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UMA DESSAS COISAS NÃO É IGUAL À OUTRA

Os elefantes precisam da metade do sono que os seres humanos, tendo que dormir apenas quatro horas por dia. Os tigres e os leões devoram quinze horas de sono diárias. Já o morcego marrom supera todos os outros mamíferos, ficando acordado por apenas cinco horas por dia enquanto dorme as outras dezenove horas. A quantidade total de tempo é uma das distinções mais evidentes no modo como os organismos dormem.

Seria de se imaginar que a razão para isso fosse óbvia, mas ela não é.

Nenhum dos prováveis candidatos — tamanho do corpo, status de presa/predador, fato de ser diurno/noturno — explica a diferença no que se refere à necessidade de sono entre as espécies. Sem dúvida, o tempo necessário é pelo menos similar dentro de cada categoria filogenética, uma vez que seus integrantes compartilham grande parte do código genético. Isso com certeza também vale para outros traços básicos dentro dos filos, como as capacidades sensoriais, os métodos de reprodução e até o grau de inteligência. Contudo, o sono viola esse padrão previsível. Esquilos e degus fazem parte do mesmo grupo familiar (os roedores), porém não poderiam ser mais diferentes no que tange à necessidade de sono: os esquilos dormem duas vezes mais do que os degus — 15,9 horas versus 7,7 horas.

Inversamente, é possível encontrar tempos de sono quase idênticos em grupos familiares bem distintos. O porquinho-da-índia e o babuíno, por exemplo, que pertencem a ordens filogenéticas acentuadamente diferentes, sem falar no tamanho físico, dormem a mesmíssima quantidade de horas:

9,4.

Então o que explica as diferenças no tempo de sono (e talvez na necessidade) de uma espécie para outra ou mesmo dentro de uma ordem similar em termos genéticos? Não sabemos ao certo. A relação entre o tamanho do sistema nervoso, a sua complexidade e a massa corporal total parecem ser um indicador de certa forma significativo, com a crescente complexidade do cérebro em relação ao tamanho do corpo resultando em uma maior quantidade de sono. Embora fraca e não inteiramente constante, essa relação sugere que a necessidade de reparar um sistema nervoso cada vez mais complexo é uma função evolucionária que exige mais sono. À medida que os milênios se desdobraram e a evolução coroou sua (atual) realização com a gênese do cérebro, a exigência de sono só aumentou,

atendendo às necessidades desse que é o mais precioso de todos os aparelhos fisiológicos.

Mas isso não é tudo — não por uma boa medida. Várias espécies fogem totalmente da previsão estabelecida por essa regra. Por exemplo, um gambá-da-virgínia, que pesa quase o mesmo que um rato, dorme por 50% mais tempo, alcançando uma média de dezoito horas diárias. Esse animal perdeu o recorde de maior tempo de sono no reino animal por apenas uma hora — o vencedor, o já citado morcego marrom, acumula colossais dezenove horas de sono por dia.

Houve um momento na história da pesquisa em que os cientistas se questionaram se a medida utilizada por eles — minutos totais de sono — seria uma maneira errada de avaliar por que o sono varia tão consideravelmente entre as espécies. Eles então suspeitaram que na verdade a avaliação da qualidade do sono, em vez da quantidade (tempo), lançaria alguma luz sobre o mistério. Isto é, as espécies com qualidade de sono superior deveriam ser capazes de satisfazer toda a sua necessidade em um tempo mais curto, e vice-versa. Foi uma excelente ideia, exceto pelo fato de termos descoberto a relação oposta: aqueles que dormem mais têm sono mais profundo, de qualidade “mais elevada”. Na realidade, a forma como a qualidade costuma ser avaliada nessas investigações (o grau de indiferença em relação ao mundo exterior e a continuidade do sono) talvez seja um índice inadequado da real medida biológica da qualidade do sono: um índice que ainda não pode ser aferido em todas essas espécies. Quando puder ser medido em todas, nossa compreensão da relação entre quantidade e qualidade de sono através do reino animal provavelmente explicará o que hoje parece um mapa incompreensível.

