de aventuras e conselheiro, ele se encontra onde seus antecessores não percorreram: o abandono. É através da morte de Enkidu que ele percebe finalmente o tempo cronológico em andamento, percebe que ele pode morrer. Há uma estruturação que se faz na adaptação ao colocar a morte de Humbaba (uma criação, como Enkidu) e de Gugalanna (um nume – fica em questão como pode morrer se seu domínio já era a morte: entendo aqui como justificativa de seu esquecimento, substituição por outro nume, e prisão definitiva ao céu estrelado) e finalmente a de Enkidu; assim se faz para

Figura 64: Cosmografia Babilônica. Fonte: Steinkeller, 2005, pg.47 (Of Stars and Men:

The Conceptual and Mythological Setup of Babylonian Extispicy)

perceber que Gilgamesh tem coletado todo o significado, metáforas e atributos (num animismo), mas para nossa interpretação enquanto sujeitos da narração do quadrinho, esses feitos não passavam de ritos cerimoniosos. Ele não pode ser Rei, inserido em Uruk, na vida e busca de um rei, porque permanece liminar, e assim continuará até que perca toda a chance de imortalidade. Afinal, como é de sua fama, é dois terços deus, um terço mortal (MANDELL, 1997, p.127). Motivo complexo por trás da ocorrência dessa medição, até agora motivo narrativo, será explicado no tópico 7.5.5. do epílogo com devida atenção.

Segundo a tradição iconográfica, Shamash é, já que É o Sol, proveniente do Leste: viaja das montanhas e da situação que instaura o vínculo de relações “complementares e contraditórias” da “fonte de bens luxuriosos, que faziam a vida valer a pena”, onde os sumérios dos contos à respeito de Aratta colocavam a casa de “povos que ameaçavam a todo momento destruir toda a civilização dos planos aluvias do Iraque” (MICHALOWSKI, 2010, p.13), até à terra dos senhores nobres. Como juiz onisciente e presente (SANDARS, 1972, p.37), é o conhecedor do que há longe e inclusive do que há de ser (STEINKELER, 2005, p.5). Na concepção do mundo Babilônico, o de um mundo composto do seu reflexo celeste e da horizontalidade (figura 64), Shamash é quem viaja aos limites de seu entorno: durante a noite, sua presença no submundo faz um reflexo do mundo em dia – quando o julgamento terreno termina, o interesse do juíz cósmico se volta à razões de adivinhação (no contexto, gerenciador de riscos), uma contraparte dos vereditos legais (WINITZER, 2010, p.179).

Entre os deuses dessa côrte, figuram-se os deuses da noite (a incluir Nanna-Sin) e pelo que deixo subliminar na adaptação, serve como explicação à constante menção dos Anunnaki enquanto coletivo, sublinhando sua identidade como secreta no sentido de não-nomeável – trata-se de um código – admitindo que os numes se refletem da mesma maneira que na terra e no céu, e também o fazem no submundo na forma desses juízes. Esse segredo é um mistério, nesse ponto substituo a procura a Utnapishtim (problema a ser resolvido no próximo tópico) como uma busca de Gilgamesh pelo segredo do mesmo “Longínquo” (ao leitor, é um termo isolado cujo significado é um placebo), uma história ante-diluviana que chegou até ele por intermédio de rumores referentes a seus antecessores. Aqui, o rei em exílio troca-se o seu “mentor, tutor”, e ele exige apoio à uma procedência anterior ao do ancestral Utu- Shamash: à de Nanna-Sin, pai dos astros. Há decisão autoral onde Sin é

representativo (de Agade e Ur-III enquanto dinastias, ideologias e períodos) nessa adaptação, visto que pelo pouco que aparece (decorrente da qualidade de transliteração de detalhes na adaptação, ou seja: Sin é meramente mencionado, está oculto ne invisível no texto, é a própria Lua), aqui não usa o poder inerente dos deuses Shamash e Enki (a palavra); mas assim como Enlil, subsiste por meio de visões e condições, de categoria análoga a astronomia e meteorologia (que surge de forma imanente à partir das práticas de adivinhação). Gilgamesh enquanto rei iniciado a livrar o mal, no seu estado atual, definido pela liminaridade, se torna um adivinho, pois está num “labirinto sem paredes” (a campina, o deserto). Para prosseguir, ele deve internalizar o processo da adivinhação, sem conselhos de terceiros. Esse processo é 'altamente coerente, internamente lógico' (STEINKELLER, 2005, p.17), pois tem a garantia do elemento inequívoco à respeito do lugar do domínio divino (celeste e subterrâneo).

