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Mas por que passamos tanto tempo em sono REM no útero e no início da vida e depois passamos para um domínio de sono NREM profundo na infância tardia e no início da adolescência? Ao quantificarmos a intensidade das ondas cerebrais do sono profundo, vemos o mesmo padrão: um declínio na intensidade do sono REM no primeiro ano de vida e um aumento exponencial da intensidade de sono NREM profundo na segunda e terceira infâncias, atingindo um pico pouco antes da puberdade e depois voltando a diminuir. O que há de tão especial nesse tipo de sono nessa época transicional da vida?

Antes e logo depois do nascimento, o desafio para o desenvolvimento é construir e adicionar vastos números de rodovias e interconexões neurais que se tornarão um cérebro. Como já foi explicado, o sono REM desempenha

um papel essencial nesse processo de proliferação, ajudando a povoar os bairros do cérebro com conectividade neural e depois a ativar essas vias com uma dose saudável de largura de banda informacional.

Entretanto, como essa primeira rodada de instalação de conexões é deliberadamente bem entusiasta, há uma segunda rodada de remodelação, que ocorre durante a infância tardia e a adolescência. Nessa etapa, a meta arquitetônica não é ampliar, mas reduzir para que se atinja a meta de eficiência e eficácia. O tempo de acrescentar conexões cerebrais com a ajuda do sono REM terminou. Em contrapartida, a poda de conexões se torna a ordem do dia ou, melhor dizendo, da noite. Entra em ação a mão escultora do sono NREM profundo.

Vale a pena voltar à analogia do provedor de internet. Quando a rede está sendo instalada, cada casa no bairro recém-construído recebe uma quantidade igual de largura de banda e, assim, potencial para uso. No entanto, essa é uma solução ineficiente em longo prazo, já que algumas dessas casas vão se tornar usuários intensos ao longo do tempo, enquanto outras vão consumir muito pouco. Algumas casas podem até permanecer vazias e nem sequer usar largura de banda. Para avaliar de maneira confiável qual é o padrão de demanda, o provedor precisa de tempo para colher estatísticas de uso. Só após um período de experiência ele poderá tomar uma decisão fundamentada sobre como refinar a estrutura original da rede que instalou, diminuindo a conectividade para casas de baixo consumo ao mesmo tempo que a aumenta para as residências com demanda elevada.

Não é uma reconstrução completa da rede, e grande parte da estrutura original permanecerá como antes. Afinal, o provedor fez isso muitas vezes e tem uma estimativa razoável de como construir uma primeira etapa da rede.

Todavia, uma remodelação e enxugamento dependente do uso ainda deve ocorrer para que a rede atinja sua máxima eficiência.

O cérebro humano passa por uma transformação semelhante, determinada pelo uso, durante a infância tardia e a adolescência. Grande parte da estrutura original estabelecida no início da vida permanecerá, já que a Mãe Natureza a essa altura já aprendeu a criar uma primeira etapa bem precisa de um cérebro após bilhões de tentativas ao longo de muitos milhares de anos de evolução. Mas ela prudentemente deixa algo por fazer em sua escultura genérica do cérebro: o trabalho de refinamento individualizado. As experiências únicas de uma criança durante seus anos

formativos se traduzem em uma série de estatísticas de uso pessoal. Essas experiências, ou estatísticas, fornecem a planta personalizada para uma última rodada de refinamento cerebral,13 tirando proveito da oportunidade que a natureza proporciona. Um cérebro (de certo modo) genérico torna-se cada vez mais individualizado com base no uso do dono.

Para ajudar no trabalho de refinamento e redução da conectividade, o cérebro lança mão dos serviços do sono NREM profundo. Das muitas funções desempenhadas por ele — cuja lista completa será discutida no próximo capítulo —, a da poda de sinapses é a que se destaca de forma proeminente durante a adolescência. Em uma notável série de experimentos, o pesquisador pioneiro do sono Irwin Feinberg descobriu algo fascinante sobre o modo como essa operação ocorre no cérebro adolescente. Suas descobertas ajudam a justificar uma opinião que talvez também seja a sua:

adolescentes têm uma versão menos racional do cérebro adulto, uma que se expõe a mais riscos e cujas habilidades de tomada de decisão são relativamente deficientes.