Por enquanto, nossa estimativa mais precisa de por que diferentes espécies precisam de uma quantidade diferente de sono envolve um complexo híbrido de fatores, como tipo dietético (onívoro, herbívoro ou carnívoro), equilíbrio predador/presa dentro do hábitat, a presença e a natureza de uma rede social, índice metabólico e complexidade do sistema nervoso. Para mim, isso reflete o fato de que provavelmente o sono foi moldado por diversos fatores ao longo do caminho evolucionário e envolve um delicado equilíbrio entre atender às exigências da sobrevivência desperta (por exemplo, caçar a presa/obter alimento no tempo mais curto possível, minimizando o gasto de energia e o risco de ameaças), satisfazer as

necessidades fisiológicas de restauração do organismo (por exemplo, um índice metabólico mais elevado requer um esforço de “limpeza” maior durante o sono) e responder às exigências mais gerais da comunidade do organismo.

Ainda assim, até as nossas equações preditivas mais sofisticadas não conseguem explicar casos atípicos extremos no mapa do sono: as espécies que dormem muito (por exemplo, os morcegos) e as que dormem pouco (por exemplo, as girafas, que dormem cerca de quatro a cinco horas por dia).

Longe de serem um problema, sinto que essas espécies anômalas podem ter algumas das chaves para o desvendamento do enigma da necessidade de sono. Seguem sendo uma oportunidade deliciosamente frustrante para aqueles de nós que ainda tentam decifrar o código do sono através do reino animal e, dentro desse código, os benefícios ainda não descobertos do sono que nunca imaginamos serem possíveis.

SONHAR OU NÃO SONHAR

Outra diferença extraordinária no sono entre as espécies é a sua composição:

nem todas as espécies experimentam todos os estágios dele. Todas em que é possível medir os estágios do sono têm sono NREM — o estágio sem sonhos.

Entretanto, insetos, anfíbios, peixes e a maioria dos répteis não mostram sinais claros de terem sono REM — o tipo associado com a atividade onírica em seres humanos. Somente aves e mamíferos, que surgiram mais tarde na linha do tempo evolucionária do reino animal, apresentam sono REM plenamente desenvolvido. Isso sugere que o sono com sonhos (REM) é o novo vizinho no quarteirão evolucionário. Ele parece ter emergido para apoiar funções que o sono NREM não poderia desempenhar sozinho ou em cuja execução ele não seria tão eficiente.

Todavia, como ocorre com tantas coisas relacionadas ao sono, há outra anomalia. Eu disse que todos os mamíferos têm sono REM, porém não há consenso no que se refere aos cetáceos, ou mamíferos aquáticos. Algumas dessas espécies oceânicas, como os golfinhos e as orcas, contrariam a tendência dos mamíferos de ter sono REM — elas não têm nenhum. Embora um registro de 1969 sugerisse que uma baleia-piloto permaneceu em sono REM por seis minutos, a maioria das avaliações feitas até hoje não conseguiu

identificá-lo — ou pelo menos o que muitos cientistas do sono acreditariam ser sono REM genuíno — em mamíferos aquáticos. Sob certo prisma, isso faz sentido: quando um organismo entra em sono REM, o cérebro paralisa o corpo, tornando-o flácido e imóvel. Nadar é vital para os mamíferos aquáticos, já que eles têm de ir à superfície para respirar. Se houvesse uma paralisia total durante o sono, eles certamente se afogariam.

