• Nenhum resultado encontrado

Você já passou uma noite toda em claro deliberadamente? Uma das coisas de que mais gosto é lecionar para uma turma de graduação grande sobre a ciência do sono na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Dei um curso semelhante sobre o sono quando estava na Universidade de Harvard. No início das aulas, faço um levantamento sobre o sono, interrogando os alunos sobre seus hábitos, como a hora em que vão para a cama e acordam durante a semana e o fim de semana, por quanto tempo dormem, se acham que seu desempenho acadêmico está relacionado ao sono.

Considerando que estão me dizendo a verdade (o levantamento é feito de forma anônima, pela internet), a resposta que costumo obter é entristecedora. Mais de 85% deles passam noites em claro. Especialmente preocupante é o fato de que entre os que afirmaram passar noites em claro, quase um terço o faz mensalmente, semanalmente ou até várias vezes por semana. À medida que o curso avança ao longo do semestre, volto aos resultados do levantamento e associo seus próprios hábitos de sono com a ciência sobre a qual estamos aprendendo. Dessa maneira, procuro mostrar os perigos muito pessoais para a saúde psicológica e física que os alunos

enfrentam por causa do sono insuficiente e o perigo que eles mesmos representam para a sociedade em virtude disso.

A justificativa mais comum dada pelos alunos para passar noites em claro é estudar muito para uma prova. Em 2006, decidi realizar um estudo usando MRI para investigar se eles estavam certos ao fazer isso. Passar uma noite em claro era uma ideia sensata para o aprendizado? Pegamos um grupo grande de indivíduos e os dividimos entre um grupo de sono e outro de privação de sono. Os dois permaneceram acordados normalmente no primeiro dia. Na noite seguinte, os integrantes do grupo do sono dormiram uma noite inteira, ao passo que os do grupo de privação foram mantidos acordados a noite toda sob o olhar vigilante da equipe treinada em meu laboratório. Depois ambos os grupos passaram a manhã seguinte acordados. Por volta do meio-dia, colocamos os participantes em um escâner de MRI e os fizemos tentar aprender uma lista de fatos, um de cada vez, enquanto tirávamos fotografias de sua atividade cerebral. Em seguida os testamos para ver a efetividade do aprendizado. No entanto, em vez de testá-los logo depois do aprendizado, esperamos até que tivessem tido duas noites de sono restaurador. Isso foi um modo de assegurar que quaisquer prejuízos observados no grupo de privação de sono não fossem interpretados de forma equivocada pelo fato de eles estarem sonolentos ou distraídos demais para lembrar o que talvez tivessem aprendido muito bem. Portanto, a manipulação da privação de sono só estava presente no ato de aprendizado e não no ato posterior de recordação.

Quando comparamos a eficácia do aprendizado entre os dois grupos, o resultado foi claro: houve um déficit de 40% na capacidade do grupo privado de sono para introduzir novos fatos no cérebro (isto é, para criar novas memórias) em relação ao grupo que tinha dormido uma noite inteira.

Contextualizando, seria a diferença entre tirar a nota máxima em uma prova e ser vergonhosamente reprovado!

O que estava indo mal no cérebro para produzir esses déficits?

Comparamos os padrões de atividade cerebral durante a tentativa de aprendizado entre os dois grupos e focamos a análise na região cerebral sobre a qual falamos no Capítulo 6, o hipocampo — a “caixa de entrada” de informações do cérebro que adquire novos fatos. Havia uma grande quantidade de atividade saudável relacionada ao aprendizado no hipocampo dos participantes que tinham dormido na noite anterior. No entanto, ao

olhar a mesma estrutura em participantes privados de sono, não encontramos qualquer atividade significativa de aprendizado. Era como se a privação de sono tivesse bloqueado a caixa de entrada da memória e qualquer nova informação simplesmente fosse repelida. Para se chegar a esse ponto não é preciso nem mesmo a força contundente de uma noite inteira de privação de sono. Simplesmente perturbar a profundidade do sono NREM de alguém com sons infrequentes, impedindo o sono profundo e mantendo o cérebro em sono superficial, produz déficits cerebrais e prejuízos do aprendizado similares.

Talvez você tenha visto o filme Amnésia, em que o protagonista sofre uma lesão cerebral e, a partir de então, não consegue mais criar novas memórias.

Em neurologia, ele é o que chamamos de “densamente amnésico”. A parte de seu cérebro danificada é o hipocampo — a mesma estrutura atacada pela privação de sono, bloqueando nossa capacidade de adquirir novos aprendizados.

Perdi a conta de quantos alunos foram falar comigo no fim da aula em que descrevo esses estudos e disseram: “Sei exatamente qual é a sensação.

Parece que estou olhando para a página do livro, mas nada está entrando. Eu consigo me lembrar de alguns fatos no dia seguinte para a prova, mas, se você me pedisse para fazer o mesmo teste um mês depois, acho que dificilmente me lembraria de alguma coisa.”

Essa descrição tem respaldo científico. As poucas memórias que conseguimos reter quando somos privados de sono são esquecidas muito mais depressa nas horas e dias que se seguem. As memórias formadas sem sono são mais fracas, evaporam depressa. Estudos realizados com ratos chegaram à conclusão de que é quase impossível reforçar as conexões sinápticas entre neurônios individuais que costumam forjar um novo circuito de memória nos animais que tinham sido privados de sono — gravar memórias duradouras na arquitetura do cérebro tornou-se quase impossível.

