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Por meio da fala ou do canto, os futuros pais costumam se emocionar com sua capacidade de fazer com que o filho in utero dê chutinhos e se mexa.

Embora você nunca deva lhes dizer isso, o mais provável é que o feto esteja dormindo profundamente. Antes do nascimento, o bebê humano passa quase todo o tempo em um estado semelhante ao sono, grande parte do qual se parece com o estado de sono REM. Portanto, o feto adormecido não tem consciência das performances dos pais. É mais provável que os socos e chutes sentidos pela grávida sejam fruto de explosões aleatórias de atividade cerebral que tipificam o sono REM.

Os adultos não exibem — ou pelo menos não deveriam exibir — chutes e movimentos noturnos similares, uma vez que são contidos pelo mecanismo paralisador do corpo do sono REM. Mas no útero o cérebro imaturo do feto ainda não desenvolveu o sistema inibidor dos músculos presente no sono REM de que os adultos dispõem. Contudo, outros centros profundos do cérebro do feto já foram posicionados, incluindo os que geram o sono. De fato, no fim do segundo trimestre de desenvolvimento (por volta da 23a semana de gestação), a maioria dos mostradores e interruptores neurais requeridos para produzir sono NREM e sono REM já foram esculpidos e conectados. Por causa dessa disparidade, o cérebro do feto ainda gera comandos motores formidáveis durante o sono REM, com a diferença de que não há paralisia para contê-los. Sem restrição, tais comandos são livremente traduzidos em movimentos corporais frenéticos, sentidos pela mãe como saltos acrobáticos e socos de um peso-pluma.

Nesse estágio do desenvolvimento uterino, a maior parte do tempo é passada dormindo. O período de 24 horas contém uma desproporção de

cerca de seis horas de sono NREM, seis horas de sono REM e doze horas de um estado de sono intermediário que não se pode afirmar com segurança ser um ou outro, mas com certeza não é plena vigília. É somente quando o feto entra no último trimestre que surgem os vislumbres do verdadeiro despertar. Entretanto, eles são muito menos do que você imaginaria: o feto passa apenas de duas a três horas de cada dia acordado.

Ainda que o tempo total de sono diminua no último trimestre de gestação, ocorre um aumento paradoxal e espetacular do tempo de sono REM. Nas duas últimas semanas de gestação, o consumo de sono REM pelo feto aumenta para quase nove horas por dia. Na última semana antes do parto, a quantidade atinge um recorde da vida inteira: doze horas por dia. Ou seja, com apetite quase insaciável, o feto humano duplica sua fome por sono REM logo antes de vir ao mundo. Não há outro momento durante a vida de um indivíduo — pré-natal, pós-natal inicial, adolescência, idade adulta ou velhice — em que ele sofra uma mudança tão extraordinária na necessidade de sono REM ou se banqueteie tão fartamente com ele.

Mas o feto sonha durante o sono REM? Provavelmente não da maneira que a maioria de nós considera sonho. Entretanto, sabemos de fato que o sono REM é vital para promover a maturação do cérebro. O desenvolvimento de um ser humano no útero ocorre em estágios distintos, interdependentes, um pouco como a construção de uma casa. Não se pode coroar uma casa com um telhado antes que haja estruturas de paredes nas quais apoiá-lo, e não se pode erguer paredes sem um alicerce no qual assentá-las. O cérebro, como o telhado de uma casa, é um dos últimos itens a se desenvolver. E, como um telhado, há subestágios para esse processo — é preciso que haja uma estrutura do telhado antes que se possa acrescentar as telhas, por exemplo.

A criação detalhada do cérebro e de suas partes constituintes ocorre em um ritmo acelerado durante o segundo e o terceiro trimestres do desenvolvimento humano — justamente a janela de tempo em que a quantidade de sono REM dispara. Isso não é uma coincidência: o sono REM atua como um fertilizante elétrico nessa fase crítica do início da vida.

Explosões estonteantes de atividade elétrica durante o sono REM estimulam o crescimento exuberante de vias neurais por todo o cérebro em desenvolvimento e depois proveem cada uma com um saudável buquê de extremidades conectoras, ou terminais sinápticos. Pense no sono REM como

um provedor de internet que povoa novos bairros do cérebro com muitas redes de cabos de fibra óptica. Por meio desses raios de eletricidade inaugurais, o sono REM então ativa seu funcionamento de alta velocidade.

Essa fase do desenvolvimento, que impregna o cérebro com uma grande quantidade de conexões neurais, é chamada de sinaptogênese, pois envolve a criação de milhões de elos de conexão, ou sinapses, entre os neurônios.

Trata-se de uma primeira etapa superentusiástica da instalação do computador central do cérebro. Há uma grande quantidade de redundância, o que possibilita que muitas configurações de circuitos possíveis surjam no cérebro do bebê assim que ele nascer. Da perspectiva da analogia do provedor de internet, todas as casas, por todos os bairros, em todos os territórios do cérebro foram agraciadas com um elevado grau de conectividade e largura de banda em sua primeira fase de vida.

