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6.1 Arte Sequencial

7.5. CAPÍTULO 3: AQUELE QUE VIU O DESCONHECIDO

7.5.4 O LONGÍNQUO

Como descrito, o personagem Atra-Hasis – Utnapishtim – Ziusudra foi transferido num único ser, então seu atributo enquanto sobrevivente do Dilúvio, último rei Ante- Diluviano e o Longínquo Imortal, abrem infinitas possibilidades narrativas. Na minha intenção, ele se torna transmissor de uma sabedoria ante-diluviana, justifica a ferramenta narrativa de Sin-Leqe-Uninni enquanto editor, ao ser o revelador de segredos. O segredo consiste na afirmação de que reis não são imortais, afinal,

ninguém é. Ele explora o tema da morte enquanto sono, numa polaridade. Gilgamesh passa pelo teste do sono, sua fraude é revelada, e a lição que não aprendera com Shamash ou Siduri se faz de modo banal. Ele falha no teste, apenas para aprender a lição. Como Adapa, configura o motivo do “quase alcance da imortalidade”, e nisso, alcança uma transformação diferente da de Enkidu: se tornando finalmente, um adulto sagaz. Não pode negar a morte, apenas aceitar sua inevitabilidade (HARRIS, 2003, p.46). O espaço em que está, aqui considerado Dilmun, não equivale necessariamente à posição geográfica do assentamento histórico. Como identifiquei um anacronismo e a disposição fantástica da narrativa, a fala de Atra-Hasis revela um certo passar de tempo, ironicamente, refletido no seu lugar estacionário. Ele e a esposa estão vivendo como se fossem em um sonho, outra realidade, uma fantasia. Para alcançá-lo, Gilgamesh devia não somente de passar pelo “aqui-e-agora” de Uruk: ao atravessar o Oceano, atravessou o tempo. A dedicação de Atra-Hasis ao se referir ao tempo enquanto “devorador” se pode fazer como observação apenas porque está além de seu efeito. Tendo escapado do tempo humano, ele representa o arcaico, o ante- dilúvio. O tempo das origens, a foz dos rios, é o tempo dos numes, é possível admitir que tal dilúvio exista apenas na imaginação (MAIER, 1997, p.28).

Através dos personagens Atra-Hasis e Urshanabi, faz-se presente uma verdade crua, arcaica, e terrível, ao qual Gilgamesh se intima a dedicar o seu futuro em obras. Os dois seres irônicos assim são em função do destino que são seus fados, ao estarem no domínio e função de Ea. Julgando que a aparição de Enkidu e todo o episódio do Capítulo 1 e 2 foram tramados por Enlil e mediados por Shamash, aqui Gilgamesh está na presença de Ea, que não se revela, pois só o faz quando há um problema de difícil complexidade a resolver. O problema de Gilgamesh é um que só ele mesmo pôde resolver. No entanto, a piedade da esposa de Atra-Hasis (deixada não nomeada no texto) abre mais uma vez a possibilidade de Gilgamesh buscar outra vida – pela extensão da sua juventude. Uma em que, mais uma vez, deve falhar e se configurar no mesmo tipo de herói que Adapa. Sua história será contada agora por Urshanabi.

Todos os próximos eventos ecoam com paralelos ao início do Épico – a lavagem das roupas de Gilgamesh configuram um retorno à vida normal, uma iniciação como a de Enkidu. O episódio do fruto é uma narrativa do poeta em adiantar o nome de seu personagem (ancestral jovem). A serpente tem significado difícil de interpretar, no contexto de fantasia, aludi à um tipo de serpente (serpentes urnu). Como esse

elemento – decorrente da difícil tradução – se tornou isolado do contexto, admiti a possibilidade de interpretar a serpente como indivíduo do tipo que Gilgamesh tivera “destruído”. Pois, afinal, “a morte não quer o que lhe é banal”. A juventude obtida pelo fruto, no entanto, não configura sua intenção, mas sim como resultante da própria curiosidade – um elemento que tem motivado muitos personagens anônimos e acarretado as mais duras consequências em narrativas por longo dos tempos. Não tendo alcançado a vida eterna e perdendo a juventude para uma fera do poço, finalmente tem de se contentar com a vida, que afinal é melhor do que respirar do luto. Se Shamash convenceu Enkidu em seu leito de morte que a vida em sua completude tem o seu valor; Atra-Hasis e Urshanabi aqui argumentam várias vezes: a preservação da vida não é vida enquanto felicidade perfeita ou vida eterna. Buscar a vida é necessário (“dos corajosos a glória é de Ea”), buscar o conhecimento, é penoso porém é o maior bem de um ser humano. Gilgamesh não foi ignorante enquanto teimosia, apenas resistiu o máximo que pôde ao horror existencial. Seu retorno à Uruk foi marcado pela resignação de ter obtido uma gnose oculta (MAIER, 1997, p.27). Seu retorno às muralhas fecham um ciclo, onde contempla a sua vida recente, a ausência de conselheiros e a dominação sobre seus medos e anseios, como num glorioso ato de crescimento. Sucede-se então uma narrativa que alude ao seu destino enquanto decreto de Enlil, da busca pela coragem, da sabedoria, na intenção de ser jovem porém experiente. O tempo se passa, e sua história poderá o tornar tão distante quanto Utnapishtim – porém será sempre relevante, pois será sempre lembrado como um jovem. Essa é sua característica fundamental, enquanto arquétipo do rei.