O mistério se aprofunda quando consideramos os pinípedes (uma de minhas palavras favoritas, composta pelos derivativos latinos pinna,

“nadadeira”, e pedis, “pé”), como os lobos-marinhos. Mamíferos parcialmente aquáticos, eles dividem seu tempo entre a terra e o mar. Quando estão na terra, eles têm tanto sono NREM quanto sono REM, assim como os seres humanos e todos os outros mamíferos terrestres e as aves. Mas, uma vez na água, eles param de ter sono REM quase que por completo. No mar, os lobos-marinhos experimentam apenas uma quantidade mínima dele, acumulando de 5% a 10% do total de que desfrutariam normalmente em terra. No oceano, foram registradas até duas semanas sem nenhum sono REM observável em lobos-marinhos, que sobrevivem durante esses períodos à base de sonecas de sono NREM.

Essas anomalias não necessariamente põem em questão a utilidade do sono REM. Sem dúvida, ele, e até o sonho, parece ser extremamente útil e adaptativo nas espécies que o experimentam, como será visto na Parte 3 deste livro. O fato de o sono REM ser reincorporado quando esses animais retornam à terra, em vez de dispensado de vez, confirma isso. A questão é simples: o sono REM não parece ser praticável por mamíferos aquáticos ou necessário quando eles estão no mar. Acredita-se que durante esse período eles se contentem com o modesto sono NREM — o que para os golfinhos e as baleias parece ser sempre o caso.

Não creio que os mamíferos aquáticos, mesmo os cetáceos, como os golfinhos e as baleias, tenham total ausência de sono REM (apesar de muitos de meus colegas cientistas dizerem que estou errado). Pelo contrário, acho que a forma de sono REM experimentada por eles seja um tanto diferente e mais difícil de ser detectada: seja ele breve por natureza, ocorrendo em momentos em que não conseguimos identificá-lo, ou expresso de formas ainda não mensuráveis em partes do cérebro que ainda não somos capazes de analisar.

Em defesa do meu ponto de vista divergente, observo que antigamente acreditava-se que os mamíferos ovíparos (monotremos), como a equidna e o ornitorrinco, não tivessem sono REM. Mas foi descoberto que eles têm, ou pelo menos uma versão dele. A superfície externa de seu cérebro — o córtex

—, a partir da qual a maioria dos cientistas mede ondas cerebrais de sono, não exibe as características agitadas e caóticas da atividade do sono REM.

No entanto, quando os cientistas olharam um pouco mais a fundo, belas explosões de atividade de ondas elétricas cerebrais foram identificadas na base do cérebro — ondas que correspondem perfeitamente às vistas em todos os outros mamíferos. Descobriu-se que o ornitorrinco gera mais desse tipo de atividade elétrica de sono REM do que qualquer outro mamífero!

Portanto, se não têm sono REM, têm ao menos uma versão beta dele, lançada primeiro nesses animais mais antigos em termos evolutivos. Uma versão totalmente operacional, que abarca o cérebro inteiro, parece ter sido introduzida em mamíferos mais desenvolvidos que evoluíram mais tarde.

Acredito que um histórico semelhante de sono REM atípico, porém ainda assim presente, acabará sendo identificado nos golfinhos, nas baleias e nas focas quando no mar. Afinal, a ausência de prova não é prova de ausência.

Mais intrigante do que a escassez de sono REM nesse canto aquático do reino mamífero é o fato de que as aves e os mamíferos evoluíram separadamente. Portanto, o sono REM pode ter sido criado duas vezes no curso da evolução: uma vez para as aves e outra para os mamíferos. Também é possível que uma pressão evolucionária comum o tenha criado em ambos, da mesma maneira que os olhos se desenvolveram separada e independentemente várias vezes através de diferentes filos ao longo da evolução para o objetivo comum de percepção visual. Em geral, o fato de um tema se repetir na evolução e de isso ser feito de forma independente através de linhagens não relacionadas indicam a existência de uma necessidade fundamental.

Contudo, um artigo muito recente sugeriu que há uma forma primitiva de sono REM em um lagarto australiano que, no que se refere à linha do tempo evolucionária, é anterior à emergência das aves e dos mamíferos. Se for reproduzido, esse achado sugerirá que a semente original do sono REM estava presente pelo menos cem milhões de anos antes de nossas estimativas originais. É possível então que essa semente comum em certos

répteis tenha germinado na forma completa de sono REM que hoje vemos em aves e mamíferos, incluindo os seres humanos.

