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6.1 Arte Sequencial

7.4. CAPÍTULO 2: A JUVENTUDE DO ANCESTRAL

7.4.2 TERRA DOS VIVOS, FLORESTA DE CEDROS

O destino de tal campanha é pitoresco, uma floresta situada em algum canto longínquo. A primeira descrição na adaptação a localiza ambiguamente nas Montanhas de Zagros (Elã Ocidental, a leste da Mesopotâmia), ou na Turquia (dado a entender de acordo com uma descrição de Sargão37), com menção à Fenícia devido à

extensão de eventuais domínios Assírios. É difícil associar precisão geográfica entre as diversas referências cruzadas de tempos distintos com a procedência de um material específico. Em suma, admite-se no contexto de diferenciar “terra habitada”, “grande terra”, com o conceito de terra nullius, ou terras fronteiriças, terras estrangeiras, onde haviam não somente outras culturas, mas figuravam-se sequer habitantes (humanos, pelo menos). Levando em conta a capacidade dos sumérios quanto ao julgamento de culturas ao seu redor (KRAMER, 1963, p.284), não colocariam a terra de cedros como um vasto reino, porém como um lugar em outra tradição, um vínculo com seu estilo de vida em noções complementares e contraditórias – a região leste, sobretudo, era a “fonte de bens luxuriosos, que faziam a vida valer a pena”; e ao mesmo tempo a casa de “povos que ameaçavam a todo momento destruir toda a civilização dos planos aluvias do Iraque” (MICHALOWSKI, 2010, p.13). O esquema da localização da Floresta está aparente na Figura 40 (pág.87), o tema mitológico e simbólico se expande no terceiro capítulo.

Para o enredo, respondo essa questão de forma breve, agregando essa noção extra-terrena em um único termo: “pandemônio”, apesar de pouco relacionado ao léxico sumério ou semita, é um placebo, empregado a título de referência à “multidão”, agregando ao mesmo tempo o significado de “anonimato”, categorizando o espaço não contido (desorganizado, abandonado). Por isso, a floresta e a terra dos vivos se tornam um único lugar, e alcançam além do horizonte (“por dez mil léguas”, pág.61 do quadrinho). A sua eventual devastação, no entanto, nunca é completa: sempre haverá terra não explorada, para além dos quatro quadrantes da terra38. Tanto que os eventos

do terceiro capítulo se passam ao longo do que não foi inserido na ordem da grande terra após o segundo. Vale-se notar das diferentes abordagens quanto à localização

37 “o deus Dagon lhe deu a 'região superior' até a 'Floresta de Cedros' e a 'Montanha de Prata'”

(SANDARS, 1972, p.21-22), a autora assume que no caso a Floresta se trata das montanhas Nur (norte da Síria, sul da Turquia), embora o material é característico da Fenícia e regiões da Pérsia.

38 Suméria, “terra dos nobres”, ou “cabeças-pretas” ao sul; Uri (e Acádia) ao norte; Urartu ao Oeste e Hamazi e Shubur ao Leste. (KRAMER, 1963, p.285)

da floresta, tal como da cidade Aratta nos ciclos anteriores à Gilgamesh (já mencionados, referentes à Lugalbanda e Enmerkar). Antes de configurar um ciclo (nas cinco histórias separadas e genuinamente sumérias, datando de Ur III), nas duas versões que mencionavam a floresta, se situava à leste. A primeira versão compilada (Babilônica Antiga, em fragmentos) já a reloca ao Líbano (oeste). Há um caso de múltipla alteridade (MICHALOWSKI, 2010, p.21), e só pôde ser sanado com escolha direta do autor da adaptação. Minha decisão foi estendê-la por volta de todo o mundo conhecido, de maneira circular.

