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1. As origens: o consenso em torno das comissões parlamentares num quadro monocameral

1.4. A Câmara dos Representantes

Na sequência das reuniões do Conselho de Ministros em Janeiro de 1932, o Senado com membros por direito próprio seria substituído pela Câmara dos Representantes. No projecto estabelecido em 16 de Fevereiro de 1932, alguns dos membros da segunda câmara eram transferidos para a nova Assembleia Nacional. Referimo-nos aos governadores das Colónias (interesses coloniais) e aos antigos presidentes do Ministério (interesses políticos) que tivessem exercido o cargo por mais de um ano. Na Assembleia, também teriam assento os ex- presidentes da República (art. 86.º/§1.º)17.

A substituição do Congresso pela Assembleia Nacional é acompanhada da criação de «uma Câmara de representantes dos interesses fundamentais da Nação», que se destinava a funcionar junto da nova instituição (art. 87.º). Aqueles interesses são assim definidos: «defesa nacional, administrativos, coloniais, culturais, profissionais e económicos». Face ao anterior Senado, mantêm-se os interesses culturais e económicos, sendo acrescentados os administrativos e os profissionais. São eliminados os interesses espirituais e judiciais, enquanto os de segurança e ordem pública são substituídos por defesa nacional. A sequência é completamente alterada, obedecendo, aparentemente, a uma lógica meramente pragmática. É remetida para lei ordinária a forma de designação dos representantes dos interesses ou o modo de escolha por parte das «respectivas corporações».

A subalternização desta nova instituição resulta, antes de mais, da sistematização global do anteprojecto e traduz a opção de fundo pelo monocameralismo. É a propósito da composição da Assembleia Nacional que é referida a existência de «uma Câmara de representantes dos interesses fundamentais na Nação». Nos artigos subsequentes será denominada como «a Câmara dos Representantes» (arts. 88.º-89.º, 98.º, 101.º-102.º e 107.º). Note-se ainda que

17 Cf.: Ed. de 16-2-932. VI edição (Pª. revisão com o Doutor F. Vital) (AOS/CP/PC-5, fls. 368-390); Quadro C

todas as disposições que se lhe referem são correlativas das que se aplicam à Assembleia Nacional.

Neste articulado, o Congresso, e não a Câmara dos Deputados, foi directamente substituído pela Assembleia Nacional. Não ocorreu apenas uma rearrumação pelos novos órgãos legislativos da representação que anteriormente tinha sido estabelecida para o Senado.

As competências desta nova Câmara dos Representantes são aquelas que irão ser definitivamente conferidas à Câmara Corporativa: dar parecer por escrito sobre todas as propostas e projectos de lei presentes à Assembleia Nacional antes de nesta ser iniciada a discussão (art. 98.º). Funcionará por secções especializadas, ao contrário da Assembleia Nacional, e é aberta a possibilidade de, no intervalo das sessões, o Governo efectuar consultas directas, sendo que, para tal, a própria câmara nomeará uma comissão permanente de dez membros (arts. 100.º e 101.º). Os ministros ou seus representantes ou os deputados que tenham sido responsáveis pelos projectos de lei a relatar pela nova câmara poderão tomar parte nas específicas discussões desta câmara (art. 101.º/§2.º).

Há um evidente paralelismo entre as competências da Assembleia Nacional e as da Câmara dos Representantes para verificar e reconhecer os poderes dos seus membros, eleger as respectivas mesas (incluindo os presidentes) e elaborar os regimentos (arts. 88.º e 107.º). Por confronto com o anteprojecto da fase anterior, foi retirada a disposição sobre a escolha do presidente da Assembleia Nacional por parte do Governo.

Notam-se ainda outras três normas que não deixam se ser algo incipientes. Aparentemente, terão sido elaboradas como simples substituições ou adaptações das que anteriormente se referiam ao Congresso, em geral, ou ao Senado, em particular. Refira-se que a expressão Congresso foi substituída, face ao anterior anteprojecto, por Assembleia Nacional. Por essa razão, efectuaram-se alguns esclarecimentos nas disposições do anterior Senado que seriam aplicáveis à nova Câmara dos Representantes.