Usando eletrodos colocados em toda a cabeça — na frente e atrás, do lado esquerdo e do direito —, Feinberg registrou o sono de um grupo grande de crianças então na faixa dos seis aos oito anos de idade. A cada seis a doze meses ele reconduzia os participantes ao seu laboratório e realizava mais uma medição do sono. O experimento foi realizado durante dez anos e reuniu mais de 3.500 avaliações de noites inteiras: um total de quase inacreditáveis 320 mil horas de registros de sono! A partir desse material, Feinberg criou uma série de instantâneos, descrevendo como a intensidade do sono profundo muda com os estágios do desenvolvimento do cérebro à medida que as crianças fazem a transição muitas vezes difícil da adolescência para a idade adulta. Foi o equivalente neurocientífico da fotografia em time-lapse na natureza: fazer fotos repetidas de uma árvore quando ela surge primeiro como um broto na primavera (primeira infância), depois explode em folhas durante o verão (infância tardia), então amadurece em cores com a chegada do outono (início da adolescência) para enfim deixar cair suas folhas no inverno (adolescência tardia e início da idade adulta).

Feinberg observou que durante a infância intermediária e tardia há uma quantidade moderada de sono profundo enquanto as últimas arrancadas de

crescimento neural estavam sendo completadas, algo análogo ao fim da primavera e início do verão. Depois o pesquisador começou a notar nos registros elétricos um crescimento pronunciado na intensidade do sono profundo bem no momento em que as necessidades de conectividade cerebral ditadas pelo desenvolvimento mudam de fazer crescer conexões para perdê-las — o equivalente do outono para as árvores. Exatamente quando o outono maturacional estava prestes a se transformar no inverno, e a perda estava quase completa, os registros de Feinberg voltaram a mostrar uma clara redução na intensidade do sono NREM profundo. O ciclo vital da infância estava terminado e, quando as últimas folhas caíam, o progresso neural desses adolescentes tinha sido assegurado — o sono NREM profundo havia auxiliado sua transição para o início da idade adulta.

Feinberg propôs que o aumento e a queda da intensidade do sono profundo ajudaram a conduzir a viagem maturacional através das alturas precárias da adolescência, seguindo depois para uma progressão segura rumo à idade adulta. Descobertas recentes corroboraram essa teoria.

Enquanto o sono NREM profundo executa sua última inspeção e refinamento do cérebro durante a adolescência, as habilidades cognitivas, o raciocínio e o pensamento crítico começam a melhorar e o fazem de forma proporcional à mudança do sono NREM. Ao examinar mais de perto os momentos em que essa relação ocorre, é possível ver algo ainda mais interessante. As mudanças no sono NREM profundo sempre precedem os marcos cognitivos e de desenvolvimento no cérebro em várias semanas ou meses, o que sugere uma direção de influência: o sono profundo pode ser uma força propulsora da maturação cerebral, não o contrário.

Feinberg fez uma segunda descoberta seminal. Ao examinar a linha do tempo da intensidade do sono profundo em mudança em cada ponto de eletrodo na cabeça, percebeu que ela não é igual: o padrão de ascensão e queda da maturação sempre começa na parte de trás do cérebro, que executa as funções de percepção visual e espacial, e depois avança de maneira constante para a frente à medida que o adolescente progride. O mais notável é o fato de o último ponto da viagem maturacional ser a extremidade do lobo frontal, que permite o pensamento racional e a tomada de decisão crítica. Portanto, a parte de trás do cérebro de um adolescente é

mais adulta, ao passo que a da frente permanece mais infantil em qualquer momento durante essa janela de tempo do desenvolvimento.14

Suas descobertas ajudaram a explicar por que a racionalidade é uma das últimas coisas a florescer nos adolescentes, já que é o último território cerebral a receber tratamento maturacional do sono. Sem dúvida o sono não é o único fator que influencia o amadurecimento do cérebro, porém parece ser um fator significativo que abre caminho para o pensamento maduro e a capacidade de raciocínio. O estudo de Feinberg me lembra o texto de um outdoor de uma grande seguradora que vi certa vez: “Por que a maioria dos jovens de 16 anos dirige como se lhes faltasse uma parte do cérebro? É porque lhes falta.” É preciso sono profundo e tempo de desenvolvimento para levar a cabo a maturação neural que tapa essa “fenda” cerebral no lobo frontal. Quando seus filhos enfim chegarem à metade da casa dos vinte anos e o prêmio do seguro do seu carro cair, agradeça ao sono pela economia.

A relação entre intensidade do sono profundo e maturação cerebral descrita por Feinberg já foi observada em muitas populações de crianças e adolescentes no mundo todo. Mas como podemos ter certeza de que o sono profundo de fato executa a poda neural necessária para a maturação do cérebro? Não poderia se tratar apenas do fato de as mudanças no sono e a maturação cerebral simplesmente acontecerem quase ao mesmo tempo, sendo independentes entre si?

