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6.1 Arte Sequencial

8. RECURSOS NARRATIVOS

A transmissão de valores e sentimentos explícitos ao longo do roteiro partem de um constante processo de escolhas desempenhado pelo autor, classificáveis brevemente em acordo com a metodologia apresentada por McCloud (tópico 3). Apresentados os personagens, situações e locais descritos no objeto sujeito de adaptação, admite-se que essa função de escolha permeia inclusive a constância ou falta de, na aparição de certos elementos e personagens. Isso é comedido primariamente pelo corpo da trama (enredo, que nos apresenta o material a ser adaptado, o conteúdo) e posto em prática a seguir pelo roteiro, onde tal escolha se faz mais decisiva: ao ocultar certa passagem, optar por fazer uma alusão em vez de revelação, ou ainda reorganizar os eventos parcialmente. Neste processo se usa o primeiro (enredo) como critério seletivo de conteúdo e o tempo de exibição como mediador do ritmo da apresentação (de determinado conteúdo). Suas referências se tornam o próprio quadro e seus arranjos, da vista de página a página, ou de duas a duas. Para efeito ilustrativo, tomam-se algumas considerações à respeito da trama:

Até a página 12, praticamente todo o conteúdo é narrado, personagens relacionam entre si de forma não verbal. Temas são aludidos ou referidos de forma compatível à descrição da narração. O caçador é o primeiro a emergir do anonimato da narração, na página 13. A função de narração nesse breve episódio torna ao seu pai, mas ainda corre de maneira similar ao do flashback, em paralelo a visão de tempo futuro como fado, dando a entender que tudo que ocorre até aí é um conhecimento compartilhado por todas as partes envolvidas (exceto é claro, ao leitor). Supõe-se que tudo narrado é conhecido, no entanto configuram uma construção de mundo e sua apresentação a uma primeira leitura. A narração ocorre por uma voz extradiegética, isto é, fora da cena. Isso prossegue até a página 15, onde a caixa alta distingue o narrador “pai do caçador” com a voz “off”, de um “narrador geral” com tom descritivo. A partir da página 20, dois sub-enredos estão em andamento: a da iniciação de Enkidu e um “dia comum” para Gilgamesh. O tema que percorre ambos é a inevitabilidade de seu encontro e os devidos preparos para seu eminente confronto (cujos meios nunca são de certo previsto por ambas as partes). Apresento esses dois momentos por intermédio da própria narração, que faz colocações inequívocas de suas conclusões à partir de processos internos. Os dois enredos são narrados em voz

extradiegética, porém em certos momentos de transcendência, a narração se mistura com a do personagem, como indicada na página 33, onde Gilgamesh descreve a visão, enquanto colocações são referidas ao seu entorno (no caso, explicando Enkidu como “substância de Anu”, por exemplo – termo que é retomado por Ninsun). As cenas referentes à visões e sonhos perdem a estrutura de quadros formais, e os personagens se organizam por uma ordem hierárquica: ou de tamanho ou de ordem de leitura, induzida pelo fluxo dos quadros (ou balões). À isso tomo o exemplo da página 69, onde na ausência de um quadro formal, três “Gilgameshs” são divididos pela sua posição, tamanho, e os artefatos que empunham ou soltam, revelando uma mudança de posição, movimento.

Relembrando o contexto de sonho enquanto “mensagem dos numes prescrevendo os fados que hão de sobrevir a vida do ente e seu entorno” (em suma, um presságio), aqui torno essas visões mais carregadas de elementos e com espacialidades próprias, admitindo composições cromáticas mais exclusivas (ou com forte claridade [págs. 69-71] ou com escuridão acentuada [págs. 33-34, 39]). Ao fim de cada visão, ocorrem cortes abruptos com a narração de outros personagens, cuja aparição interrompe a visão – também em caráter menos material, a transição decorre da percepção do personagem imerso na visão voltando à sua consciência, à exemplo das páginas 36-37 (no caso, de Gilgamesh se dirigindo à Ninsun, onde a presença de Enkidu na página não passa de visão) ou na 39-40. Em exemplo único, tal “desfazer” do sonho se dá em função mais gráfica: ao Gilgamesh ter de volta em suas mãos suas armas e apetrechos “tomando forma”, novamente após a visão na montanha (pág. 71). À respeito da simetria, há vários exemplos onde utilizei o recurso de página dupla para garantir unidade na narrativa, de modo a sintetizar as várias atividades num único momento. Com estas se formam a possibilidade de explorar uma única imagem com detalhes em um plano de fundo, onde tudo que ocorre e diz respeito a um personagem em destaque: mesmo sem mostrá-lo nas cenas ao fundo, ainda são associáveis ao seu estado atual (à exemplo de Enkidu, nas páginas 27-28).