Independentemente do ponto em que o verdadeiro sono REM tenha emergido durante a evolução, estamos descobrindo depressa por que o sonho do sono REM surgiu, que necessidades vitais ele satisfaz no mundo de sangue quente das aves e dos mamíferos (por exemplo, a saúde cardiovascular, a restauração emocional, a associação mnêmica, a criatividade e a regulação da temperatura corporal) e se outras espécies sonham. Como será explorado mais tarde, parece que sim.

Deixando de lado o questionamento sobre a presença de sono REM em todos os mamíferos, um fato incontestado é que o sono NREM foi o primeiro a aparecer na evolução. Ele é a forma original tomada pelo sono ao sair de trás da cortina criativa da evolução — um verdadeiro pioneiro. Essa precedência leva a outra pergunta intrigante, uma que me fazem em quase todas as palestras que dou: qual tipo de sono — o NREM ou o REM — é mais importante? De qual deles nós realmente precisamos?

“Importância” ou “necessidade” podem ser definidas de muitas maneiras, havendo, portanto, várias formas de responder à pergunta. Entretanto, talvez a fórmula mais simples seja pegar um organismo que apresenta os dois tipos de sono, uma ave ou um mamífero, e mantê-lo acordado a noite toda e durante todo o dia seguinte. Desse modo, o sono NREM e o REM são similarmente eliminados, criando as condições de ânsia equivalente por cada estágio de sono. A questão é: com que tipo de sono o cérebro vai se deleitar quando for oferecida a oportunidade de consumir ambos durante uma noite de recuperação? O sono NREM e o REM em iguais proporções?

Ou mais um do que o outro, sugerindo uma importância maior do estágio de sono que for predominante?

Esse experimento já foi realizado muitas vezes com várias espécies de aves e mamíferos, incluindo os seres humanos. Há dois resultados claros. O primeiro, e pouco surpreendente, é o fato de a duração do sono ser muito mais longa na noite de recuperação (dez ou até doze horas em seres humano) do que em uma noite comum sem privação anterior (oito horas, no nosso caso). Em reação ao débito, essencialmente tentamos nos livrar dele dormindo, o que, em termos técnicos, é chamado de rebote do sono.

O segundo é o fato de o rebote do sono NREM ser mais intenso. O cérebro consome uma porção muito maior de sono NREM profundo do que a de

sono REM na primeira noite após a privação total de sono, demonstrando uma ânsia desigual. Apesar de ambos os tipos de sono estarem à disposição no bufê de canapés do sono de recuperação, o cérebro opta por colocar muito mais sono NREM profundo no prato. Portanto, na batalha da importância o sono NREM teria vencido. Mas será mesmo?

Não exatamente. Caso se prossiga com o registro do sono ao longo de uma segunda, terceira e até quarta noite de recuperação, veremos uma inversão. Nesse caso o sono REM se torna a principal travessa a que se recorre em cada ida à mesa do bufê de recuperação, com o sono NREM fazendo as vezes de acompanhamento. Desse modo, os dois estágios podem ser descritos como essenciais. Nós tentamos recuperar um deles (o NREM) um pouco mais cedo do que o outro (REM), mas não se engane: o cérebro tentará obter ambos, buscando compensar algumas das perdas incorridas. E é importante observar que, seja qual for a quantidade de oportunidades de recuperação, o cérebro nunca chega perto de reaver todo o sono que perdeu.

Isso se aplica tanto para o tempo total de sono quanto para o sono NREM e para o sono REM. O fato de nós, seres humanos (e todas as outras espécies), nunca podermos recuperar o sono perdido é uma das maiores lições deste livro, algo cujas consequências deploráveis descreverei nos Capítulos 7 e 8.