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1. As origens: o consenso em torno das comissões parlamentares num quadro monocameral

1.1. Panorâmica geral

A 19 de Março de 1933, foi realizado em Portugal o plebiscito sobre o texto constitucional constante do Decreto n.º 22241, de 22 de Fevereiro de 19332. De acordo com o Decreto n.º 22229, publicado no dia anterior, a nova Constituição considerar-se-ia aprovada se obtivesse o voto concordante da maioria dos eleitores inscritos no recenseamento de 19323. As abstenções seriam «tàcitamente» consideradas como votos concordantes. A Acta da Assembleia-Geral de Apuramento seria publicada no Diário do Governo de 11 de Abril de 1933. Nesse dia, a Constituição do Estado Novo entrou em vigor.

Em 28 de Maio de 1932, o Governo presidido por Domingos de Oliveira publicou na imprensa um projecto de Constituição, com o objectivo de o submeter a discussão pública4. Até àquela data, Salazar, ainda na pasta das Finanças, ponderou vários e sucessivos articulados de uma nova Lei Fundamental para o regime. Nesta fase, o futuro presidente do Conselho coordenou os trabalhos constituintes, auscultando quem entendia nos intervalos das reuniões da principal instância de decisão nesta matéria, o Conselho de Ministros. Por seu lado, o Conselho Político Nacional (criado pelo Decreto n.º 20643, de 22 de Dezembro de 1931) manteria um papel subalterno e meramente formal, limitando-se a validar um texto já fixado, depois de longamente discutido (António de Araújo, 2007: 149-212).

Os anteprojectos de Constituição que são trabalhados por Oliveira Salazar até à divulgação do texto para discussão pública revelam as suas preocupações centrais (Anexo n.º 1). A organização do Estado não podia assentar nas instituições políticas liberais, sendo necessário superar o parlamentarismo e o sistema de partidos. O nacionalismo e o corporativismo surgiam como recursos ao serviço de tais objectivos. O poder político seria centralizado no executivo, completamente autónomo das assembleias eleitas.

Existem várias diferenças entre os diferentes projectos que foram trabalhados pelo então ministro das Finanças. No que diz respeito à relação entre a organização corporativa a implementar e os poderes do Estado, assim como à composição dos órgãos legislativos, verificam-se importantes alterações. A configuração da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa situa-se no termo de um complexo percurso.

2 Cf. rectificação dos n.os 4 e 5 do art. 1.º e da al. b) do §único do art. 99.º (DG, 4.3.1933). 3 O Decreto n.º 22229, de 21.2.1933, seria novamente publicado no DG de 23.2.1933. 4

No entanto, estas modificações, quando ponderadas no seu conjunto, atestam, sobretudo, ajustamentos ou aperfeiçoamentos num modelo genérico bem consolidado. Representação orgânica ou corporativa, mas de extensão variável nos órgãos do Estado. O sufrágio directo apenas surgiria numa fase já avançada, mas sempre existiram elementos típicos da tradição liberal. Mandatos de duração elevada, ou pelo menos superior aos da I República. Eleição do Presidente da República, mas com alterações sensíveis no respectivo sistema. Duas câmaras legislativas, integral ou parcialmente electivas, com poderes igualmente variáveis, ainda que sempre limitados e com um funcionamento fortemente restringido. Chefe do Governo e demais ministros nomeados e demitidos livremente pelo Presidente da República, perante o qual seriam responsáveis. Chefe de Estado e Governo sempre independentes de quaisquer votações parlamentares, com o primeiro a deter poder de dissolução do Parlamento, pelo menos da sua câmara baixa, após consulta ao Conselho de Estado. Vastíssimos poderes legislativos por parte do Governo.

A estabilidade do sistema e a preponderância do executivo são as notas dominantes ao longo do tempo. Mesmo que as atribuições, composição e denominações dos órgãos do poder político fossem alvo de modificações, persistiam ou eram aperfeiçoadas as garantias necessárias à manutenção daqueles objectivos centrais. O pano de fundo da sua definição é, por contraposição, a I República, cuja Constituição se situa entre as fontes do primeiro anteprojecto que serviu de base aos trabalhos constituintes.

Não é fácil compatibilizar os anúncios ou os relatos sobre o ponto de partida dos trabalhos constituintes com o mais antigo dos documentos que vamos analisar. É seguro afirmar que, nos finais de 1931, o então ministro das Finanças tenha imprimido um ritmo seguro e continuado ao projecto político de redacção e de aprovação da nova Constituição. Nessa altura, os trabalhos já eram irreversíveis. Mas o anteprojecto-base da Constituição que vamos analisar pode remontar ao contexto em que foi aprovado o Acto Colonial (Decreto n.º 18570, de 8 de Julho de 1930) e, principalmente, apresentado o Manifesto da União Nacional (30 de Julho de 1930), clarificado por intermédio do famoso discurso de Salazar (1935: 69-96) na Sala do Conselho de Estado.

