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1. As origens: o consenso em torno das comissões parlamentares num quadro monocameral

1.2. O anteprojecto mais antigo

O anteprojecto-base da Constituição do Estado Novo encontra-se ainda distante daquele que viria a ser divulgado na imprensa em Maio de 1932, tanto no que se refere à sistematização e extensão, como no que concerne à configuração do sistema corporativo e à sua relação com os órgãos do Estado9. Mas as características principais do articulado publicitado já estão bem patenteadas. Por isso mesmo, deter-nos-emos numa análise mais pormenorizada. Ao mesmo tempo que nos referiremos ao articulado-base, faremos alusões às anotações marginais de Salazar.

O nacionalismo é uma marca evidente deste anteprojecto, em conjugação com o corporativismo e com princípios da tradição liberal. Assim, a «soberania reside de direito em a Nação» (art. 175.º) e «são órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judicial, independentes e harmónicos entre si» (art. 176.º). O Estado é classificado como «liberal, social e corporativo». Esta fórmula já estivera presente no primeiro projecto do manifesto da União Nacional10. Era acrescentado que o Estado «reüne, coordena e harmonia na sua organização política os cidadãos, com as suas garantias e direitos individuais, a sociedade […], a família, as autarquias regionais e locais e as corporações morais e económicas» (art. 5.º). Mas o Estado também era caracterizado como «orgânicamente democrático e representativo», pelo que «baseia a ordem jurídica na igualdade de todos perante a lei […] [e] promove e assegura a interferência de todos os elementos estruturais da Nação na vida política […] na feitura das leis. De imediato (art. 7.º), assegurava-se que a forma de governo seria a República.

No título II, são elencados direitos e garantias individuais. São asseguradas as liberdades de crença religiosa (art. 19.º), de convicções e opiniões políticas (art. 20.º), de expressão de pensamento, «sem dependência de caução, censura ou autorização prévia» (art. 21.º), de reunião e associação (art. 25.º), ainda que fosse remetido para diploma especial a regulamentação do seu exercício. É garantida a inviolabilidade do domicílio (art. 26.º) e da correspondência (40.º).

Das corporações, cuja «organização integral […] será promovida pelo Estado» (art. 61.º), trata o título V. As morais serão «universitárias, scientíficas, literárias e artísticas, tecnicas, de assistência e beneficência e cultuais». As primeiras são substituídas por «políticas» e as

9 Cf.: Projecto de Constituição. Texto Dactilografado com Emendas (Servirá de Base à I Ed. Impressa),

(AOS/CO/PC-5, fls. 107-172); Quadro A do Anexo n.º 1.

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últimas são eliminadas11. É aberta a possibilidade de corporações de funcionários públicos, ainda que apenas para fins especiais (art. 62.º). Quanto às corporações económicas, serão, de acordo com o mesmo artigo, de proprietários urbanos e rurais, de agricultores, de industriais, de comerciantes, de retalhistas, de empregados do comércio, de artes e ofícios e de trabalhadores. Os retalhistas são retirados e são acrescentados os empregados da indústria e da agricultura. Associações sindicais, federações e confederações são igualmente previstas (art. 63.º), sendo declarada a nulidade dos contratos colectivos de trabalho celebrados sem a intervenção das primeiras (art. 101.º).

As corporações morais e económicas recenseadas intervirão na eleição do Presidente da República e das câmaras legislativas (art. 64.º), sendo acrescentadas as eleições dos Conselhos de Província e das Câmaras Municipais. Note-se que foi incluída uma disposição que previa um período transitório até à conclusão da organização das corporações morais e económicas (art. 314.º). Nos casos das câmaras legislativas e dos corpos administrativos, a capacidade eleitoral passiva era definida pela pertença às corporações (art. 65.º).

Na eleição do Presidente da República, tomariam parte, para além das corporações morais e económicas, as Juntas de Freguesia, as Câmaras Municipais, as Juntas (emendado para Conselhos) de Província e os colégios corporativos coloniais (art. 179.º). Salazar eliminou a figura do vice-presidente da República, eleito de acordo com o mesmo sistema e na mesma ocasião do Presidente, que exerceria funções no caso de vacatura (art. 190.º-193.º).