Encarregado de uma tarefa tão hercúlea de neuroarquitetura — estabelecer as rodovias neurais e as ruas secundárias que engendrarão pensamentos, memórias, sentimentos, decisões e ações —, não admira que o sono REM domine a maior parte da vida em desenvolvimento inicial, quando não toda ela. Na verdade, isso vale para todos os outros mamíferos:1 a época da vida em que o sono REM é maior é o mesmo estágio em que o cérebro está passando pela maior construção.

De forma inquietante, o ato de perturbar ou prejudicar o sono REM do cérebro de um bebê em desenvolvimento — antes do parto ou logo após — gera consequências. Nos anos 1990, pesquisadores começaram a estudar ratos recém-nascidos. Observou-se que seu progresso gestacional foi retardado simplesmente pelo bloqueio do sono REM, embora o tempo cronológico avançasse — os dois deveriam, é claro, avançar em uníssono.

Privar os ratos bebês de sono REM impediu a construção de seu telhado neural — o córtex cerebral. Sem o sono REM, o trabalho de montagem no cérebro parou aos poucos, congelado no tempo pela cunha experimental de uma falta de sono REM. Dia após dia, o perfil semiacabado do telhado do córtex cerebral privado de sono não mostrou qualquer sinal de crescimento.

O mesmo efeito foi demonstrado em várias outras espécies mamíferas, sugerindo que ele provavelmente é comum entre animais dessa classe.

Quando enfim foi permitido aos ratos bebês ter algum sono REM, a montagem do telhado cerebral recomeçou, porém não se acelerou e jamais

entrou nos eixos por completo. Um cérebro bebê sem sono será um cérebro para sempre não inteiramente construído.

Uma ligação mais recente com o sono REM deficiente diz respeito ao transtorno do espectro autista (TEA) (não confundir com o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade [TDAH], que será discutido mais tarde neste livro). O autismo, do qual há várias formas, é uma enfermidade neurológica que emerge cedo no desenvolvimento, em geral por volta dos dois ou três anos de idade. O principal sintoma do transtorno é a falta de interação social — indivíduos que o apresentam não se comunicam ou se envolvem com outras pessoas com facilidade ou da forma mais habitual.

Nossa compreensão atual do que causa o autismo é incompleta, porém o que parece ser central para o estabelecimento da enfermidade é uma conexão inapropriada do cérebro durante o início do desenvolvimento, especificamente na formação e no número de sinapses — isto é, uma sinaptogênese anormal. Desequilíbrios em conexões sinápticas são comuns em indivíduos autistas: quantidade excessiva de conectividade em algumas partes do cérebro, deficiência em outras.

Tendo isso em vista, os cientistas começaram a examinar se o sono de indivíduos com autismo é atípico. E ele é. Bebês e crianças pequenas que mostram sinais de autismo, ou que foram diagnosticados com essa condição, não apresentam padrões ou quantidades de sono normais. Os ritmos circadianos das crianças autistas também são mais fracos do que o de suas homólogas não autistas, mostrando um perfil mais achatado de melatonina no período de 24 horas em vez de uma forte elevação na concentração à noite e queda rápida durante todo o dia.2 Em termos biológicos, é como se o dia e a noite fossem muito menos claros e escuros, respectivamente, para os indivíduos autistas. Por causa disso, há um sinal mais fraco para o momento em que a vigília estável e o sono profundo deveriam ocorrer. Além disso, e talvez de maneira relacionada, a quantidade de sono que crianças autistas podem gerar é menor do que a de crianças não autistas.

Contudo, o mais notável é a significativa escassez de sono REM.

Indivíduos autistas apresentam um déficit de 30% a 50% na quantidade de sono REM em relação a crianças sem autismo.3 Tendo em mente o papel do sono REM na criação de uma massa equilibrada de conexões sinápticas no

cérebro em desenvolvimento, há agora um intenso interesse por descobrir se a deficiência de sono REM contribui para o autismo.

No entanto, a evidência existente em seres humanos é simplesmente correlacional. O mero fato de o autismo e anormalidades no sono REM andarem de mãos dadas não significa que uma coisa cause a outra. Essa associação tampouco nos revela a direção da causalidade caso ela exista: é o sono REM deficiente que causa o autismo, ou o contrário? Todavia, é curioso observar que privar seletivamente um rato bebê de sono REM leva a padrões aberrantes de conectividade neural, ou sinaptogênese, no cérebro.4 Além disso, ratos privados de sono REM durante a primeira infância tornam-se depois adolescentes e adultos socialmente esquivos e isolados.5 Independentemente das questões de causalidade, o monitoramento de anormalidades do sono representa uma nova esperança diagnóstica para a detecção precoce do autismo.

É óbvio que nenhuma gestante precisa temer que cientistas perturbem o sono REM de seu feto em desenvolvimento. No entanto, o álcool pode infligir a mesma remoção seletiva de sono REM: ele é um dos mais poderosos repressores de sono REM de que se tem conhecimento. Discutiremos a razão pela qual o álcool age dessa forma e as consequências dessa perturbação do sono em adultos em capítulos posteriores. Por enquanto, vamos focar o impacto do álcool sobre o sono em fetos em desenvolvimento e recém-nascidos.