Terá sido por esta última ocasião que, de acordo com Marcelo Caetano (2000: 141-145), Salazar recebeu de Quirino de Jesus uma proposta de Constituição. Este último (1932: 6 e 211-240) declarara expressamente ter interferido no texto colocado em discussão pública. A intervenção de Quirino de Jesus remete para o anteprojecto-base a que nos iremos referir e até para a elaboração de um relatório justificativo (António de Araújo, 2007: 307-328), cuja parte inicial foi publicada no Diário da Manhã entre 29 de Maio e 28 de Junho de 1931. Quirino de

Jesus (1932: 6 e 240-245) declara igualmente ter interferido no Manifesto da União Nacional, cuja base de trabalho possui evidentes conexões com aquele anteprojecto5.

Até à divulgação do projecto de Constituição na imprensa, vamos distinguir quatro fases principais no processo constituinte, de acordo com as versões dos articulados que são conhecidas. As distinções que fazemos num reduzido período temporal destinam-se a apurar o momento preciso em que a Câmara Corporativa é instituída e o respectivo alcance, ponderando ainda os órgãos que a antecedem. Os principais marcos cronológicos resultam, principalmente, das anotações feitas por Salazar nos anteprojectos que trabalhou e que são compatíveis com os dados fornecidos pela imprensa da época.

Em princípios de Janeiro de 1932, Salazar apresenta ao Conselho de Ministros um articulado que, até então, trabalhara como entendeu, a partir do anteprojecto-base fornecido por Quirino de Jesus (primeira fase). O Ministério discute-o ao longo de um mês e o ainda responsável pela pasta das Finanças, que, paralelamente, distribuíra o mesmo anteprojecto aos seus conselheiros privativos, fica encarregue de introduzir as modificações aprovadas (segunda fase). Ao fazê-lo, acrescenta outras alterações e procede a mais consultas, apurando alguns elementos e estabelecendo uma versão destinada a ser aprovada pelo Conselho de Ministros em Março de 1932 (terceira fase). O Conselho Político Nacional será então formalmente consultado, para além das personalidades que Salazar entende que devem ser auscultadas, de tal modo que o projecto regressa ao Conselho de Ministros para aprovação definitiva e divulgação na imprensa (quarta fase).

Entre os sucessivos articulados, as diferenças situam-se, sobretudo, na configuração das instituições do poder legislativo. Em Janeiro de 1932, é abandonado um sistema bicameral, de base orgânica. Da opção pelo monocameralismo, com representação mista e com recurso a um corporativismo moderado, resulta a Câmara Corporativa, depois de ser ponderada como Câmara dos Representantes.

A primeira fase do processo constituinte poderá ter tido início em Julho de 1930 e prolongou- se até às primeiras discussões formais em Conselho de Ministros em Janeiro de 1932. Para além de Salazar, Quirino de Jesus será um dos intervenientes neste período, mas seguramente que não o único. De acordo com Marcelo Caetano, Domingos Fezas Vital já estaria a ser consultado pelo ministro das Finanças.

Nesta fase inicial, foram trabalhados sucessivos projectos até à fixação daquele que viria a ser debatido no Conselho de Ministros, em Janeiro de 1932. O anteprojecto-base que iremos

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analisar foi aqui produzido. Num sistema bicameral, a Câmara dos Deputados e o Senado possuem a mesma base orgânica. Mas o Governo da ditadura tomou conhecimento, em 4 de Janeiro de 1932, de uma posterior versão. A principal característica do anteprojecto debatido pelos ministros consiste na existência de um senado formado por membros por direito próprio (em função do cargo).

A segunda fase inicia-se com a discussão entre os membros do Governo, em 4 de Janeiro de 1932, e estender-se-á até 16 de Fevereiro6. Nesta última data, é estabelecida uma versão impressa que incorpora as emendas resultantes da discussão entre os ministros. O articulado que Salazar vai trabalhando neste período será debatido com Domingos Fezas Vital. Convém referir que Afonso Lucas e Quirino de Jesus conheceram o teor do documento que chegou ao Conselho de Ministros. Também foi intenção de Salazar auscultar Martinho Nobre de Melo ou Dinis da Fonseca. O ministro das Finanças não concedeu ao Governo o exclusivo da discussão7, mas tudo indica que respeitou as suas deliberações. Das reuniões do Conselho de Ministros, resultou um sistema monocameral. Ao lado da Assembleia Nacional, estaria a incipiente e pouco autonomizada Câmara dos Representantes, que chegou a ser designada por Salazar como Câmara de Corporações.