Figura 65: A Caça aos Leões, do Rei Assurbanipal (em detalhe). Fonte: Museu Pergamon, Berlim (Amin, 2014); Comparação

O plano de fundo dos eventos desses rituais de adivinhação permeiam o motivo do agora rei-peregrino, serve como axis mundi a fazer os deuses encontrarem o espaço terreno, cujo sustentáculo (como nos textos e fórmulas dos asipu) está no pronunciamento, o adivinho suplica que os deuses projetem (materializem) a verdade (kittum) sobre o espaço (WINITZER, 2010, p.180). Como citado na lenda de Enmeduranki53, os deuses são capazes de conceder a própria Tábua dos Destinos ao

rei, à modo de consulta. A travessia de Gilgamesh se faz em direção às lendas que antecedem à ele, e provém dos mediadores do divino (mencionados na pág.105 na adaptação).

Sua passagem se faz numa campina, estepe, desértica e empoeirada, “uma paisagem tão espiritual quanto à Selva Escura, a Montanha e o Abismo de Dante” (SANDARS, 1972, p.54). A presença dos leões é debatida, tal motivo figura de forma ilustrada na tradição de selos cilíndricos e “sobreviveu até a heráldica medieval”, porém não se há meio conclusivo de obter um “significado real” do combate com o leão. Segundo Sandars, “A versão hitita oferece um indício de uma possível relação entre os leões e o Deus-Lua”. Para dar continuidade e um sentido na narrativa, resumo o combate dele como um momento de lembrança de outra aventura (no qual possivelmente passaria pela mesma terra que Lugalbada passou em exílio, as montanhas do leste) e associo ao caráter de protetor de Sin, em especial aos viajantes. Como categoria de personificação também política e temporal, já foi mencionado que Sin representa nessa adaptação uma breve menção à Dinastia Acadiana (Semita) e de Ur-III, renascentista, e onde se configura não só os reis divinizados: Naram-Sin, Shulgi (WINTER, 2008, p.4), mas também a poetisa Enheduanna (cujas obras foram recitadas muito depois de seu tempo e foi a primeira autora da história reconhecida por nome), englobando o período da difusão da história de Gilgamesh.

Quem faz o ritual, o sacrifício e adivinhação é tanto o Gilgamesh fictício da história quanto o asipu Sin-leqe-uninni (revelado na pág.141 do quadrinho como o autor, numa “quebra à quarta parede”54). Na narrativa, substituo o poder de Adad na

adivinhação, suplantando-o com Shamash, e introduzo Sin como a tradição posterior

53 Consulta pela Lista Dinástica. Enmeduranki é fundador de Sippar, cidade de Utu-Shamash, e sétimo rei ante-diluviano. Após seu reinado, a cidade dominante vira Shuruppak. <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi- bin/etcsl.cgi?text=t.2.1.1#>

54 Por ser ele, também, o atribuído autor da versão do épico, referido como um arquétipo da profissão, e editor do épico na antiguidade. É referenciado às vezes como contemporâneo de Gilgamesh, o que ironicamente adiciona um anacronismo na própria obra. (GEORGE, 2008, p.11)

babilônica, de astrologia (e evidentemente, astronomia), que supre Gilgamesh com as respostas que busca (mais urgentemente, de localização – sua travessia se faz pelas estrelas, enxerga mais na noite iluminada do que no dia, que ironicamente confunde sua direção). O motivo do leão, bem como utilizar estepe como nome próprio “Edin”55

se baseia noutro conto, que estipulo como distância precisa entre Gilgamesh e Utnapishtim: O Sonho de Dumuzi56, onde somos introduzidos que “seu coração estava

repleto de lágrimas”. Utilizo o comentário de Wolkstein (1983) enquanto folclorista:

“(...) rei que reinava e sentava orgulhosamente em seu nobre trono, permitindo a si mesmo pouca compaixão em relação aos outros, agora estava sobrecarregado pelos sentimentos de vulnerabilidade (...) Deixa a sua cidade para retornar à casa de sua juventude, nas estepes (…) Sozinho, sem poder, comforto, ou direção, ele se volta aos sonhos. (…) Uma vez por ano, ou uma vez na vida, temos um 'Grande Sonho' (...) que nos diz mais do que o aqui e agora, não nos dá paz até que o entendamos (…) emergindo em momento de confusão (…) aquele que interpreta o sonho e encontra direção ao sonhador se torna inestimável.”

(WOLKSTEIN, 1983, p.163)

Nesse contexto, reitero a decisão de fazer uma ocultação no conflito do episódio (a busca por Utnapishtim) para algo cujo significado é mais internalizado – exigindo realizar de maneira mais eficiente a transição de Gilgamesh habitante de Uruk (cujos anseios eram projetados em compartilhar os feitos com seu conselheiro, ou segundo o excerto, o “que interpreta o sonho”, “inestimável”), para o Gilgamesh em exílio: em busca da vida “que não a da Grande Terra”. O 'inestimável' para seu contraparte Sin- leqi-uninni é o próprio deus Nanna-Sin, seu deus e deus de uma dinastia anterior à sua (pelo tempo que lhe coloco, figura entre o período das dinastias Cassitas, Babilônico Intermediário). A relação com Shamash é a de procedência, ancestralidade em um nível. Sin representa o contexto de verdade enquanto revelação de um deus através do ritual. Gilgamesh busca a um (Sol) através do outro (Lua).

55 Aqui ambiguamente utilizado com ironia para uma audiência que conhece o paraíso do gênese por termo derivativo do sumério edin enquanto jardim (CALLENDER, 2000, p.42) – a esse propósito, se mostra como um matagal descampado, uma área abandonada e desolada, porém para o elemento nômade semita (que não é o caso do sumério Gilgamesh), trata-se um de ambiente familiar. 56 Universidade de Oxford, ETCSL (tradução) http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section1/tr143.htm

Para efeito de representação, utilizei da tradição de selos cilíndricos e dos entalhes nos kudurru em que dadas divindades foram identificadas. O método de diferenciação do padrão que os coloca à par um do outro (figura genérica) se baseia na alteração do seu classificador icônico (prototípico), o “chapéu de chifres” (SELZ, 2008, p.16), bem como pela atribuição de cores referentes a dois contextos: a) a atribuição dos deuses (mencionada no corpo literário, ou suposta pelo material utilizado na confecção de alguma imagem); e b) o seu entorno (levando em conta uma composição cromática que ressalte sua categoria enquanto ser luminescente, afinal, ambos são astros). À essa condição, Shamash, que é recorrente, se apresenta aliado ao seu atributo, os “anéis de medida” (BLACK; GREEN, 1992, p.156), e mesclado às representações de suas efígies (sobretudo em cobre ou bronze); enquanto à Sin, cuja

Figura 66: Shamash (detalhe) no Código de Hammurabi (1760 a.C.),

e na tábua de Shamash (cerca de 872 a.C), Museu Britânico;

Fonte: Wellcome Collection

natureza se faz mais oculta, está associado ao seu próprio constituinte (a Lua, em sua forma crescente), figurando em tons escuros como mera menção à hematita ou à àgata.

Aqui, a definição 'figura genérica' tem um contexto de representação na tradição de gravura e relevo, onde tipos específicos por grupos (de numes) ou funções (por associação) se relacionam pelo seu estatuto a partir ou de posições (em pé, ou sentado, entronado), em vista (frontal ou perfil) ou ainda em contexto do 'se ver', onde a figura representa pouco, permitindo mais que os observadores apropriem (revelando somente o que conseguem ver), servindo a opção de 'ver nas figuras genéricas' uma figura divina que lhe é favorita, apenas pelos seus atributos básicos (ASHER-GREVE, 2013, p.160), entre esses atributos figurando mencionado chapéu e as longas vestimentas. Como ocorre nos demais deuses, opto por manter categorias elementares básicas para sua identificação.