Quanto às vagas que ocorressem, era definido que seriam preenchidas pelos «legítimos substitutos nas funções que exercem, ou escolhidos pela forma por que o tiverem sido os substituidos» (art. 89.º/§único). Percebia-se que o assento na nova instituição ocorreria por direito próprio (em função do cargo) e por escolha pessoal. Se antes nada se dizia quanto aos membros por direito próprio do Senado, era agora acrescentada esta disposição no que se referia à substituição dos deputados. Recorde-se que seria a lei ordinária a definir os processos de designação dos representantes dos interesses.

No capítulo sobre as regalias e responsabilidades dos deputados, era aplicado aos membros da Câmara dos Representante o direito a um subsídio mensal a que os deputados tinham direito

durante o período das sessões, como opção, no caso de serem funcionários (art. 94.º). Tratava- se, anteriormente, de um direito dos membros do Congresso.

A possibilidade de ouvir, consultar ou solicitar informações de estações oficiais ou de corporações, que também tinha sido facultada aos membros do Congresso, era agora conferida aos deputados e às secções da Câmara dos Representantes, com prévia autorização ministerial para o caso de entidades oficiais (art. 102.º). Note-se, o que é interessante e que adiante esclareceremos, que não era uma faculdade dos membros da instituição, individualmente considerados, mas das suas instâncias internas de organização e de funcionamento, ou seja, das secções.

O sentido da projecção da Câmara dos Representantes pode descobrir-se em notas de Salazar18, aparentemente redigidas no período que conduziu a esta versão do projecto constitucional (António de Araújo, 2007: 44-45). A intenção central reside num perfil corporativo «temperado»19. Tudo indica que o ministro das Finanças se reporte à transformação a operar no anterior Senado, ainda que se pudesse inferir estar em causa um atributo geral do sistema. De um lado, um órgão de representação «popular e municipalista» (a nova Assembleia Nacional) e, de outro, uma instituição de perfil corporativo, «com representação de interesses», incluindo os «serviços públicos» (a nova Câmara dos Representantes)20.

Num outro conjunto de notas, também da autoria de Salazar, é justificada a criação desta nova instituição21. A sua redacção será contemporânea da mais relevante alteração efectuada durante a segunda fase constituinte (António de Araújo, 2007: 55-56). A forma como estão estruturados estes apontamentos do ministro das Finanças permite supor que o novo órgão se destinava a compensar ou equilibrar a prévia opção pelo monocameralismo. Desde logo porque ponderava que continuasse a ser designado, «como até aqui», por Senado. Depois, porque o título ou o encadeamento dos tópicos decorre da consideração da Assembleia Nacional como a única câmara. No entanto, também se pode inferir uma mudança simultânea de ambas as instituições num quadro que agora se previa monocameral: da Câmara dos Deputados para a Assembleia Nacional e, ao mesmo tempo, de um tipo específico de Senado para outro.

18

Cf. A ordem das matérias apresentadas pelo Mº da Justiça (AOS/CO/PC-5, fls. 74-98).

19 A ordem das matérias apresentadas pelo Mº da Justiça, fl. 90.

20 III edição limpa; ed. distribuída aos Ministros. Serviu de base às discussões em Conselho de Ministros (Janeiro de 932). Mº das Finanças, fl. 281 (AOS/CO/PC-5, fls. 267-290).

21

Assim, a transformação do Senado em Câmara dos Representantes destinar-se-ia a apoiar a Assembleia Nacional, constituindo «um alto corpo consultivo, representante de todos os interesses», funcionando apenas e só por secções, que «seriam ouvidas (substituindo assim as antigas comissões da Camara dos Deputados) em todos os projectos ou propostas de lei, dando o seu parecer por escrito». Caso as propostas «fossem de interesse geral», poder-se-ia reunir em «sessão conjunta de todas as secções». No interregno da Assembleia Nacional, uma «delegação deste Senado poderia funcionar permanentemente, dando o seu parecer sobre os dec. leis e dec. com autorização legislativa de iniciativa do governo»22.