7.5.5. EPÍLOGO

Como referenciado à respeito do anacronismo da trama, este configura um ciclo com diversos momentos e não somente ao vínculo início e fim. A morte de Gilgamesh se passa em uma única página (página 140 da adaptação), o ciclo se fecha com o lamento solene sobre a morte do protagonista, pode ser comparado ao funeral de Enkidu (página 100). É um fim abrupto, cujo elemento cerimonioso se dá somente pela narração e em função da sua disposição em página inteira. A aparência do túmulo, ou leito de Gilgamesh na cerimônia é vagamente inspirada nos achados das tumbas reais de Ur; a tradição ritual está descrita como na versão de Sandars. A ambientação e a

disposição dos personagens figurantes deixa a narrativa aludir a uma prática que aos poucos vem sendo desmistificada em frente à luz de novos achados pela arqueologia: um ritual de morte em massa, praticado pela elite – um sacrifício humano de membros da côrte, em função ritual de preparo para a próxima vida. Segundo a dra. Janet M. Monge da Universidade da Pensilvânia, “essas eram posições de honra”, onde a vida luxuriosa era paga pela morte, numa “troca”. “O mover-se para a próxima vida não era necessariamente algo a se temer”66 (MONGE, 2009). Nesse contexto, preservoo

costume nas palavras do épico, referindo-se que sua côrte está ao seu lado. Isso é deixado à livre interpretação. O que se pretende mostrar (e acaba se tornando curioso para a audiência moderna) é que apesar de configurar os primórdios de literatura épica, pouco se dava importância ao momento de sua morte. Houvesse ou não tal ritual, a vida na grande terra era muito mais importante que a vida no submundo, cuja associação com esta vida não passa de reflexo, uma cópia, no máximo.

66 Tradução livre de conteúdo da matéria: At Ur, Ritual Deaths That Were Anything but Serene, publicada em 26 Out 2009 por John Noble Wilford para a New York Times. Disponível em

https://www.nytimes.com/2009/10/27/science/27ur.html – acesso em 18 Sep 2018.

Figura 77: Cerimônia fúnebre. Obra do autor.

Comparação a fragmento de crânio.

Fonte: New York Times, e University of Pennsylvania Archaeology Museum.

A descrição de Namtar aparece associada ao demônio do submundo da visão de Enkidu – nada garante que seja o mesmo – o fiz por função poética, afinal Namtar é o sukkal, 'ajudante', 'ministro' (BLACK; GREEN, 1992, p.77) de Ereshkigal, e isso por si só dá sequência à função da deusa mesmo tornada invisível na trama. Há ainda uma aparição despretensiosa de Ningizzida. Para referência, essa divindade é associada às árvores, serpentes, e procede do submundo (através de Ninazu) ou dos céus (Anu) em versões distintas, sabe-se que viaja até Kur, e é um dos habitantes do firmamento de Anu, tanto que atendeu Adapa quando este esteva lá. É invocado na lamentação e funeral por ele mesmo fazer esta passagem no inverno e outono (LAMBERT, 1990, p.293). Com seu extenso significado, o apresento de maneira misteriosa a aludir pela presença da serpente, um de seus atributos, na característica da renovação da vida senciente (animal) ou não (vida vegetal) enquanto uma troca de pele. Aqui se finda a explicação de vida e morte como essências.