Configuram uma transição de dois estados do personagem em questão (Gilgamesh, páginas 115-116), mostram reações de personagens diferentes à mesma situação (Inanna e Enlil, págs. 125 e 126 em oposição), ou cumprem papel dispositivo (páginas 3-4, que apresentam os precedentes do épico e 'sucessores' de Gilgamesh). O exemplo das páginas 133-134 configuram uma simetria, em função de um layout

alternativo, mas seguem também um fluxo sequencial. O principal critério sobre o uso de tal recurso é a estabilidade dos conteúdos nas unidades de duas a duas páginas. Cada conflito e solução se faz através da trama num mínimo de uma a duas dessas unidades, pois uma primeira vista já revela todos elementos visuais presentes do início ao fim dessas páginas. Muitas transições se fazem apenas pela virada de páginas (à exemplo do teste do sono, págs. 129-130, concluída na 131), outras são solucionadas numa unidade (a perda do fruto para a serpente, págs. 135-136), deixando na sequência não a solução do conflito, mas uma reclamação do personagem que sofre o conflito: um desabafo, em todo caso. O mesmo serve para o momento de reclamação de Inanna (pág.92) ser resolvido no quadro da próxima página, em uma solução pouco concebível ao leitor que não está acostumado com o conteúdo do épico.

Faz-se necessário reconhecer o papel desempenhado nas diferentes composições cromáticas e nas transições: não somente entre tempos, mas de deslocamento entre diferentes cenários. Tratando-se de uma adaptação, pouco refere- se no material traduzido à respeito de cenas e suas especificidades, que não de desrições básicas à respeito do momento em que se passam – do dia ou de noite, por exemplo. Isso permite uma grande liberdade interpretativa. O critério utilizado sobre as particularidades dos cenários foi primariamente em repetir a menor quantidade

possível de paletas de cores, optando menos por esquemas definitivos de 'dia e noite' e se focando principalmente nos locais enquanto cenários únicos e exclusivos na narrativa: ex. Definir 'Edin' ao invés de 'só mais uma campina'; ou mostrar a montanha de cedros em transição do dia à noite, da floresta às cinzas. A definição de floresta, por exemplo, entra em uma miríade de categorias e possibilidades, sobretudo pela localização imprecisa, sua distância e abundante vegetação. Na capacidade de detalhamento e particularidades do formato (A4), utilizei a sua recorrente aparência nas páginas 66-79 de maneira que pudesse mostrar a rápida e desastrosa mudança de uma floresta para um campo queimado. Sua aparência não se torna a mais verossímil à qualidade dos cedros – as especificidades da árvore são transmitidas à primeira menção da floresta (página 6), mas segue descrição oferecida pelo texto e se torna mais próxima de uma floresta-tipo em suas próximas aparições (sobretudo por distanciar a visualização das copas das árvores e focar na luta abaixo de sua sombra projetada). A duração da batalha com Humbaba segue uma periodização diferente das demais batalhas e episódios na adaptação: está presente nas primeiras páginas como motivo de apresentação à Gilgamesh, e quando finalmente emerge no segundo capítulo, tem mais uma vez uma narrativa característica de flashback, com um salto de eventos entre as páginas 73 e 74. Tal transformação de cenário, apesar de abrupta, é mediada pelo caráter da narração, e a sequência de eventos se torna orgânica o bastante para organizar um tempo decorrido entre o início da batalha e a subsequente exaustão do inimigo.

