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Nos anos transcorridos desde a revelação baseada na análise de Ester, descobrimos que os dois estágios do sono — NREM e REM — travam uma batalha recorrente, um jogo de empurra e puxa, pela dominação do cérebro ao longo da noite. A guerra cerebral entre os dois é vencida e perdida a cada noventa minutos,2 dominada primeiro pelo sono NREM, seguido pelo retorno do sono REM. Assim que termina, a batalha já recomeça, repetindo-se a cada noventa minutos. O monitoramento dessas flutuações extraordinárias e bruscas ao longo da noite revela a bela arquitetura cíclica representada na Figura 8.

No eixo vertical estão os estados distintos do cérebro, com a vigília no alto, depois o sono REM e então os estágios descendentes de sono NREM, do 1 ao 4. No eixo horizontal está a hora da noite, começando na extremidade esquerda por volta das onze da noite até as sete da manhã à direita. O nome técnico para esse gráfico é hipnograma (gráfico do sono).

Se eu não tivesse acrescentado as linhas verticais tracejadas demarcando cada ciclo de noventa minutos, talvez você não conseguisse ver um padrão se repetindo regularmente. Pelo menos não o que esperava a partir da descrição feita há pouco. A causa é outra característica peculiar do sono: o perfil assimétrico de seus estágios. Embora seja verdade que passamos de repente de um lado para outro entre o sono NREM e o sono REM, a proporção deles em cada ciclo de noventa minutos muda bastante no decorrer da noite. Na primeira metade da noite, a maior parte de nossos ciclos é consumida por sono NREM profundo e muito pouco sono REM, como pode ser visto no ciclo 1 da Figura 8. Entretanto, à medida que passamos para a segunda metade da noite, esse equilíbrio muda, com a maior parte do sono dominado por sono REM, com pouco ou nenhum sono NREM profundo. O ciclo 5 é um exemplo perfeito desse tipo de sono rico em REM.

Mas por que a Mãe Natureza projetou essa estranha e complexa equação de estágios do sono que se desdobram? Por que alternar reiteradamente entre o sono NREM e o sono REM? Por que não obter todo o sono NREM necessário primeiro para depois usufruir de todo o sono REM necessário?

Ou vice-versa? Se isso fosse apostar demais na possibilidade remota de o animal desfrutar apenas de uma noite de sono parcial em algum momento, então por que não manter a proporção entre cada ciclo igual, colocando uma porção parecida de ovos em ambas as cestas, por assim dizer, em vez de pôr a maior parte deles em uma no princípio para então inverter esse

desequilíbrio mais adiante? Por que variá-la? Ter projetado e colocado em ação biológica um sistema tão complicado parece ser uma quantidade exaustiva de trabalho evolucionário árduo.

Não há consenso científico quanto ao motivo por que nosso sono (e o de todos os outros mamíferos e aves) é cíclico nesse padrão repetível, porém muitíssimo assimétrico, apesar de existirem várias teorias. Uma proposta feita por mim é a de que a interação irregular para cá e para lá entre o sono NREM e o sono REM é necessária para remodelar e atualizar nossos circuitos neurais à noite e, ao fazê-lo, administra o espaço de armazenamento finito no cérebro. Forçado pela conhecida capacidade de armazenamento imposta por um número fixo de neurônios e conexões dentro de suas estruturas de memória, nosso cérebro precisa encontrar o

“ponto certo” entre reter informações antigas e deixar espaço suficiente para novas. Para equilibrar essa equação de armazenamento é necessário identificar quais memórias são novas e salientes e quais memórias já existentes são sobrepostas, redundantes ou simplesmente sem relevância.

Como será mostrado no Capítulo 6, uma função essencial do sono NREM profundo, que predomina no início da noite, é depurar e remover conexões neurais desnecessárias. Em contrapartida, o estágio onírico de sono REM, que prevalece mais tarde na noite, atua no fortalecimento dessas conexões.

Combine esses dois e temos pelo menos uma parca explicação de por que os dois tipos de sono se alternam e por que esses ciclos são dominados a princípio pelo sono NREM, com o sono REM reinando absoluto na segunda metade da noite. Considere a criação de uma escultura a partir de um bloco de argila. Ela começa com a colocação de uma grande quantidade de matéria-prima em um pedestal (aquela massa toda de memórias autobiográficas armazenadas, novas e velhas, oferecidas em sacrifício ao sono toda noite). Em seguida vem uma remoção inicial e ampla de matéria supérflua (longos períodos de sono NREM), após o que pode ser feita uma breve intensificação de detalhes iniciais (curtos períodos de sono REM).

Depois dessa primeira sessão, as mãos seletivas retornam para uma segunda rodada de escavação profunda (outra longa fase de sono NREM), seguida por um pouco mais de realce de algumas estruturas detalhadas que emergiram (um pouco mais de sono REM). Após vários outros ciclos de trabalho, o equilíbrio da necessidade escultural mudou. Todas as características centrais foram esculpidas grosseiramente a partir da massa original de

matéria-prima. Como resta apenas a argila importante, o trabalho do escultor e os instrumentos requeridos devem focar o fortalecimento dos elementos e o realce das características daquilo que resta (uma necessidade que requer majoritariamente as habilidades do sono REM, sobrando assim pouco trabalho para o sono NREM).

Dessa maneira, o sono pode administrar e resolver com elegância nossa crise de armazenamento de memórias, com a força escavadora geral do sono NREM predominando no início, depois do que a mão delineadora do sono REM mescla, interconecta e acrescenta detalhes. Como a experiência da vida está sempre mudando, exigindo que o catálogo de nossa memória seja atualizado ad infinitum, a escultura autobiográfica de experiências armazenadas jamais está completa. Por isso, o cérebro sempre requer a cada noite um novo turno de sono e seus variados estágios a fim de atualizar as redes de memória com base nos acontecimentos do dia anterior. Essa descrição é uma das razões (de muitas, suspeito) que explicam a natureza cíclica do sono NREM e do sono REM e o desequilíbrio de sua distribuição ao longo da noite.

Nesse perfil de sono em que o NREM predomina no início da noite, seguido por um domínio do REM mais tarde na manhã, reside um perigo do qual a maior parte das pessoas não tem noção. Digamos que você se deite hoje à meia-noite, mas, em vez de acordar às oito, obtendo oito horas completas de sono, você tenha que levantar às seis da manhã por causa de uma reunião ou porque é um atleta cujo treinador exige treinamentos de manhã cedo. Que porcentagem de sono você terá perdido? A resposta lógica é 25%, já que ao acordar às seis da manhã você cortará duas horas de sono do que seria de outro modo um período normal de oito horas. Mas isso não é de todo verdadeiro. Como o cérebro requer a maior parte do sono REM na última parte da noite, isto é, nas primeiras horas da manhã, você perderá de 60% a 90% de todo o seu sono REM, ainda que perca 25% do tempo total de sono. Isso vale para os dois lados. Se você acorda às oito da manhã, mas só vai se deitar às duas da madrugada, perde uma quantidade significativa de sono NREM profundo. Tal como ocorre em uma dieta desequilibrada em que você só come carboidratos e fica malnutrido pela ausência de proteína, dar ao cérebro menos do que o troco correto do sono NREM ou do sono REM — tendo em mente que ambos servem a funções críticas, embora distintas, do cérebro e do corpo — ocasiona um grande número de enfermidades físicas e

mentais, como será visto em capítulos posteriores. No que se refere ao sono, não existe algo como queimar a vela pelas duas pontas — ou mesmo por uma só — e escapar impune.