A resposta pode ser encontrada em estudos feitos com ratos e gatos jovens no estágio equivalente à adolescência humana. Ao privarem esses animais do sono profundo, os cientistas detiveram o refinamento maturacional da conectividade cerebral, o que demonstrou haver um papel causal para o sono NREM profundo na propulsão do cérebro para a idade adulta saudável.15 Um dado preocupante é que a administração de cafeína a ratos jovens também perturba o sono NREM e, desse modo, atrasa várias medidas de maturação cerebral e o desenvolvimento de habilidades de atividade social, asseio independente e exploração do ambiente — todas medidas de aprendizado automotivado.16

O reconhecimento da importância do sono NREM profundo para os adolescentes foi fundamental para a nossa compreensão do desenvolvimento saudável e, além disso, ofereceu pistas sobre o que acontece quando as coisas dão errado e o desenvolvimento é anormal.

Muitos dos principais transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia, o transtorno bipolar, a depressão grave e o TDAH hoje são considerados transtornos de desenvolvimento anormal, pois em geral emergem durante a infância e a adolescência.

Retornaremos à questão do sono e da doença psiquiátrica várias vezes ao longo deste livro, porém a esquizofrenia merece uma menção especial neste ponto. Diversos estudos monitoraram o desenvolvimento neural usando escâneres cerebrais a cada dois meses em centenas de adolescentes à medida que avançavam até a idade adulta. Uma proporção dos participantes veio a desenvolver esquizofrenia no fim da adolescência e início da idade adulta. Esses indivíduos apresentaram um padrão anormal de maturação cerebral associado com a poda sináptica, principalmente em regiões do lobo frontal em que os pensamentos lógicos, racionais, são controlados — a incapacidade de fazer tal controle é um sintoma importante de esquizofrenia. Em uma série separada de estudos, também foi observado que em indivíduos jovens que correm grande risco de desenvolver esquizofrenia e em adolescentes e adultos jovens que já tem a doença há uma redução de duas a três vezes do sono NREM profundo.17 Além disso, as ondas cerebrais elétricas do sono NREM não são normais em sua forma e número nos indivíduos afetados. A poda defeituosa de conexões cerebrais na esquizofrenia causada por anormalidades do sono é agora uma das mais ativas e empolgantes áreas de investigação no campo das doenças psiquiátricas.18

Adolescentes enfrentam dois outros desafios nocivos na luta para obter sono suficiente à medida que seus cérebros se desenvolvem. O primeiro é uma alteração no ritmo circadiano; a segunda é o início das aulas muito cedo de manhã. A questão dos efeitos nocivos e ameaçadores para a vida do horário de início das aulas será tratada em um capítulo posterior; contudo, as complicações geradas por ela estão inextricavelmente ligadas ao primeiro fator — a alteração no ritmo circadiano. Quando éramos pequenos, muitas vezes queríamos ficar acordados até mais tarde para poder ver televisão ou nos juntar aos nossos pais e irmãos no que quer que estivessem fazendo durante essas horas. Entretanto, quando essa chance nos era dada, em geral éramos vencidos, no sofá, em uma cadeira ou às vezes no chão e então carregados para a cama, dormindo e inconscientes, pelo irmão mais velho ou

um dos pais. A razão por trás do fenômeno não é simplesmente que crianças precisam de mais sono do que os irmãos mais velhos ou os pais, mas também que o ritmo circadiano de uma criança pequena funciona em um horário adiantado. Por isso elas ficam sonolentas mais cedo e acordam mais cedo que os pais.

Os adolescentes, por sua vez, têm um ritmo circadiano diferente do de seus irmãos mais novos. Durante a puberdade, a regulagem do tempo do núcleo supraquiasmático é progressivamente avançada: uma alteração comum entre todos os adolescentes, seja qual for sua cultura ou localização geográfica. Na verdade, o avanço é tamanho que chega a superar a regulagem do tempo dos pais.

Aos nove anos, o ritmo circadiano faz a criança adormecer por volta das nove da noite, impelida em parte pela maré montante de melatonina nessa hora característica dessa faixa etária. Quando o mesmo indivíduo chega aos 16 anos, o ritmo circadiano sofre uma enorme mudança para a frente em sua fase cíclica. A maré montante de melatonina e a instrução de escuridão e sono estão a muitas horas de distância. Em virtude disso, o adolescente de 16 anos não costuma ter interesse algum em dormir às nove da noite — na verdade, a vigília máxima costuma ainda estar em ação a essa hora. No momento em que os pais estão ficando cansados, já que seu ritmo circadiano sofre um declínio e a liberação de melatonina instrui sono — lá pelas dez ou onze da noite —, o filho adolescente pode ainda estar completamente desperto. Mais algumas horas devem se passar antes que o ritmo circadiano de um cérebro adolescente comece a desativar o estado de alerta e permitir que um sono fácil e profundo tenha início.