7.4.3 HUMBABA

Humbaba é um inimigo fortemente associado no “motivo de Gilgamesh”, figurando em duas lendas Sumérias (ou uma em duas versões distintas), que sobreviveram até a inclusão no ciclo-épico-epopéia. Em linhas gerais, é um inimigo aparentemente invencível, o que o torna mais uma vez especificamente o que Gilgamesh necessita enquanto desafio, já imaginado enquanto troféu (QUAMMEN, 2003, p.255-259). A existência do personagem fora do elenco de Gilgamesh não foi comprovada, porém como mencionado no tópico 5.3.1, em exemplo esparso, isolado e

Figura 46: Floresta de Cedros (pág. 6; 66; 72). Fonte: obra do autor

único, é demonstrado como um ser benevolente, logo a colocação o transfere em embate com Gilgamesh como 'mercenário', tanto em intenção e consequência. Na adaptação, não hesitei em lançar a possibilidade de tornar essa faceta 'benéfica' possível. Afinal, ele é (monstruoso ou não) o vigia da floresta, por mando do chefe dos numes Enlil (a categoria de presidir os numes não é um estatuto fixo e será debatido num tópico específico, 7.5.5. “Epílogo”). Vale aqui relembrar a principal distância entre numes e mortais – a percepção, visão, no sentido de prever consequências, e através da meticulosa organização, conseguir traçar destinos (antes no primeiro capítulo, em cúpula urbana, onde propus a questão de divisão de trabalho; agora no segundo é mais referente à delimitar que terras podem ou não ser habitadas, e para que usos).

Nesse sentido, Humbaba, 'favorecido' (cujo 'favor' é levar a vida que tem, a do pastor, junto à capacidade de realizar seu dote – o de um vigia) por Enlil, tem uma força e poder extraordinários, mas uma tarefa “simples” (ou se não for exatamente simples, será por favor contrário de outro deus, – lembrando que no contexto sumério, não há força que se oponha à Enlil, – e isso jura segurança à Humbaba). Gilgamesh, favorecido por Shamash (cujo 'favor' é manter Uruk e toda a terra dos nobres sob seu cuidado, a recitar e grafar suas regras tão logo quanto grafa seus nomes como reis – vide a existência da Lista Dinástica), é alguém que busca uma tarefa que exceda o seu lote: ao se aventurar por onde é desconhecido, proibido. Banir o medo do coração dos homens. O faz no mesmo contexto em que Enkidu se dirige à Uruk – por um anseio.

Figura 47: Humbaba como Gigante, em sequência: 'Relevo com dois heróis'. Fonte: Walters Art Museum; 'Figura de Humbaba'. Fonte: Museu de Israel;

Demônio Humbaba. Fonte: Louvre (Valette, 2013);

Um momento rápido na adaptação se dá por Enkidu mencionando Humbaba (pode-se supor que o monstro já foi mencionado durante os “longos anos” e Gilgamesh tenha esboçado um plano de capturá-lo em sua capacidade antes disso – o conteúdo original é bem esparso em detalhe cronológico). Tendo revelado que a terra dos vivos e a floresta são a mesma, ou uma é parte da outra, dá-se a entender que Enkidu viveu nesse espaço “nulo” (contrariamente, chamado de “cheio de vida”, no sentido de vida enquanto competição de uma miríade de seres, porém geração após geração, nunca é resultante em mudança do paradigma latente), e conhece Humbaba. Isso nos dá uma conexão com a descrição mais concisa dentre os diversos detalhes referentes à aparência ou poderes de Humbaba, onde na versão de Sandars temos:

“Seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas a própria morte. Ele guarda tão bem os cedros que consegue ouvir um novilho se mexer na selva a sessenta léguas de distância.”

A natureza fragmentária da narrativa a partir daí sucede uma sequência de visões (páginas 115-124 na versão de Sandars, creio que em decorrência de ter prezado manter os detalhes de todas as fontes incluídas). Os heróis param de um dia a outro, tendo sonhos e os interpretando. Param para refletir, até que Gilgamesh corta o primeiro cedro (pelo que indica, o central e maior de toda a floresta) e fraqueja, recebendo uma última visão, no exato momento antes que Humbaba se revela. Na adaptação, no entanto, faço uma síntese: todas as visões ocorrem em simultâneo, independente se foram 'enviadas' à Gilgamesh ou a Enkidu. Os detalhes ocorrem em ordem, numa procedência que favorece a interpretação de Enkidu (de que Lugalbanda e Shamash favorecem Gilgamesh). Ao longo da trama, ele revela as habilidades do

Figura 48: Escultura (braço de cadeira) de leão

em prata, tumba real de Ur (cerca de 2050 a.C.). Leoa "Guennol", estatueta Elamita (c. 3000 a.C.),

Fonte: Penn Museum e Museu de Arte do Brooklyn

asipu enquanto gerenciador de riscos, e desmistifica o processo de adivinhação, fazendo todo um enredo motivacional, apelos à infância, tradição e companheirismo do rei. Gilgamesh não retrocede ao cortar o primeiro cedro na adaptação, para velocidade e sequência da narrativa. À respeito do inimigo que enfrentam, ambos já o temem pelos seus atributos (conhecidos através de fama, rumores), sua presença paira sobre a floresta, mas à medida que entram na luta e resistem, percebem que ele não é menos mortal do que eles.

