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As duas doenças mais temidas em todos os países desenvolvidos são a demência e o câncer. Ambas estão relacionadas ao sono inadequado. Vamos falar do câncer mais tarde no próximo capítulo relacionado à privação de sono e o corpo. Com relação à demência, que se centra no cérebro, a falta de sono está rapidamente se tornando reconhecida como um fator de estilo de vida essencial para determinar se um indivíduo vai ou não desenvolver doença de Alzheimer.

Essa condição, originalmente identificada em 1901 pelo médico alemão dr. Aloysius Alzheimer, tornou-se um dos maiores desafios de saúde pública e econômicos do século XXI. Mais de quarenta milhões de pessoas sofrem da doença debilitante. Esse número cresceu à medida que a expectativa de vida aumentou, mas também, de maneira importante, à medida que o tempo total de sono se reduziu. Hoje um em cada dez adultos com mais de 65 anos sofre de doença de Alzheimer. Sem avanços no diagnóstico, na prevenção e na terapêutica, a escalada persistirá.

O sono representa um novo candidato a esperança em todas essas três frentes. Antes de discutir por que, deixe-me descrever como a perturbação do sono e a doença de Alzheimer estão causalmente relacionadas.

Como aprendemos no Capítulo 5, a qualidade do sono — sobretudo a do sono NREM profundo — se deteriora à medida que envelhecemos. Esse fenômeno está relacionado a um declínio na memória. No entanto, quando se avalia um paciente com doença de Alzheimer, percebe-se que a perturbação do sono profundo é muito mais acentuada. Talvez o mais revelador seja o fato de a perturbação do sono preceder o início da doença de Alzheimer em vários anos, sugerindo que ela pode ser um sinal de alerta precoce da enfermidade ou até contribuir para que ocorra. Depois do diagnóstico, a magnitude da perturbação do sono progride em uníssono com a gravidade dos sintomas do portador de Alzheimer, o que sugere mais uma ligação entre os dois fatores. Para piorar as coisas, mais de 60% dos pacientes têm pelo menos um transtorno clínico do sono. A insônia é especialmente comum, como sabem muito bem os cuidadores de um ente querido com a doença.

Contudo, foi apenas recentemente que se compreendeu que a associação entre o sono perturbado e a doença de Alzheimer é mais do que

simplesmente isso. Embora ainda reste muito a ser entendido, hoje reconhecemos que a perturbação do sono e o Alzheimer interagem em uma espiral negativa que se retroalimenta e pode iniciar e/ou acelerar a doença.

A doença de Alzheimer está associada ao acúmulo de uma forma tóxica de proteína chamada beta-amiloide, que se agrega em grumos pegajosos, ou placas, no cérebro. Essas placas são venenosas para os neurônios, matando as células cerebrais circundantes. Entretanto, o estranho é que as placas amiloides só afetam algumas partes do cérebro, algo cujas razões permanecem obscuras.

O que me impressionou com relação a esse padrão não explicado foi a localização no cérebro em que a proteína se acumula cedo no curso da doença de Alzheimer e de forma mais severa em estágios avançados da doença. Essa área é a parte central do lobo frontal — que, como você deve se lembrar, é a mesma região essencial para a geração elétrica do sono NREM profundo em jovens saudáveis adultos. Àquela altura, não compreendíamos se ou por que a doença de Alzheimer causava perturbação do sono; nós simplesmente sabíamos que as duas ocorriam ao mesmo tempo. Então me questionei se os portadores de Alzheimer têm o sono NREM tão perturbado em parte porque a doença erode a região do cérebro que normalmente gera esse estágio essencial do sono.

Juntei forças com o dr. William Jagust, uma eminente autoridade em doença de Alzheimer, na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Juntas, nossas equipes de pesquisa começaram a testar essa hipótese. Vários anos mais tarde, chegamos à resposta após avaliarmos o sono de muitos adultos mais velhos com diferentes graus de acúmulo de amiloide no cérebro, que quantificamos com um tipo especial de tomografia por emissão pósitrons (TEP). Quanto mais depósitos de amiloide havia nas regiões centrais do lobo frontal, mais prejudicada estava a qualidade do sono profundo do indivíduo analisado. E não se tratava apenas de uma perda geral de sono profundo, o que é comum quando envelhecemos, mas da erosão cruel das mais profundas ondas cerebrais lentas do sono NREM. Essa distinção é fundamental, pois significava que o prejuízo do sono causado pelo acúmulo de amiloide no cérebro é mais do que apenas “envelhecimento normal”. Ele é singular — um desvio em relação ao que de outra forma é a marca distintiva do declínio do sono à medida que envelhecemos.