A eleição do Congresso, formado pela Câmara dos Deputados (não mais de 90 membros) e pelo Senado (não mais de 70), processar-se-ia da mesma forma que a do Presidente da República, mas sem o concurso das Juntas de Freguesia e das Câmaras Municipais (art. 198.º). Os vogais dos corpos administrativos das freguesias e dos municípios seriam eleitos pelos chefes de família (art. 57.º).

No anteprojecto-base, o chefe do Estado apenas respondia perante a Nação, sendo explicitado que as suas funções seriam independentes das votações do Congresso (art. 188.º). Nomeava livremente e demitia o presidente do Conselho de Ministros e os ministros (neste caso mediante proposta do primeiro: art. 232.º/§1.º) e dirigia mensagens ao Congresso (art. 227.º). Podia ainda, no uso de autorização do poder legislativo ou em caso necessidade pública, promulgar decretos para vigorarem como leis, necessitando de deliberação do Conselho de Ministros e sendo necessário, no segundo caso, apresentá-las, posteriormente, ao Congresso para aprovação (art. 228.º). As suas demais atribuições eram exercidas por intermédio dos

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ministros (art. 230.º), sendo necessário, na aplicação de quase todas, presidir expressamente ao Conselho de Ministros (art. 235.º). Aliás, a referenda ministerial também era sempre necessária, à excepção das mensagens ao Congresso e, acrescentou Salazar, na sua mensagem de resignação (art. 232.º). O chefe do Estado podia dissolver ou convocar (extraordinariamente, tal como foi introduzido, para deliberar por urgente necessidade pública) o Congresso, cujas sessões também encerrava ou prorrogava. Representava a Nação, dirigia a política externa (art. 227.º). Não possuía direito de veto, devendo promulgar as leis no prazo de 15 dias (arts. 222.º).

O mandato do Presidente da República seria de sete anos, mas sem possibilidade de reeleição imediata (art. 184.º). No entanto, era assegurado que o mandato do Presidente da República em exercício seria de sete anos desde a tomada de posse (art. 318.º). Nos termos do Decreto n.º 15063, de 25 de Fevereiro de 1928, Óscar Carmona fora directamente eleito para um mandato de cinco anos e poder-se-ia recandidatar uma única vez, de imediato. Com este anteprojecto, não haveria reeleição, mas o mandato seria prolongado por mais dois anos (até 15 de Abril de 1935).

O presidente do Conselho, primeiro-ministro, e secretário de Estado era responsável perante o Presidente da República pela política geral do Governo. Os ministros eram responsáveis perante o presidente do Conselho de Ministros e o Presidente da República (art. 232.º). O Conselho de Ministros reuniria quando o seu presidente ou o chefe do Estado «julg[assem] indispensável» (art. 235.º). Os membros do Governo não dependiam de qualquer votação no Congresso (art. 236.º), ainda que nele devessem comparecer, «quando […] necessário» (art. 237.º). Esta última disposição foi emendada pelo punho de Salazar: «enviarão por escrito […] as explicações que forem pedidas […] ou que eles próprios julguem convenientes»12.

Aos deputados e aos senadores competia fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, velar pela observância da Constituição, organizar a defesa nacional, os limites dos territórios da Nação e o poder judicial, criar bancos ou institutos de emissão, regular a circulação fiduciária, autorizar o executivo a fazer a guerra (salvo caso de agressão eminente ou efectiva por forças estrangeiras), declarar o estado de sítio em caso de agressão externa ou grave perturbação interna, com suspensão total ou parcial das garantias constitucionais num ou mais pontos do território (caso não estivesse reunido caberia ao executivo) e deliberar sobre a antecipação em cinco anos (dos 15 regulares, de acordo com o art. 311.º) da revisão constitucional (art. 215.º).