O conceito das auras, traduzidos aqui tanto como esplendores e terrores, é complicado e não concentra um único significado, na versão Babilônica Antiga foi traduzida diferente da standard (TIGAY, 2002, p.68), derivando talvez de corrupção do material, por isso o duplo significado de esplendor e terror. Para sanar isto, apresento uma versão única onde não há “aura” senão um 'rumor' diante dos seus poderes relacionados ao fogo, sua presença (como o do Sol, pairando sobre a floresta), e fúria se igualando ao trovão (e às tempestades, o clarão na floresta). Em outras palavras, tem todas as metáforas à respeito de Gilgamesh, mas enquanto poderes (transferindo a realidade do mortal para o dos numes – Gilgamesh é cópia, Humbaba é feito pelos deuses), fato que o torna cada vez menos humano (em aparência), e traz a narrativa mais próxima da abode dos numes, exigindo mais recursos de fantasia na sua representação. Vale notar: na versão suméria, independente de ciclos, Humbaba se apresentava como obstáculo, e não como a 'intenção' (ou bode-expiatório) da jornada, cuja motivação não era a extração de cedros, o tanto quanto era a de marcar um nome ao lado de seus antecessores. Ao mesmo tempo, a função de Utu-Shamash se alterou com a evidente troca de posição da Terra dos Cedros. Isso decorre de sua

Figura 49: O Sonho na Floresta: Páginas 67 a 70 Fonte: Obra do Autor

associação com a direção leste (por razões aparentes – como o Sol, ele surge todo dia dessa direção, das montanhas39), no sumério, é ajudante de Gilgamesh, mas

eventualmente em outras versões, praticamente lhe rende visões e finaliza o trabalho usando os ventos, a “arma” de Enlil e Marduk (SANDARS, 1972, p.49). É por intermédio divino que o herói derrota o inimigo. Seu papel pretende-se como ajudante e mestre de Gilgamesh numa arte de banir o mal, descrição no qual Humbaba foi associado em rituais de exorcismo (TIGAY, 2002, p.76-82).

O ato de derrotar Humbaba se faz por Gilgamesh e Enkidu, o último lhe nega a liberdade, o “retorno à mãe”, ao advertir o companheiro de que ele também exerce um mandato, uma ordem, e possui intenções, decreta algo sob as criaturas que compõe a floresta, na multitude e anonimato, sem palavras, sem escrita. Enkidu é aquele a advertir essa relação por ter exatamente vivido nesse meio que Gilgamesh desconhece. À referência disso, na pág. 78 do quadrinho, todo o significado mágico referente à visão do “brilho” desaparece com a menção “o viciou”. Em suma, na adaptação (e coloco em grifo próprio essa abordagem sobre o ocorrido), Gilgamesh se preocupa com a função estética da floresta enquanto um jardim. Por isso é quase

39 Sua iconografia será apresentada no tópico 7.5.1

Figura 50: “Motivo de Gilgamesh”, A derrota de Humbaba.

a,b) selos cilíndrico (período de Uruk - Dinástico Inicial); c) Relevo. Fonte: Staatliche Museen zu Berlin

persuadido por Humbaba quanto a suas promessas palaciais. Enkidu, nesse caso sendo a voz de uma razão que escapa da experiência do protagonista, o tira de um vício de pensamento, exigindo o sacrifício de Humbaba. Sacrifício do qual se dedica a cabeça (e as presas afiadas, segundo descrição) para Enlil. Detalhes como o olhar da morte, que paralisa, e o fato de guardá-lo numa bolsa de couro foram comparados com a história de Perseu e da górgona Medusa (HOPKINS, 1934, p.341-358).