Figura 78: Ningizshida, motivo do senhor da serpente

Fonte: Museu do Louvre (Valette, 2013); Ward, 1910; Museu de Arte de Cleveland (Daderot, 2012) Museu do Brooklyn (Sailko, 2014)

O final da trama acaba de forma sorrateira, tal como na tradução poética, cuja descrição da Tábua XII exclui o elemento anômalo do capítulo referente à Enkidu no submundo. Para a adaptação, tracei Kur como o reino tétrico já descrito. Admite-se aqui que vive apenas uma vez, esse é o fado humano, logo as palavras de Siduri ecoam como uma forma anterior do carpe diem e do Eclesiastes (VAN DER TORN, 2000, p.22). A presença de fantasmas (FINK, 2013, p.96) se atesta na mitologia, porém, como sombras, não são a mesma coisa que um ser vivo, ainda que exijam ritos de passagem (e libações, oferendas aos mortos). Nesse sentido, o fechamento da trama assume que a única vida que temos é essa, o que se preserva dos ancestrais é somente memória.

Logo, a introdução do escriba-asipu retoma o que fora discutido no tópico Tempo. A história passa a ser tão referente à Sargão e sua dinastia quanto foi de Gilgamesh: afinal, seus feitos ressoaram nos feitos de seus sucessores, e como ele alterou a ordem cósmica ao ter invadido e saqueado como primeiro mercenário os domínios de Humbaba, fica explícito que o mesmo ocorre na Grande Terra: tal como durante o reinado de Naram-Sin, o mesmo se vestia como se representavam os numes (SELZ, 2008, p.20), configurando grave afronta aos deuses; no mesmo tempo o E-Kur foi destruído, há quem associe à própria dinastia acadiana como se fosse amaldiçoada, em seu declínio67. Afinal até aos reis se dá um fado onde certas

dinastias declinam como “lua minguante”, deuses permitem que exista sofrimento, quando falhamos de cumprir a organização do céu e terra, seu julgamento se trata de lotes que nos é desconhecido – um sacrifício individual não é o fim do mundo. Muitas vezes, gerações pagam pela sua progênie, e sua progênie pagam por si pelos ancestrais. À cerca de Sargão, ele derrubou as famosas muralhas; no período da poetisa Enheduanna, o E-Anna foi destruído por uma rebelião local. Isso não pode ser ignorado pelo asipu, que questiona do favor dos deuses. Se coloca mais uma vez a linha de procedência, e a imortalidade indireta (isto é, “reconhecimento”) em cheque. Após o período Babilônico antigo, a tradição do clamor de descendência divina se dissipa; alguns reis ainda clamam favor e união com Inanna, mas como se reflete no épico, Gilgamesh a negou, todas suas ações posteriores desmentem a ascendência divina. Sua rejeição a ela é a rejeição da filosofia acadiana e de Ur III.

67 A Maldição de Agade, texto Babilônico Antigo – Universidade de Oxford, ETCSL (tradução): http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section2/tr215.htm

Reis tornam-se apenas imagem do deus, mas são mortais, enfrentam um problema existencial à partir de agora – e Gilgamesh se torna paradigma humano, não pertence ao mundo dos deuses (FRYMER-KENSKY, 1997, p.102-103). O “personagem misterioso” coloca em cheque não só a procedência do personagem, mas também sua fama.

O Asipu (na adaptação, o próprio Sin-Leqe-Uninni) argumenta com esse outro oficial, um Ummannu – definição para adivinhos, exorcistas, sacerdotes, em contraste com os Apkallu meio animais, estes eram completamente humanos (LENZI, 2008, p.137) – debatendo a procedência da história, em sentido cronológico. Para descrever os numes, o Umannu logo se volta à descrição do Enuma Elish Babilônico. Sob a adaptação, incluo menções à tradições Assírias e Sumérias (Nammu, Kur), para traçar uma ascendência à figura de Marduk, enquanto filho de Ea, e o papel que desempenha nessa constante reorganização cósmica e política. Marduk aqui é sincretizado ao filho de Ea original, Asarluhi. Sobre ele nos interessa uma passagem numa encantação:

Nas águas do oceano, aterradora fúria, nas longínquas águas do mar; onde está o pequenino, seus braços estão presos! (…) Asarluhi, filho de Enki, o viu. Ele desvencilhou as fortes amarras, ele o colocou no caminho, à ele abriu uma via. A fechadura se abriu, os portões (foram) estendidos (…)”

tradução – (HARRIS, 2003, p.8)