Estamos agora avaliando se essa “mossa” muito particular na atividade das ondas cerebrais do sono representa um jeito de identificar precocemente quem corre um risco maior de desenvolver a doença de Alzheimer. Se o sono de fato se revelar uma medida diagnóstica precoce — sobretudo uma relativamente barata, não invasiva e que pode ser facilmente obtida em um grande número de pessoas, ao contrário das ressonâncias magnéticas ou tomografias por emissão de pósitrons onerosas —, a intervenção precoce se tornará possível.

Tendo por base tais descobertas, nosso trabalho recente acrescentou uma peça fundamental ao quebra-cabeça da doença de Alzheimer. Identificamos um novo caminho através do qual as placas amiloides podem contribuir para o declínio da memória mais tarde na vida: algo que esteve faltando em grande parte de nossa compreensão do funcionamento da doença de Alzheimer. Mencionei que os depósitos tóxicos de amiloide só se acumulam em determinadas partes do cérebro. Apesar de a doença de Alzheimer ser tipificada pela perda de memória, o hipocampo — o reservatório de memórias fundamental do cérebro — permanece misteriosamente não afetado pela proteína amiloide. Essa questão até hoje desconcerta os cientistas: como a amiloide causa perda de memória em pacientes com doença de Alzheimer sem afetar as áreas de memória do cérebro? Embora outros aspectos da enfermidade possam desempenhar algum papel na equação, para mim parecia plausível que estivesse faltando um fator intermediário — um que negociasse a influência da amiloide em uma parte que atuasse sobre a memória e que dependesse de uma região diferente do cérebro. Seria a perturbação do sono o fator que faltava?

Para testar essa teoria, pedimos a pacientes idosos com diferentes níveis de amiloide — de baixo a elevado — no cérebro que aprendessem uma lista com novos fatos à noite. Na manhã seguinte, após termos registrado seu sono no laboratório, nós os testamos para ver quão efetivo o seu sono havia sido para cimentar e assim reter essas novas memórias. Constatamos um efeito de reação em cadeia. As pessoas com os níveis mais altos de depósitos de amiloide nas regiões frontais do cérebro apresentaram a perda mais grave de sono profundo e, como uma consequência indireta, não conseguiam consolidar bem as novas memórias. Ocorrera esquecimento noturno, em vez de rememoração noturna. Portanto, a perturbação do sono NREM agiu

como intermediário oculto, agenciando o mau negócio entre a amiloide e o prejuízo da memória na doença de Alzheimer. Um elo perdido.

Todavia, essas descobertas foram apenas a metade da história — e reconhecidamente a metade menos relevante. Nosso trabalho havia mostrado que as placas amiloides da doença de Alzheimer podem estar associadas à perda de sono profundo, mas será que isso se dá nos dois sentidos? A falta de sono pode de fato fazer com que a amiloide se acumule no cérebro para início de conversa? Nesse caso, o sono insuficiente ao longo da vida elevaria de forma significativa o risco de o indivíduo desenvolver doença de Alzheimer.

Por volta da mesma época em que estávamos conduzindo os nossos estudos, a dra. Maiken Nedergaard, da Universidade de Rochester, fez uma das descobertas mais espetaculares no campo da pesquisa do sono nas últimas décadas. Trabalhando com camundongos, Nedergaard identificou a existência no cérebro de uma espécie de rede de esgoto chamada sistema glinfático. Seu nome é derivado do equivalente sistema linfático do corpo, porém é composto de células chamadas glia (do radical grego para “cola”).

As células da glia estão distribuídas por todo o cérebro, situadas lado a lado com os neurônios, que geram os impulsos elétricos do cérebro. Assim como o sistema linfático drena contaminantes do corpo, o sistema glinfático recolhe e remove contaminantes metabólicos perigosos gerados pelo trabalho pesado dos neurônios, mais ou menos como uma equipe de apoio em torno de um atleta de elite.