Esta mudança possuía interessantes justificações. Em primeiro lugar, decorria de uma crítica do Senado tal como estava previsto no anteprojecto anterior, com membros por direito próprio. Depois, resultava das lacunas que a Câmara dos Deputados apresentava. Neste último ponto, o pano de fundo tanto podia ser o seu funcionamento específico durante a I República como aquele que se verificava na generalidade dos sistemas políticos. Em ambos os casos, uma composição de cariz corporativo não implicaria mudanças substanciais nos objectivos centrais.

Detenhamo-nos na apreciação do Senado tal como era previsto no anteprojecto que foi apresentado ao Conselho de Ministros em Janeiro de 1932. Para Salazar, esta instituição teria dificuldades em funcionar «pelo relevo e contradições dos diferentes interesses». Um segundo problema dizia respeito à «falta de atenção pelo interesse geral» que os membros por direito próprio, em função do cargo exercido, tenderiam a manifestar. Acrescentaria, ainda, o ministro das Finanças que «os interesses de classe [seriam] ouvidos depois da votação do interesse geral», o que, na sua perspectiva, constituía «o inverso da realidade». Supõe-se que estivesse a referir-se à admissão, discussão e aprovação das propostas legislativas do Governo, primeiro, na Câmara dos Deputados e, só depois, naquele Senado. Finalmente, afirma que «a representação de interesses não deve ser deliberativa mas consultiva». Esta crítica não pode ser circunscrita àquele Senado, dado que também poderia ser aplicada à anterior Câmara dos Deputados, vista a sua composição. Estamos diante de um conjunto de justificações de uma dupla mudança institucional ou do quadro geral do sistema legislativo23. Passemos aos comentários de Salazar que se referem à Câmara dos Deputados. Em primeiro lugar, é registada a sua «inaptidão» para o exercício de uma vasta e continuada função legislativa. Em seguida, faz notar que as suas comissões manifestavam «incompetência […] para darem pareceres». Finalmente, considera que «os deputados nunca puderam funcionar

22 Assembleia Nacional, fls. 34, 35, 35v. 23

em secções», demonstrando, assim, «as suas características essencialmente políticas». Este perfil eminentemente político das câmaras de deputados era o resultado de uma evolução que, para o ministro das Finanças, «convém não alterar»24.

O objectivo era, portanto, assegurar a eficiência dos trabalhos legislativos, mantendo, e não contrariando, o sentido da realidade. A organização dos poderes do Estado a partir de uma base corporativa constituía apenas um instrumento para alcançar aqueles objectivos. A evolução que era observada nos regimes contemporâneos tornava inevitável a existência de uma instituição de perfil político. Até por isso, podiam nela ter assento os elementos com «a maior experiência política (Pres da República e Pres. do Ministério)»25. Só por si, a representação corporativa não garantia resultados ao nível da legislação produzida.

O cerne do problema residiria, então, nas comissões parlamentares. Constituiria um considerável avanço se estas não fossem formadas pelos deputados, enquanto “políticos”, mas por representantes de «interesses de classe». Funcionando em privado, não ocasionariam conflitos entre si. Pronunciando-se previamente sobre os projectos legislativos, os interesses parcelares seriam depois devidamente ponderados, articulados e integrados no «interesse geral», que os deputados “políticos” em plenário representavam.

O pragmatismo de António de Oliveira Salazar é bem evidente nesta transformação. Com o bicameralismo a dar lugar ao monocameralismo, a nova Câmara dos Representantes mais não seria do que o conjunto das comissões especializadas da Assembleia Nacional. Eventualmente por isso, a primeira não seria um órgão de soberania, nem sequer o seu presidente foi desde logo incluído entre os membros do Conselho de Estado.

A antecessora directa da Câmara Corporativa era entendida como um simples conjunto de comissões da Assembleia Nacional. Esta compreensão foi alterada, ainda durante o processo constituinte. Mas não seria completamente erradicada. Não só marcaria os primeiros tempos de funcionamento daquela que era uma das maiores singularidades do Estado Novo, como não deixaria de contribuir para a indefinição que sempre a caracterizou.

Resta acrescentar que neste anteprojecto resultante da primeira ronda decisória em Conselho de Ministros era prevista, pela primeira vez, a aprovação da Constituição por intermédio de plebiscito (art. 136.º).

24 Assembleia Nacional, fl. 37. 25