À respeito da aparência, descrito como “ogro” em alguns momentos, a maioria dos detalhes de Humbaba derivam da versão de Sandars, incluindo um comentário rápido e despretensioso sob seus poderes ígneos (SANDARS, 1972, p.50), utilizei todas as metáforas referentes a sua força e estatura (no termo “como touro”, tema frequente na epopéia, ou de associar o seu poder da “torrente do dilúvio” e “clarões da floresta” com a iconografia dos pássaros-tempestade, denominados de Anzu ou de Imgudud (DALLEY, 1989, p.205) justificando as penas e garras de abutre. Desse modo é introduzido como um elemento que o difere de Enkidu (aqui como estrangeiro,

Figura 51: a) Anzu, 2500 a.C. Fonte: Museu Britânico

b) Impressão de selo cilíndrico: Pássaro Anzu, cerca de 2154–2100 a.C. Fonte: © Iskrako 2014;

c) Estela dos Abutres (2450 a.C).

em vez de simplesmente 'natural' ou 'selvagem'). Humbaba é poderoso e único, é um “monstro-pastor”, porém ao cumprir um papel determinado pelos deuses, não é diferente de qualquer criatura. Não protege a floresta para o bem-estar de suas criaturas (afinal aqui adereço a questão de floresta enquanto gestão e dinâmica de populações40), mas sim como um jardineiro faria. Os animais que o saudariam, a

manutenção de sua radiância se faz apenas pela ocultação da morte que não consegue controlar. Em outras palavras, a floresta não é menos organizada, apenas organizada de maneira diferente da Grande Terra, mostrando abundância, ocultando os sacrifícios (que devem ser considerados não como a cerimônia a agradar os deuses, mas sim como resultantes de um descaso). Pelo conselho de deuses permitir que tal ordem fosse sucedida, é como se essa organização fosse abolida pela sua própria obsolescência.

Na adaptação fiz questão de identificar os fatores e os 'lotes' que adereçam aos termos modernos de “natureza” e “civilização” e direcioná-los não à qualidades de um ou mais numes, mas os configurando nas relações entre si. Se o ser que era único era protegido por Enlil pela sua obediência e por cumprir metas (eficiência), Shamash o considerava danoso pelo medo que inspirava, aos poucos mortais que o conheciam (abuso de poder). Deixo claro na página 77 do quadrinho que Humbaba, como pastor,

40 Disciplina que estuda como as populações de seres vivos variam através do tempo. Tradicionalmente, se representa pela equação: dN/dt =rN(1-N/K), onde o grau que a população cresce em certo tempo (t) depende em dois fatores (independente do tamanho inicial N): o tamanho da progênie em média de cada animal (r) e o grau de sobrevivência (K) que essa progênie tem em média. (HORTA, 2010, p.5-6)

Figura 52: Caça aos Leões, de Assurbanipal. Cerca de 635 a.C.

estava muito bem sacrificando animais em algum modo – modo não cerimonioso, afinal; e sim pela sua omissão à relações que julgava como naturais (assim por serem leis 'indefinidas', não verbais, não grafadas). Assim se configura a 'natureza' (enquanto pandemônio, fusão de todas as forças e entidades), rendendo que populações se criem sem controle e que a morte sempre alcance uma boa parte. Em contrapartida, as forças de criação sempre repetem esse ciclo. O funcionamento da floresta enquanto jardim se trata na manutenção da abundância e beleza, quantitativa e qualitativa, respectivamente.

Humbaba possui o valor de Gilgamesh e foi criado, como Enkidu, mas lhe falta o apoio do deus da justiça: lhe falta o âmbito de ultrapassar o lote que lhe foi rendido, e logo que é submetido à morte, seus “esplendores” se esvaem pelos corredores que com tanto apreço manteve. Obviamente, o destino de Enkidu e Gilgamesh também é selado, como se em um quebra-cabeça. Eventualmente ocorre uma necessidade da troca, de um pagamento. Esse é o real critério de sua organização, da organização de Enlil, e do próprio Shamash, que somente é quem intercede, através da argumentação e discurso, e como a solução para a prece. Para solucionar a questão da multidão, se apresenta uma ordem de favores.

Figura 53: Humbaba (versão final) Fonte: Obra do autor