Isso ocorreu quando os pesquisadores privaram os ratos de sono por 24 horas inteiras e também quando o fizeram só um pouco, por duas ou três horas. Até as unidades mais elementares do processo de aprendizado — a produção de proteínas que formam as peças fundamentais das memórias dentro dessas sinapses — são tolhidas pelo estado de perda de sono.

O trabalho mais recente nessa área revelou que a privação de sono impacta até o DNA e os genes relacionados ao aprendizado nas células

cerebrais do hipocampo. Trata-se de uma força profundamente penetrante e corrosiva que debilita o aparelho de formação de memórias no cérebro, impedindo-o de criar traços de memória duradouros. É mais ou menos como construir um castelo de areia perto demais da linha da maré — as consequências são inevitáveis.

Quando estava na Universidade de Harvard, fui convidado para escrever meu primeiro artigo para o jornal de lá, o Crimson. O tema era perda de sono, aprendizado e memória. Foi o primeiro e também o último artigo que fui convidado a escrever.

Nele descrevi os estudos há pouco citados e sua relevância, voltando repetidas vezes à questão da privação de sono pandêmica que estava se propagando pelo corpo discente. Contudo, em vez de criticar os estudantes por tais práticas, repreendi diretamente o corpo docente, o que também me incluía. Sugeri que se nós, professores, nos esforçamos para realizar apenas esse objetivo — ensinar —, a carga final das provas nos últimos dias do semestre era uma decisão estúpida. Ela forçava um comportamento em nossos alunos — o de dormir pouco ou passar noites em claro na véspera da prova — que está em oposição direta ao objetivo de cultivar jovens mentes acadêmicas. Afirmei que a lógica, respaldada pelo fato científico, deveria prevalecer e que já passara havia muito da hora de repensarmos nossos métodos de avaliação, seu impacto antieducativo e o comportamento pouco saudável que ele impõe aos alunos.

Sugerir que a reação do corpo docente foi gélida seria um cálido elogio.

“Foi a escolha dos estudantes”, disseram-me em inflexíveis e-mails de resposta. “Uma falta de estudo planejado por parte de alunos de graduação irresponsáveis” foi outra refutação comum da parte de professores e administradores que tentaram se esquivar da responsabilidade. Na verdade, jamais achei que uma coluna de opinião provocaria uma volta de 180 graus nos métodos de avaliação deficientes em Harvard ou em qualquer outra instituição de ensino. Como muitos já afirmaram em relação a essas instituições estoicas: teorias, crenças e práticas morrem uma geração por vez. Mas o diálogo e a batalha têm de começar em algum lugar.

Você talvez se pergunte se eu mudei minha prática de ensino e meu modo de avaliação. Sim, eu mudei. Nos meus cursos, não há prova “final” no fim do semestre. Em vez disso, divido a avaliação em três partes de modo que os alunos só tenham que estudar um punhado de aulas de cada vez. Além disso,

nenhuma das provas é cumulativa. Trata-se de um efeito comprovado e verdadeiro na psicologia da memória, descrito como aprendizado em massa versus aprendizado espaçado. Como no caso de uma experiência gastronômica, é de longe preferível separar a refeição educacional em pratos menores, com intervalos entre eles, para permitir a digestão, em vez de tentar enfiar todas essas calorias informacionais goela abaixo de uma só vez.

No Capítulo 6, descrevi o papel crucial do sono após o aprendizado na cimentação off-line, ou consolidação, de memórias recentemente aprendidas. O dr. Robert Stickgold, meu amigo e colaborador de longa data na Escola de Medicina de Harvard, conduziu um engenhoso estudo com vastas implicações. Ele fez um total de 133 estudantes de graduação aprenderem uma tarefa de memória visual por meio de repetição. Depois os participantes voltaram ao seu laboratório e foram testados para ver quanto tinham retido. Alguns voltaram no dia seguinte após uma noite inteira de sono, já outros retornaram dois dias depois, após duas noites inteiras de sono, e ainda houve os que só voltaram após três dias, com três noites de sono no intervalo.

Como você já poderia prever a essa altura, uma noite de sono reforçou as memórias recém-aprendidas, estimulando sua retenção. Além disso, quanto mais noites de sono os participantes tiveram antes de serem testados, melhor foi a sua memória. Isso aconteceu com todos, exceto outro subgrupo de participantes. Como os integrantes do terceiro grupo, esses participantes aprenderam a tarefa no primeiro dia e o fizeram igualmente bem. Depois foram testados três noites depois, exatamente como o terceiro grupo. A diferença foi que eles foram privados de sono na primeira noite após o aprendizado e não foram testados no dia seguinte. Em vez disso, Stickgold lhes deu duas noites inteiras de sono de recuperação antes de testá-los. Os indivíduos não mostraram qualquer indício de melhora da consolidação da memória. Em outras palavras, se você não dorme logo na primeira noite após aprender, perde a chance de consolidar essas memórias, mesmo que tenha muito sono de recuperação depois disso. Portanto, em termos de memória o sono não é como um banco. Não é possível acumular uma dívida e esperar saldá-la mais adiante. No que se refere à consolidação da memória, o sono é um evento de tudo ou nada. Esse é um resultado preocupante em nossa sociedade que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, na correria e que não pode esperar. Sinto um novo artigo se aproximando...