Figura 67: Representações de Sin: fragmento da Estela de Ur Nammu; Kudurru de Marduk-nadin-

akhi ; Pérola de Ibi-Sin; Selo cilíndrico com Ur-Nammu ; e obra do autor.

Fonte: Museu da Universidade da Pensilvânia; Bibioteca Nacional da França (Nguyen, 2016);

Dado conhecimento sobre a representação dos numes, pode-se prosseguir o que se sucede em sua viagem: tal como na narrativa do épico, encontram-se as Montanhas Mashu (lit. gêmeos), em todo o contexto dessa terra incognita pode ser tanto Kur enquanto montanha quanto o mundo inferior (e assim se faz, sendo ambas – pág.105 da adaptação). São os portões dos girtablilu, aonde o protagonista deixa para trás o “espaço e realidade familiarmente humanas”, e se torna um “homem sábio, adulto” (nunca explícito dessa maneira). Ao deixar Uruk, Gilgamesh “deixa a juventude”, ao retornar, “terá se tornado adulto”. Não está nem vivo nem morto, está entre um e outro, como as criaturas que habitam esse “Outro Lado”, sendo nem humanas nem numes (HARRIS, 2003, p.45).

Figura 68: Homens escorpião: Desenho por Faucher-Gudin,

a partir de um entalhe Assírio; detalhe da lira de Ur. Fonte: Wiki Commons, 2012; Impressão de selo cilíndrico de mármore, período de Uruk (3500–2900 a.C.).

Fonte: The Morgan Library & Museums; Girtablilu: Obra do Autor

Na apresentação dos girtablilu, se faz necessário retomar conceito que volta à nomenclatura da percepção dos mares – que são Tiamat. Tiamat está fortemente associada à tradição Babilônica do Enuma Elish, cujas diferenças com a tradição Suméria são tratadas no Epílogo. No mesmo texto esses escorpiões são mencionados durante a criação, provenientes de sua derrota contra Marduk. Nesse sentido, transfiro essa questão de seu embate físico à frequente menção da “mistura” das águas: esse é um conceito estrangeiro, a água do Absu e Tiamat se 'misturaram' nessa adaptação somente em virtude do dilúvio, porém na concepção da Mesopotâmia, as águas dos rios sempre serão férteis e as do mar, inférteis. No entanto, no conceito babilônico (vide figura 62), Absu não é somente o poço subterrâneo, mas também se encontra na porção ao redor do portão leste do mundo inferior (STEINKELLER, 2005, p.21). Seu “contraparte” no mundo acima é o próprio Golfo Pérsico (água salgada). O conceito da “Mistura” reflete o Enuma Elish onde Marduk tem de destruir Tiamat para garantir a manutenção da vida e a organização do mundo – assim o faz pelos ventos, “explodindo-a” por dentro. A água salgada então seria os seus limites. Para continuar a lógica, se faz necessário apresentar os outros personagens e os modos que encontra na travessia. Nesse sentido preciso definir onde é o Absu e onde se encontram as “águas da morte”. Sabe-se apenas que a viagem se faz à Leste.

Gilgamesh apela à algo que é pouco característico dele na minha adaptação – a alucinação, subintendendo-se enquanto ritual mágico. Ao fim do ritual, o sacrifício dos leões tem funções bem práticas (render-lhe vestimenta e carne). E assim, ao passar para uma ofensiva contra os guardas (aos girtablilu, menciona-se como um casal, macho e fêmea – aqui não faço distinção), em evento que se faz apenas como prerrogativa de introduzir mais ação (e provavelmente a última ação de ataque proveniente do protagonista à um ser animado em toda a adaptação), pois no épico se faz por extensa repetição e de modo pacífico, ainda que no cenário inóspito e hostil. Sua mortalidade e imortalidade são sugeridas enquanto provenientes da fama, rumor, traçando mais uma linha em direção ao seu destino final – alguém cuja fama trouxe reconhecimento contrariamente anônimo. Logo, ele se adentra nas léguas de escuridão, e o que se sucede são flashbacks e uma conversa densa e interna.

