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6.1 Arte Sequencial

7.3. CAPÍTULO 1: SUPERANDO TODOS OS REIS

7.3.3. Uruk e Organização Social

Uruk (em acadiano, do sumério Unug) foi o principal centro urbano que caracteriza o epônimo Período de Uruk, que precede e consolida a civilização Suméria através de cidades-estados Kish, Uruk, Ur, entre outras (KRAMER, 1963, p.41-43). Argumenta-se que Uruk foi de fato a primeira cidade na história do mundo, classificada assim pela estipulada quantidade de habitantes e pelo tamanho ocupado, chegando até 100 hectares (MIEROOP, 2004, p.23). As famosas muralhas são atribuídas hora a Gilgamesh (que deve ter sido quem as completou), hora como projeto de seus ancestrais, no conteúdo da Epopeia e na referência adicional Lista Dinástica Suméria. Em Uruk e nas cidades-estado ao seu redor, se apresentam eventos que instauram um

sub-enredo, na minha adaptação do épico é a oportunidade de, pelo menos, sutilmente esboçar um parecer da vida social na Mesopotâmia, cuja aparência no épico é indicada, no máximo.

O foco sendo o protagonista (que no primeiro capítulo, não percorre lugar nenhum senão sua própria capital), algumas dessas cidades-estado ainda são apresentadas, mesmo que apenas de forma referencial (durante a viagem de Enkidu). Aqui, Umma se torna o exemplo que se adéqua na descrição de vilas pequenas, e Uruk se caracteriza como a cidade-tipo, um município, que “pelo fim do período, os maiores centros habitacionais já possuíam muralhas” (POLLOCK, 1999, p.5). É lá onde templos e outras construções públicas se tornam grandes e elaboradas, onde se assume que foram empregadas mão-de-obra em extensa quantidade por longo período de tempo. O funcionamento desse centro habitacional, no primeiro capítulo do projeto, se baseia no próprio Épico (Tábua I-II) a partir dos detalhes que nos dá, e oferece vagas menções da organização que se assemelharia ao período Dinástico Inicial, caracterizado ainda pela relativa independência de cidades-estado por meio de dinastias locais. Neste período, o processo de urbanização exerceu uma grande revolução na organização social, estritamente correlata com a especialização do trabalho. A autoridade que se instalava no período necessitou de uma fundação ideológica

Figura 26: Império de Lugalzagesi de Umma.

Note a localização de Umma em relação à Uruk.

compartilhada com seus membros para facilitar um processo de comensalismo entre famílias e unidades sociais, que não eram em algum momento auto-suficientes, e esta era focada na religião. A escrita não era uma ferramenta universal, e caracterizava uma função administrativa antes de ser ritual: os templos, as casas dos deuses (cada cidade-estado tinha uma tradição referente a uma ou um grupo de divindades), eram também o principal arquivo das transações comerciais e de onde se media um certo racionamento de recursos. É discutido que os dois principais centros votivos de Uruk – o zigurate de Anu e a Casa do Céu (E-Anna) eram anteriormente parte da tradição Ubaid (MIEROOP, 2004, p.25), ou “bairros” transformados em uma só cidade.

No contexto das cidades-estado, em específico no período dinástico inicial, elas eram predominantemente organizadas por dinastias hereditárias, a distinção de uma cidade ou outra relatava pelo chefe de um panteão local, que se relacionava ao outro por associação (sincretismo) de epítetos nos quesitos de similaridade ou continuidade (WESTENHOLZ, 2013, p.133); porém buscava-se sempre a tendência de ressaltar o deus local encabeçando as relações com os outros, e não sujeito a elas. No início do capítulo, existe essa configuração local de cada deus encabeçar o templo da cidade (POLLOCK, 1999, p.9), no caso, An-Anu e Inanna-Ishtar. A cultura e linguagem em comum eram o que garantiam uma virtual interdependência entre si, a religião era uma fusão de panteões locais, organizadas por representantes das divindades em cada templo para cada cidade. Não se nega o estado crônico de

Figura 27: Reconstrução de fachada do E-Anna no Museu do Oriente Próximo, Berlim. Em comparação: representação do autor na página 80 do projeto.