A terceira fase estende-se entre 16 de Fevereiro de 1932 e a aprovação pelo executivo em 5 de Março. Para além de Fezas Vital, também Nobre de Melo foi ouvido. Quirino de Jesus conheceu e comentou uma versão intercalar. Neste período, os trabalhos de Salazar caracterizam-se pela preocupação em apresentar aos seus colegas do Governo uma versão do projecto constitucional que se destinasse a ser definitivamente aprovada. Para além de incorporar as emendas resultantes de uma primeira ronda negocial com os seus pares, durante o mês de Janeiro, o novo articulado seria, sobretudo, o reflexo das suas consultas particulares. Em Março, os ministros já seriam confrontados com a Câmara Corporativa.

Finalmente, a derradeira fase decorre entre a decisiva do Conselho de Ministros, a 5 de Março de 1932, e a divulgação do projecto na imprensa, a 28 de Maio. Neste período, são processados ajustamentos formais e decorrem as reuniões do Conselho Político Nacional, a 5 e a 11 de Maio. A aprovação da última redacção do projecto terá saído do Conselho de Ministros de 25 de Maio8. Para além de Mário de Figueiredo e José Alberto dos Reis, membros do Conselho Político Nacional, Salazar conservou os contributos da consulta

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O DM regista reuniões diárias do Conselho de Ministros, de segunda a quinta-feira (na sexta, decorria a reunião ordinária) entre 4 e 21 de Janeiro, para tratar exclusivamente da futura Constituição.

7 Cf. uma nota de Salazar sobre a distribuição do documento destinado a ser discutido em Conselho de Ministros,

e que o próprio designa como a II Edição (AOS/CO/PC-5B, fl. 25).

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efectuada a Afonso Lucas, que, uma vez mais, terá discutido o documento com Pequito Rebelo e Hipólito Raposo, e vincado isso mesmo na resposta a Salazar. O projecto assumia a sua versão definitiva, tendo em vista a divulgação pública.

No processo constituinte, os contributos dos conselheiros privados do ministro das Finanças são atendidos de forma diversa. A Fezas Vital foi concedida a maior audiência, mesmo que a situemos num plano essencialmente técnico. É um elemento de continuidade e é notório que Salazar valoriza os seus comentários. Por seu turno, os contributos de Afonso Lucas, como elemento de contacto com os sectores integralistas, encontram-se no pólo oposto: várias vezes auscultado, mas pouco atendido, pelo menos nos pontos que consideraria fundamentais. A importância de Quirino de Jesus parece mais evidente no ponto de partida, o que não é negligenciável. Terá estabelecido a base de trabalho, reduzindo a escrito as características essenciais da futura Lei Fundamental. Continuou a ser consultado, mas os seus contributos não terão sido decisivos para as modificações que foram sendo introduzidas. Mário de Figueiredo e José Alberto dos Reis intervêm apenas no final, mas os comentários que efectuaram parecem ter tido repercussões.

O Conselho Político Nacional foi confrontado com um anteprojecto muito próximo da derradeira versão. O modelo genérico de Constituição já estava assente e o articulado também se encontrava em adiantada fase de consolidação. Os órgãos do poder político encontravam-se definitivamente configurados. A Câmara Corporativa possuía a designação precisa, depois do seu perfil ter sido anteriormente estabelecido.

No centro dos trabalhos constituintes encontra-se António de Oliveira Salazar. A sua liderança é evidente, tanto no agendamento, como na metodologia. Recebe um projecto, mas só lhe dá continuidade quando e como entende. Efectua as consultas que pretende e decide das suas repercussões. O processo de decisão é remetido para o Conselho de Ministros, com o intercalar aval conferido pelo Conselho Político Nacional. Salazar não impõe um rígido modelo pré-estabelecido. Procede a consultas e estabelece negociações. Não cede nos pontos que considera nucleares, mas recolhe sugestões e procede a rectificações, mesmo sobre elementos importantes. A projecção da Câmara Corporativa constitui o melhor dos exemplos. As críticas públicas ao projecto de Constituição divulgado em 28 de Maio de 1932 incidiram em elementos que não colidiam com o órgão auxiliar da Assembleia Nacional. Nas correcções introduzidas em ordem à aprovação por plebiscito, a Câmara também não ocupou um lugar central.