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Outras competências do Congresso foram alteradas pelo ministro das Finanças. Orçar a receita e fixar a despesa, votando os impostos, foi alvo de uma substituição pela redacção do art. 91.º/n.os 3.º e 4.º da Constituição de 1933. A criação e a supressão de empregos públicos, estipulando o vencimento, foram igualmente objecto de emenda: criação e supressão de «serviços públicos e fixar os princípios gerais da sua organização»13. A criação e a supressão de alfândegas, a administração e alienação dos bens nacionais foram competências liminarmente eliminadas. Relativamente a outras competências (peso, valor e denominação das moedas, padrão dos pesos e medidas, criação de bancos ou instituições de emissão e normas da circulação fiduciária e organização do poder judicial) ou permaneceram inalteradas ou sofreram ajustamentos na redacção.

Salazar alterou igualmente a disposição que determinava o âmbito das leis aprovadas pelo Congresso. No texto-base, estava previsto que seriam «constituídas por disposições gerais, bases jurídicas ou aprovação dos regimes que nêles tenham de vigorar» (art. 215.º/§1.º). Salazar substitui este parágrafo por um artigo novo, segundo o qual «as leis feitas pelo Poder Legislativo […], salvo as derivadas das propostas do Poder Executivo, devem restringir-se à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos»14.

Outra modificação do ministro das Finanças reporta-se ao alcance da interferência do presidente do Conselho na admissão de projectos de lei. De acordo com a disposição originária, apenas as iniciativas sobre pronúncia criminal de ministros e sub-secretários de Estado escapavam à prévia anuência do presidente do Conselho de Ministros (art. 219.º). O responsável pelas Finanças substituiu aquela excepção por um sistema diverso: apenas os projectos que «envolva[m] aumento de despesa ou agravamento tributário» necessitarão de anuência do chefe do Governo. Também no sentido da tutela do executivo sobre a acção parlamentar no plano financeiro, a introdução, por Salazar, de mais uma garantia, agora no termo do processo legislativo: o adiamento da «execução das leis de iniciativa parlamentar que, diminuindo receitas ou aumentando despesas, não incluam disposições que importem no orçamento compensação suficiente»15.

As legislaturas seriam de cinco anos e as sessões legislativas durariam quatro meses. Salazar alterou estes prazos para quatro anos e três meses, acrescentando, no último caso, que seriam improrrogáveis. As câmaras funcionariam em separado, em sessões privativas de secções especializadas e em sessões plenas (arts. 201.º-204.º). Os seus membros votariam de forma

13 Projecto de Constituição, fls. 155-156.

14 Projecto de Constituição, fl. 157. Este artigo terá sido expressamente sugerido por Quirino de Jesus: Art. 216. As leis feitas pelo Poder Legislativo (AOS/CO/PC-5B, fl. 452).

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«absolutamente livre e independente de sugestões ou indicações de quaisquer grupos políticos ou de instruções ou insinuações de qualquer entidade» (art. 208.º).

A iniciativa legislativa competia, indistintamente, a deputados e senadores e era necessária a aprovação por parte de ambas as câmaras. As excepções referiam-se à prioridade da discussão na Câmara dos Deputados dos projectos sobre impostos, organização militar (em ambos os casos foram logo retiradas), crimes de responsabilidade e revisão da Constituição (art. 218.º). De uma emenda de Salazar, resultaria que o poder executivo apresentaria as suas propostas na Câmara dos Deputados, onde seriam primeiramente discutidas. No caso de haver alterações na outra câmara, a de apresentação do projecto tinha de as aprovar; se não o fizesse, procedia- se à reunião de ambas para uma deliberação (arts. 224.º-225.º). Para assegurar a eficiência das instituições parlamentares e evitar que qualquer das câmaras pudesse retardar o labor da outra, previa-se que um projecto aprovado numa delas teria de ser objecto de deliberação na outra até final da sessão legislativa subsequente (art. 223.º). Findo esse prazo, acrescentaria Salazar pelo seu próprio punho, a câmara inicial poderia voltar a deliberar sobre o mesmo projecto, como se tivesse sido objecto de emendas na outra, aprovando-o, se assim ainda o entendesse, e enviando-o para promulgação.

O poder executivo podia decretar poderes de revisão constitucional, sobre pontos determinados, antes das eleições para o Congresso (art. 312.º). Esta norma chegaria à definitiva Constituição, entretanto, esclarecida: mediante decreto do chefe do Estado, com assinatura de todos os ministros, e após consulta ao Conselho de Estado.