Embora o sistema glinfático — a equipe de apoio — esteja um tanto ativo durante o dia, Nedergaard e sua equipe descobriram que é durante o sono que esse trabalho de saneamento neural ganha maior velocidade. Associado ao ritmo pulsante do sono NREM profundo, há um aumento de dez a vinte vezes na expulsão de efluentes do cérebro. No que pode ser descrito como uma limpeza noturna profunda, o trabalho de purificação do sistema glinfático é levado a cabo pelo fluido cerebrospinal que banha o cérebro.

Nedergaard fez uma segunda descoberta surpreendente, que explica por que o fluido cerebrospinal é tão eficiente para dar descarga em destroços metabólicos à noite. As células da glia do cérebro encolhem em tamanho em até 60% durante o sono NREM, o que aumenta o espaço entre os neurônios e permite ao fluido cerebrospinal limpar com eficiência o refugo metabólico produzido pela atividade neural do dia. Pense nos prédios de uma grande

metrópole encolhendo à noite, dando fácil acesso às equipes de limpeza municipais para que recolham o lixo espalhado pelas ruas e depois passem um bom tratamento com jato de pressão em cada canto e fissura. Ao acordarmos a cada manhã, o cérebro pode mais uma vez funcionar com eficiência graças a essa limpeza profunda.

Mas o que isso tem a ver com a doença de Alzheimer? Uma parte dos destroços tóxicos descartados pelo sistema glinfático durante a noite é composta pela proteína amiloide — o elemento venenoso associado à doença de Alzheimer. Outros resíduos metabólicos perigosos que têm ligação com essa doença também são removidos pelo processo de limpeza realizado durante o sono, incluindo uma proteína chamada tau, bem como moléculas de estresse produzidas pelos neurônios quando queimam energia e oxigênio ao longo do dia. Ao impedir experimentalmente um camundongo de obter sono NREM, mantendo-o acordado, verifica-se um aumento imediato de depósitos amiloides no cérebro. Sem sono, a escalada dessa proteína venenosa relacionada ao Alzheimer se acumula no cérebro do animal, juntamente com vários outros metabolitos tóxicos. Em outras palavras e simplificando as coisas, a vigília é o dano cerebral de baixo nível, ao passo que o sono é o saneamento neurológico.

As descobertas de Nedergaard completaram o círculo de conhecimento que nossas descobertas haviam deixado sem resposta. O sono inadequado e a patologia da doença de Alzheimer interagem em um círculo vicioso. Sem sono suficiente, as placas amiloides se acumulam no cérebro, sobretudo nas regiões geradoras de sono profundo, atacando-as e degradando-as. Desse modo, a perda de sono NREM profundo causada por esse ataque diminui a capacidade de remoção da amiloide do cérebro à noite, resultando em uma maior sedimentação dessa proteína. Mais amiloide, menos sono profundo;

menos sono profundo, mais amiloide, e assim por aí vai.

Dessa cascata se extrai uma previsão: obter muito pouco sono ao longo da vida adulta eleva de forma significativa o risco de se desenvolver doença de Alzheimer. Tal relação foi relatada em diversos estudos epidemiológicos, que incluíram indivíduos que sofrem de transtornos do sono, como a insônia e a apneia do sono.8 Um parêntese nada científico: sempre achei curioso que Margaret atcher e Ronald Reagan — dois chefes de Estado que professavam com muita franqueza, se não com orgulho, dormir apenas de

quatro a cinco horas por noite — tenham desenvolvido essa doença implacável. O atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que também se gaba de dormir apenas algumas horas por noite — talvez queira tomar nota disso.

Uma previsão mais radical e inversa que emerge dessas descobertas é a de que, ao melhorar o sono de uma pessoa, deveríamos conseguir reduzir seu risco de desenvolver doença de Alzheimer — ou pelo menos postergar seu surgimento. Uma corroboração provisória já foi obtida a partir de estudos clínicos em que adultos de meia-idade e idosos tiveram os transtornos do sono tratados com sucesso. Com isso, seu índice de declínio cognitivo se desacelerou significativamente e também se postergou o início da doença de Alzheimer em cinco a dez anos.9

Meu grupo de pesquisa está agora tentando desenvolver uma série de métodos viáveis para aumentar artificialmente o sono NREM profundo, que poderia restaurar algum grau da função de consolidação da memória ausente em pessoas mais velhas com grandes quantidades de amiloide no cérebro. A meta dessa busca por um método economicamente viável e que possa ser aplicado ao nível da população para uso repetido é a prevenção.