Está claro aqui cuja função desempenha no contexto dessa encantação: auxilia o nascimento. A figura do mar (Tiamat) está empregado como metáfora do fluído amniótico. Marduk suplanta sua função de encantamentos (de todo o tipo) num contexto onde Absu e Tiamat deixam de ser elementos constituintes essenciais e passam a ser entidades, cujo propósito se assemelhava ao de Enlil no dilúvio (o motivo do deus que não descansava pelo importúnio de sua progênie). Ao favorecer Marduk, o autor do Enuma Elish o fazia pela linhagem de Ea – ao transformar o Absu de um conceito a uma identidade criadora, derrotada por Ea (suplantando a função de Kur), está ligando Ea com a origem do tempo (KATZ, 2011, p.127-128). Ao mesmo tempo, Tiamat suplanta as funções de Nammu, agora interpretada como progenitora

dessa tríade Absu, Tiamat (sem união) e Ea (quando unida à Anu), onde quem a derrota é finalmente Marduk, cujas mãos agora moldam o mundo. Faz o trabalho dos deuses antigos, pois ele é jovem, e eles não são mais, configurando o motivo de uma sucessão de poderes, que se julgava impossível no momento do Gilgamesh histórico.

Na adaptação faço esse relato de sucessão brevemente, através da derrota de Kingu. Como o motivo de sucessão se repete em Atra-Hasis, o igualo com Geshtu-E, mas reitero as diferentes condições: Kingu é “trabalhador inexperiente”, se põe junto à ordem precedente em função de impedir a mudança. Geshtu-E, o deus dos sentidos, era sacrificado para a criação de novos funcionários, os humanos, porque outros deuses, os igigi, se rebelaram (MARK, 2011). O “sangue do demônio nas veias” cumpre função de que cada nascimento configura um padrão que já estava estabelecido, refletindo o funcionamento do cosmo. Seja como for, menciono a participação de Ninmah mais uma vez, ironizando a “manufatura de construtos”: trata- se de um nicho onde simula-se um detalhe mencionado no ciclo de Atra-Hasis: em função do problema da super-população (KILMER, 1972, p.161), deuses começaram a criar infertilidade; demônios que raptam crianças; e começaram a dedicar moças para serviço dos deuses em castidade, servindo como virgens, inclusive em sentido monástico (HARRIS, 2003, p.9). Nada disso é mencionado aqui, fica apenas sugerido

Figura 79: Marduk (desenho a partir de selo cilíndrico);em comparação, quadro da página 144.

ao leitor que existam forças contra e a favor da procriação exacerbada, em todas as esferas do mundo habitados por numes ou mortais. Disso se diferem as proveniências como lotes pré-definidos. Nesse contexto, entramos na história de Adapa, por motivos de brevidade, na adaptação é igualado à figura ambígua de Oannes, ou Uanna. Isso o configura como um dos Apkallu, não somente enquanto ofício, mas como um dos sete, que acompanhava Ea, como um arquétipo do sábio (SANDERS, 2017, p.62). Uanna é o primeiro deles. O sub-enredo referente aos Apkallu, que se descreve na lista dinástica suméria como ausentando-se do lado dos reis primeiro no período de Gilgamesh e daí em diante, serve para introduzir a história da “criação da humanidade”, onde alude a história de Adapa, completando com Gilgamesh o “motivo daquele que quase alcançou a imortalidade”.

Até aí o “ummanu” faz colocações que colocam os eventos em planos cronológicos, as divindades em procedência, sugerindo hereditariedade e inclusive genética. O faz para introduzir o nicho histórico que o Épico se encontra, Ur-III, onde o Rei Shulgi se glorificava como filho de Ninsun, seu pai Ur-Nammu morreu em batalha, admite-se que em morte, encontrou Gilgamesh no mundo inferior, e foi recebido como herói (KRAMER, 1963, p.131). Isso serve ao personagem misterioso para admitir que estes reis foram enganados à respeito de seu ancestral, e estavam fazendo

Figura 80: Uanna-Adapa e os Apkallu (página 144). Obra do autor. Comparação com representações dos Apkallu.

exatamente o que não fez Gilgamesh suceder – em vez de aprender com os ancestrais, eram fadados a repetir seus erros por buscar o que não havia – uma morte diferente, uma vida imortal, uma vida após a morte. Esse feito é refletido em Adapa.

Revela-se então como se o umannu fosse um apkallu, num sentido poético próprio, onde se tem a distinção que diferente dos primeiros (que os sucederam), não eram completamente humanos. Procede de um tempo anterior, que afinal segundo ele estava prestes à voltar, não mais como conselheiros do rei, mas como gênios provendo das sombras, distribuindo seu conhecimento por vias iniciáticas. Eis que se torna inegável que Urshanabi é esse “Apkallu”. Sua aparência é aludida na figura da página 145; onde se faz a referência da capacidade de Marduk poder agora tirar uma alma ou ser lançado ao “fundo do rio”, que ecoa nos Salmos 18:16 (WALTON; MATTHEWS; CHAVALLAS, 2000, p.56). Tratando-se do anacronismo, a aparência de apkallus em relevos se faz aparente no Período Neo-Assírio, sobretudo no reinado de

Figura 81: Selos cilíndricos com figura análoga aos Apkallu passariformes.