Uma ferramenta precisa de transmissão de algum valor ou sentimento na história desta adaptação é a expressão dos personagens (McCLOUD, 2006, p.81). Sua utilidade independe do uso de narração por escrito, e pode alterar o ritmo da história de um quadro ao próximo. Configura um espectro de relações próprio de cada personagem e expande suas capacidades de atuação, revelando ao leitor um pensamento que provavelmente estava oculto; ou uma nova faceta que não era conhecida do personagem (à exemplo: a mudança de expressão de Siduri na mesma unidade de página lado a lado, páginas 111-112, que é possível ser argumentada enquanto simetria). Com isto é possível representar mais humanidade e distinguir os personagens para quem não os reconhece no épico, e desconhece da funcionalidade e dos nuances de uma linguagem mais arcaica. Reiterando que a definição arcaica, enquanto fundamental, exige uso de brevidade com função: “Sua linguagem e sua arte são complexamente derivadas e sua linguagem vividamente direta serve seu

propósito” (FERRY, 2009, p.76). Como é da função de minha adaptação enquanto tradução, foi utilizado o recurso das expressões dos personagens em medida dos acontecimentos, possibilitando alívios na trama que não necessariamente estejam no corpo do texto – bem como introduzindo ironia onde não havia, e forçando decisão onde havia ambiguidade. A adaptação não é em nenhum momento isenta da capacidade atributiva de significados próprios do autor, pela interpretação do mesmo sobre o texto. Buscou-se projetar os anseios e a tragédia dos personagens de um meio para o outro, garantindo a interpretação dos momentos de introspecção e meditação, tal como nos momentos de ação e conflito. Há capacidade de identificar os processos de cada personagem e suas relações, estejam presentes subitamente ou internamente.

9. PRODUÇÃO

Ao final do processo de criação, o material foi devidamente fechado num formato digital (pdf). A respeito do intuito de conseguir um exemplar impresso (protótipo), se fez necessário o desenvolvimento de uma capa e a inclusão de páginas adicionais (para o fechamento dos cadernos), espaço usado onde o autor esclarece a respeito do enredo e o mesmo é apresentado ao leitor. Na edição final foram utilizadas as fontes Gosmick Sans (Gemfont) e Suplexmentary Comic Font (Jayvee Enaguas) disponibilizadas através de dafont.com; e a Dragon Bones, pela Blambot. Na capa, utilizo a fonte Constantia Regular (Microsoft) para um excerto. O logotipo é de minha autoria.

Desenhos de personagens individuais, editados sob um fading monocromático e em sequência figuram numa fileira, pouco acima do centro da capa. O fundo é branco, vazio, e o protagonista está no canto direito, direcionado para a esquerda, em frente ao logotipo desenvolvido. Para este foi utilizado o formato cuneiforme enquanto estilo, formando os tipos que constituem o nome do Gilgamesh. Faço isso pelo apelo desse formato em remeter ao período que se desenvolveu a obra, cumprindo uma função estética. A capa de trás contém uma breve sinopse, um excerto de N.K. Sandars e imagens retiradas do conteúdo do quadrinho, em baixa opacidade.

Após o período de qualificação, foram feitas impressões teste, em couché 120g, para assegurar a capacidade de leitura do material e estipular a parecença da cor impressa e do material original, cujo desenvolvimento foi primariamente digital. O protótipo final foi comissionado em um serviço de gráfica. Pelo volume de material, foi requerida uma capa dura. Devido ao limite do orçamento do próprio autor, a opção mais viável do material foi impressão em offset 90g, em contraste com o couché 120 dos testes. Já era advertido alguma diferença nas cores. O formato se manteve em A4, para manter a mesma qualidade do texto e legibilidade. Em seguida, foi impresso um boneco do material, em preto e branco, para conferir a sequência de páginas e a montagem dos cadernos. No total constam 148 páginas de conteúdo.

O resultado final apresentou destoação em cores tons de pele (pigmentação mais avermelhada ou amarelada), ignorou a transparência de algumas áreas de brancas, e houve super-saturação de tons escuros (cenas mais escuras se perderam, como na página 108 – personagens como Namtar se tornaram indistinguíveis do fundo sombrio que o cerca). O texto mais próximo as margens causa pequeno desconforto devido ao volume do material. O espaçamento, no entanto, foi respeitado.

Figura 88: Impressão de protótipo. Obra do autor

Sobre a capa, a característica monocromática das figuras seguiu praticamente um único tom, e nota-se que a dobra da lombada alcançou parte do conteúdo da capa, mesmo que minimamente. Porém todos os possíveis defeitos não comprometeram a experiência de leitura ou danificaram o conteúdo de modo irreparável. As observações se mantém para eventuais impressões. Com este exemplar único é possível obter um meio mais direto ao analisar a leitura do quadrinho e receber eventuais propostas para seguintes publicações.