Fonte: F.Tronchin, 2007 (superior);Schütze, 2011 (esq. inferior); trabalho do autor (dir. inf.)

conflito – que hora ou outra terminava em guerra. No contexto do capítulo 1, tal evento de guerra era ainda desconhecida ou distante, pois Gilgamesh subjugou os povos vizinhos através dessa interdependência econômica, não necessariamente pela guerra. Ausente no projeto estão as menções de fronteiras entre essas cidades (julgando que as muralhas de Uruk eram pioneiras nesse sentido, optei por não apresentar nenhuma configuração diferente para outras cidades-estado, citando termos como “partilha da terra” na narração da pág.15 para sanar essa questão). No entanto, como essa Uruk é fictícia e arquetípica, o sistema tardio de kudurru (figura 28), que se configurou de maneira material na dinastia Kassita (que interrompe os domínios das dinastias Babilônicas, bem mais a norte de Uruk), se faz relevante para ilustrar a noção de propriedade entre os trabalhadores camponeses e os servos do estado. No exemplo de kudurrus (lit. fronteira, em acadiano), cito o “Obelisco de Manishtushu” datando de Ur III (dinastia renascentista), onde há o relato a transição de posse de (98) terras entre um “clã” (grupo configurado por membros de família com até três graus de parentesco). Estas terras não se tratavam de posse de 98 'vendedores' – não houve nenhuma transação, entre os 98 indivíduos que '‘reivindicaram’' essas posses, poucos realmente exerceriam futuramente seu poder sobre elas, privilegiando os que já dispunham de terra, poucos membros desse “clã”. A reivindicação de posse pelo apelo a grau de parentesco era apenas uma forma de manter o estatuto da posse mais “justificável”, onde os 98 do exemplo estavam apenas testemunhando um processo de alienação dessa terra (MAISELS,1993, p.141).

Figura 28: Exemplos de kudurru em calcário:

a) fragmento, com um dragão mushussu, cerca de 1156-1025 a.C; b) inacabado, do reinado de Melishipakk II, 1186-1172 a.C; c) completo, de Melishipak II. Fonte: Metropolitan Museum (a);

Tal exemplo foi elaborado num contexto de especialização de mão-de-obra, que veio ocorrendo desde os períodos de Ubaid e Uruk. O exemplo-tipo dessa especialização é relatado na Lista de Profissões, que foi redigida em algum momento do período de Uruk e foi “copiada fielmente por 2500 anos” (MIEROOP, 2004, p.27), o documento continha especificações de cozinheiros a ourives, ceramicistas, artesãos e jardineiros (que descreve também o responsável pelas obras de irrigação – Sargão mesmo já era relatado originalmente nesta função em tradição Assíria), todos organizados sobre hierarquias (distinção entre quem faz e quem administra, podemos apenas supor tentativamente que se fazia numa analogia a “meritocracia” mas configurava vínculos familiares). Pastores do gado e senhores de terra eram organizados em diversos títulos, toda sessão da lista se fazia nessa distinção, assim sucessivamente até o indício de um título mais importante, que vem a denominar “rei”. Talvez não surpreendentemente, fosse uma posição ocupada por um chefe do templo, daí o termo “sumo-sacerdote” ou “rei-sacerdote” que se figura na mesma literatura. Abaixo dele, todo o tipo de trabalho num templo era igualmente exercido sob comandantes, nem todos através de trabalho “manual”, mas comumente como arquivista ou contador, sendo que um termo referente a “administrador” refere-se muitas vezes ao próprio rei. Nesse sentido se faz necessário apresentar o conceito do mandato exercido.