Período Assírio Intermediário (Séc. 11-12 a.C.). Fonte: The Morgan Collection. Outras representações, comparadas a obra do autor (pág.145).

Fonte: Museu das Civilizações da Anatólia, Ankara. © Williams, 2016. Museu Britânico (Amin, 2017).

Assurbanipal. Uso isso como artifício de resolver esse sub-enredo, justificando a presença de Urshanabi exatamente onde e quando Gilgamesh necessitava que estivesse. Sucede-se a sua eventual transferência à Uruk, e à inegável associação com Ea através de Gilgamesh – afinal, ele é servo dos dois terços, indicado na etimologia de seu nome (FINK, 2014, p.76). Exceto que os 'dois terços' como se apresenta aqui não é Gilgamesh mas sim Ea, que está presente em todo o épico – mas passa desapercebido, está oculto. Ele, e não Shamash ou Sin, é quem conduz o personagem. Os poderes de Marduk não o eclipsam, apenas o escondem, mas Urshanabi nos mostra que, diferente dos outros deuses que se ausentaram, ele continua a exercer o seu trabalho, ao criar criaturas estranhas (MAIER, 1997, p.27). Fica sugerido que o próprio Gilgamesh é uma dessas criaturas, afinal, se levarmos em conta o problema de sua linhagem genealógica, a Lista Dinástica nos conta que foi filho de um “espectro” (FINK, 2013, p.96). Para resolver essa associação, leva-se em conta a numerologia dos deuses (ex.10 para Ishkur-Adad, 20 para Utu- Shamash, 30 para Nanna-Sin, 40 para Enki-Ea, 50 para Enlil, 60 para Anu) enquanto vale notar que usando um sistema sexagesimal (McEVILLEY, 2012, cap.3), ao contrário do decimal helênico: 40 aqui então corresponde com dois terços. Desse discurso com Urshanabi, o asipu, aludido como sendo o Sin-leqe-uninni através de sua primeira fala: “Ó Sin! Aceite minha prece!” (GEORGE, 2003, p.27), passa então os segredos “ante-diluvianos” e todo o motivo dos sábios meio-humanos, que percorrem na longa viagem ao espaço e tempo, para a tábua que está escrevendo. Denomina a tábua de “Aquele que Viu o Desconhecido”, que chega até nós como O Épico de Gilgamesh. Ele se apropria da referência do protagonista, o Lugal Arquetípico, para torná-lo como “exemplar da superioridade do conhecimento e aprendizado” (HARRIS, 2003, p.49). Ele valoriza o conhecimento em relação à conquista militar, e coloca o papel deste como fundamental pelas fundações (arquitetura, engenharia) de suas obras. Em relação ao tempo, e à colocação referente a “vivê-lo além das histórias”, se faz para quebrar o encanto da 'glória eterna' e da lembrança enquanto metáfora para imortalidade. Essa “glória” refletia o sitz im leben da versão suméria da obra, um “problema concomitante da mortalidade dos reis” do projeto de épico de Ur III. No entanto, “tal noção de reinado divinizado morreu com essa dinastia”. Por outro lado, as histórias, “projetadas para superarem a morte”, sobreviveram muito depois da dinastia que foram concebidas ter perdido o reinado (MICHALOWSKI, 2010, p.20-21).

A colocação à respeito da história ser escrita e compartilhada (a necessidade de Gilgamesh e do asipu em grafá-la) se faz da mesma maneira que a comparação da experiência entre os numes e a criação (pág.2 do quadrinho), porém aqui o reflexo ou imagem de um ao outro são projeções que lhe escapam a função subentendida: através do mito, não-verídico, se discursa algo verídico, para alcançar um resultado. Seu significado, no entanto, só pode ser percebido pela revelação do iniciado a outro iniciado. Ao resto do corpo social, lhe tomarão como fatos. Para essa função, ao assumir que Gilgamesh é “dois terços deus” especulava-se a natureza divina do rei (até o tempo de Assurbanipal, do épico em sua última edição até o tempo moderno), se tornando necessário explicar o fato de como ainda era mortal. O fim esboça uma intenção de Enki-Ea em induzir uma percepção evolutiva a cerca do tempo, para