O álcool consumido pela mãe atravessa depressa a barreira placentária e por isso logo impregna o feto em desenvolvimento. Por saber disso, cientistas examinaram primeiro a situação extrema: mães que eram alcoólatras ou que bebiam muito durante a gravidez. Logo após o parto, o sono desses neonatos foi avaliado mediante o uso de eletrodos na cabeça. Os recém-nascidos de mães que bebiam muito passaram muito menos tempo no estado ativo do sono REM em comparação com bebês de idade similar, mas filhos de mães abstêmias durante a gestação.

Em seguida, os eletrodos mostraram uma história fisiológica ainda mais preocupante. Recém-nascidos de mães que bebiam muito não tinham a mesma qualidade elétrica de sono REM. Como você deve se lembrar do Capítulo 3, o sono REM é exemplificado por ondas cerebrais deliciosamente caóticas, ou dessincronizadas: uma forma vivaz e saudável de atividade

elétrica. Entretanto, os bebês de mães que bebiam muito apresentaram uma redução de 200% nessa medida em relação aos bebês nascidos de mães abstêmias. Pelo contrário, os bebês de mães que bebiam muito exibiram um padrão de onda cerebral muito mais sedentário nesse aspecto.6 Se você está se questionando se estudos epidemiológicos já associaram o consumo de álcool durante a gravidez a uma probabilidade maior de os filhos dessas mães desenvolverem doenças neuropsiquiátricas, incluindo o autismo, a resposta é sim.7

Felizmente hoje em dia a maioria das mulheres não bebe em excesso durante a gravidez. Mas o que se pode dizer da situação mais comum de uma gestante que toma uma ou duas taças de vinho de vez em quando? Por meio do monitoramento não invasivo da frequência cardíaca, junto com medidas de ultrassom de movimento corporal, dos olhos e da respiração, agora somos capazes de determinar os estágios básicos de sono NREM e de sono REM de um feto. Lançando mão de tais métodos, um grupo de pesquisadores estudou o sono de bebês que nasceriam dentro de apenas algumas semanas. As grávidas foram avaliadas em dois dias sucessivos. Em um, elas beberam fluidos não alcoólicos; já no outro consumiram cerca de duas taças de vinho (a quantidade absoluta foi controlada com base no peso corporal). O álcool reduziu significativamente a quantidade de tempo que os fetos passaram em sono REM em comparação à condição sem álcool.

A bebida também diminuiu a intensidade de sono REM experimentada pelos fetos, definida pela medida-padrão de quantos movimentos rápidos dos olhos adornam o ciclo de sono REM. Além disso, os fetos sofreram uma acentuada queda na respiração durante o sono REM, com a frequência respiratória caindo do padrão normal de 381 por hora durante o sono natural para apenas quatro por hora com o feto inundado de álcool.8

Além da abstinência de álcool durante a gravidez, o período da amamentação também merece menção. Nos países ocidentais, quase metade de todas as lactantes consome álcool nos meses em que dão o peito.

O álcool é logo absorvido no leite materno e sua concentração se assemelha muito à presente na corrente sanguínea da mãe: um nível de 0,08 de álcool no sangue da lactante resultará em um nível de cerca de 0,08 de álcool em seu leite.9 Recentemente foi descoberto o que o álcool no leite materno faz com o sono do bebê.

Recém-nascidos costumam passar direto para o sono REM após uma mamada. Muitas mães já sabem disso: assim que a sucção acaba, e às vezes antes mesmo que as pálpebras do bebê se fechem, sob elas os olhos começam a disparar da esquerda para a direita, indicando que o bebê agora está sendo alimentado por sono REM. Segundo um mito que já foi comum, o bebê dorme melhor se a mãe tiver tomado um drinque alcoólico antes da mamada — cerveja era a bebida sugerida. Para aquelas de vocês que são apreciadoras de cerveja, trata-se apenas disso: um mito. Vários estudos alimentaram bebês com leite materno contendo ou um sabor não alcoólico, como baunilha, ou uma quantidade controlada de álcool (o equivalente a um ou dois drinques). Quando bebês consomem leite com álcool, seu sono é mais fragmentado. Eles passam mais tempo acordados e sofrem uma redução do sono REM de 20% a 30% logo depois.10 Com frequência, os bebês até tentam recuperar parte desse sono REM perdido depois que eliminam o álcool da corrente sanguínea, mas isso não é uma tarefa fácil para seus sistemas inexperientes.

O que emerge de todos esses estudos é o fato de o sono REM não ser opcional durante o início da vida humana, mas obrigatório. Pelo visto, cada hora de sono REM conta, como fica evidente pela tentativa desesperada do feto ou recém-nascido de recuperar qualquer quantidade quando este é perdido.11 Infelizmente ainda não compreendemos por completo quais são os efeitos a longo prazo da perturbação do sono REM de fetos e neonatos, desencadeadas pelo álcool ou outros fatores. Sabemos apenas que o bloqueio ou a redução de sono REM em animais recém-nascidos dificulta e distorce o desenvolvimento do cérebro, gerando um adulto socialmente anormal.