Obviamente, isso gera muita angústia e frustração em todos os envolvidos. Os pais querem que o filho esteja acordado a uma hora “razoável”

de manhã. Já o adolescente, só tendo conseguido conciliar o sono algumas horas depois dos pais, pode ainda estar em seu vale do declive circadiano.

Como um animal prematuramente arrancado da hibernação, o cérebro adolescente ainda precisa de mais sono e mais tempo para completar o ciclo circadiano antes que possa funcionar de forma eficiente, sem estar grogue.

Se mesmo assim a questão permanece desconcertante para os pais, uma forma diferente de formular e talvez apreciar tal disparidade é esta: pedir que um adolescente se deite e adormeça às dez da noite é o equivalente circadiano de pedir que você, seu pai ou sua mãe durmam às sete ou oito da

noite. Não importa a veemência com que você dê a ordem, não importa quanto esse adolescente deseje verdadeiramente obedecer à sua instrução e não importa que quantidade de esforço deliberado seja aplicado por qualquer uma das duas partes, o ritmo circadiano de um adolescente não será milagrosamente persuadido a mudar. Além disso, pedir a esse mesmo adolescente que acorde às sete na manhã seguinte e funcione com intelecto, elegância e bom humor é o equivalente a pedir que você, pai ou mãe, faça o mesmo às quatro ou cinco da manhã.

Infelizmente nem a sociedade nem nossas atitudes parentais são bem planejadas para compreender ou aceitar que os adolescentes precisam de mais sono do que os adultos e que eles são biologicamente programados para obter esse sono em horários diferentes dos pais. É bem compreensível que os pais se sintam frustrados, já que acreditam que os padrões de sono dos adolescentes refletem uma escolha consciente e não um fato biológico.

Todavia, esses padrões são não voluntários, não negociáveis e fortemente biológicos. Nós, pais, deveríamos ter a sabedoria de aceitar esse fato e abraçá-lo, incentivá-lo e louvá-lo, a menos que desejemos que nossos filhos estejam sujeitos a anormalidades decorrentes de um desenvolvimento inadequado do cérebro ou lhes imponhamos um risco mais elevado de desenvolver doença mental.

Você talvez se pergunte por que o cérebro adolescente primeiro se excede em seu ritmo circadiano adiantado — dormindo tarde e acordando tarde — para depois enfim voltar, posteriormente na vida adulta, a um ritmo de sono e vigília regulado para mais cedo. Embora essa questão ainda esteja sendo analisada, a explicação que proponho é do tipo social-evolucionário.

Para o desenvolvimento adolescente, é central a transição da dependência parental para a independência, momento no qual ele vai aprendendo a se orientar em meio às complexidades de relações e interações do grupo de pares. Uma maneira pela qual a Mãe Natureza talvez tenha ajudado os adolescentes nesse processo foi avançando seu ritmo circadiano no tempo para além do de seus pais. Essa engenhosa solução biológica leva seletivamente os adolescentes para uma fase mais tardia em que eles podem, por várias horas, agir de forma independente — e fazê-lo como um grupo de pares. Não se trata de um deslocamento permanente ou total do cuidado parental, é mais como uma tentativa segura de separar parcialmente futuros adultos dos olhos da mãe e do pai. Obviamente isso envolve riscos, mas a

transição precisa ocorrer. E o momento em que essas asas adolescentes se abrem e os primeiros voos solo a partir do ninho acontecem, isso de forma alguma ocorre durante o dia, mas sim durante a noite, graças a um ritmo circadiano adiantado.

Ainda há muito a aprender sobre o papel do sono no desenvolvimento.

Entretanto, já se pode argumentar fortemente em defesa de um tempo ampliado de sono durante a adolescência, em vez de denegrir o sono como um sinal de preguiça. Como pais, costumamos focar demais o que o sono está tirando dos adolescentes, sem parar para pensar no que ele pode estar acrescentando. A cafeína também entra em questão. Nos Estados Unidos, já houve uma política educacional conhecida como “No Child Left Behind”

[nenhuma criança deixada para trás]. Com base em evidências científicas, uma nova política foi corretamente sugerida por minha colega dra. Mary Carskadon: “Nenhuma criança precisa de cafeína.”