Ao emergir a luz, encontra Shamash em sua frente – não lhe parece mais deus do que parece um ancestral. Nota-se a inversão: aqui como Gilgamesh, se alimentando como a hoste da morte, e tomando o papel de Enkidu enquanto

“estrangeiro”. Ao fim tornara-se como ele era antes de conhecê-lo, por ter se adentrado ao domínio de onde saiu: a desolação, aquele paradigma que existe quando não há ordem no céu e na terra: “As pessoas daqueles dias não conheciam o pão. Elas não sabiam usar roupas; caminhavam de pernas nuas e vestiam peles. Como ovelhas comiam grama com suas bocas e tomavam água de poças.”57 Exceto que aqui

faz um feito extraordinário: assim sê-lo perante à morada dos deuses. Não necessariamente o firmamento de Anu, porém um lugar onde Shamash atravessa em sua jornada (logo, o portão Leste). “Enquanto o deus-Sol sobe a montanha no qual o portão Leste está situado, ele passa pelo Absu, no qual está entronado Enki-Ea; nesse momento os dois deuses se saúdam” (STEINKELLER, 2005, p.21, nota 23). Admitindo que Gilgamesh passou por debaixo, não encontrou o Absu, este se mistura além do cais: ele também não pôde contemplar o seu administrador Enki-Ea. Admitindo que Enki não esteja envolvido na remota possibilidade de permitir que Gilgamesh proceda, Shamash reconhece um ser cuja similitude é o da morte (o luto): isso profundamente aborrece o ancestral, a quem prezou com todos os outros reis. No momento, encontra o rei em exílio e afligido com o peso brutal de seus dias.

Embora o tempo fosse conceito distante, utilizei alguns detalhes que com certa exposição na trama indicam movimento: a ambiguidade na instalação de Gilgamesh em Uruk (pág.22 do quadrinho), a presença e ausência comedida de Ninsun (cuja relação de Gilgamesh é tida como procedência, nesse capítulo fica em questão se não passa de associação – uso isso como recurso, não há tal questão no épico, onde é certo que sua mãe é deusa) e a frequente menção dos conselheiros (aqui identificados com os apkallu, no sentido de sua função enquanto seres individuais, os sete de Eridu), que frequentaram Uruk (estipula-se que após a transferência dos mes, até o período de Gilgamesh). Enquanto essas divergências perante os antecessores de Gilgamesh de certa forma o afetam, ele já contempla feitos memoráveis, e involuntariamente alterou a própria ordem cósmica (memoráveis enquanto ditado pelos deuses – quando o faz de maneira não solicitada, os enraivece). Ele, depois de tudo, ainda quer exceder o que foi ditado.

57 Disputa do Grão e da Ovelha. Tradução em Universidade de Oxford, ETCSL <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.5.3.2>, versos 20-25

Shamash, o então perfeito juiz (por tudo na terra conseguir ver e julgar), não pode mais ajudá-lo, e exige que retorne. Sua sabedoria é forte, firme, e confiante: supõe de forma clara e racional, um passado, presente e futuro estáveis (MAIER, 1997, p.28), o faz pela procedência dos reis, pela promulgação de leis. O tempo cronológico começa a pairar na narrativa. Ele ignora o apelo de Gilgamesh (pois beira o absurdo – a justiça é o que é, não é a necessidade). Enquanto cumpre sua função, o sol deve voltar o seu curso, e não presentear um dote sobre alguém por um 'mérito'. Dessa maneira, Gilgamesh percebe que sua justiça também conta, como na arte de Sin e Adad (adivinhação e extispício), com um estrito cálculo sobre o qual ele não expõe as fórmulas. Não expõe no mesmo sentido enquanto a lei na tradição oral é proferida por um cultor da memória (discutida no tópico 7.3.5), capacidade que escapa ao mortal em sua velhice. O rei e sua côrte, cujo dever é espalhar essa lei (como fizera na terra dos cedros) estão em desacordo, mais uma vez, pela ausência de Gilgamesh.