Será que com ele conseguiremos suplementar o sono profundo declinante de membros vulneráveis da sociedade na meia-idade muitas décadas antes de o ponto de inflexão da doença de Alzheimer ser alcançado, com o intuito de evitar o risco de demência mais tarde na vida? Claramente, trata-se de uma ambição e tanto, e alguns diriam que é uma meta de pesquisa extremamente desafiadora. Entretanto, vale a pena lembrar que já usamos essa abordagem na medicina na forma da prescrição de estatinas para indivíduos com maior risco na casa dos quarenta e dos cinquenta anos a fim de prevenir a doença cardiovascular, em vez de tratá-los décadas depois.

O sono insuficiente é somente um entre vários fatores de risco associados à doença de Alzheimer. Sozinho, portanto, ele não será a bala mágica que erradicará a demência. Mas priorizar o sono ao longo da vida está claramente se tornando um fator significativo na redução do risco de se desenvolver a doença de Alzheimer.

1 Foundation for Traffic Safety, “Acute Sleep Deprivation and Risk of Motor Vehicle Crash Involvement”.

Disponível em: <https://aaafoundation.org/acute-sleep-deprivation-risk-motor-vehicle-crash-involvement/>.

2 Mitos comuns que são inúteis para ajudar a superar a sonolência enquanto se dirige incluem aumentar o volume da música, abaixar o vidro da janela do carro, soprar ar frio ou água fria no rosto, falar ao celular, mascar chiclete, esbofetear-se, beliscar-se, socar-se e prometer a si mesmo um prêmio por ficar acordado.

3 Também conhecido como DEC2.

4 K.J. Brower e B.E. Perron, “Sleep Disturbance As a Universal Risk Factor for Relapses in Addictions to Psychoative Substances”, Medical Hypotheses 74, no 5 (2010): p. 928-33; D.A. Ciraulo, J. Piechniczek-Buczek e E.N. Iscan, “Outocomes Predictors in Substance Use Disorders”, Psychiatric Clinics of North America 26, no 2 (2003): p. 381-409; J.E. Dimsdale, D. Norman, D. DeJardin e M.S. Wallace, “ e Effect of Opioids on Sleep Architecture”, Journal of Clinical Sleep Medicine 3, no 1 (2007): p. 33-36; E.F. Pace-Schott, R. Stickgold, A. Muzur, P.E. Wigren et at., “Sleep Quality Deteriorates Over a Binge-Abstinence Cycle in Chronic Smoked Cocaine Users”, Psychopharmacology (Berl) 179, no 4 (2005): p. 873-83; e J.T.

Arnedt, D.A. Conroy e K.J. Brower, “Treatment Options for Sleep Disturbances During Alcohol Recovery”, Journal of Addictive Diseases 26, no 4 (2007), p. 41-54.

5 K.J. Brower e B.E. Perron, “Sleep Disturbance Is a Universal Risk Factor for Relapses in Addictions to Psychoative Substances”, Medical Hypotheses 74, no 5 (2010): p. 928-33.

6 N.D. Volkow, D. Tomasi, G.J. Wang, F. Telang et al., “Hyperstimulation of Striatal D2 Receptors with Sleep Deprivation: Implications for Cognitive Impairment”, NeuroImage 45, no 4 (2009): p. 1.232-40.

7 Cossman também tinha outras pérolas de sabedoria, como “A melhor forma de lembrar o aniversário de sua mulher é esquecê-lo uma vez”.

8 A.S. Lim et al., “Sleep Fragmentation and the Risk of Incident Alzheimer’s Disease and Cognitive Decline in Older Persons”, Sleep 36 (2013): p. 1.027-32; A.S. Lim et al., “Modification of the Relationship of the Apolipoprotein E Epsilon4 Allele to the Risk of Alzheimer’s Disease and Neurofibrillary Tangle Density by Sleep”, JAMA Neurology 70 (2013): 1544:51; R.S. Osorio et al., “Greater Risk of Alzheimer’s Disease in Older Adults With Insomnia”, Journal of the American Geriatric Society 59 (2011): p. 559-62; e K. Yaffe et al., “Sleep-Disordered Breathing, Hypoxia, and Risk of Mild Cognitive Impairment and Dementia in Older Women”, JAMA 306 (2011): p. 613-19.

9 S. Ancoli-Israel et al., “Cognitive Effects of Treating Obstructive Sleep Apnea in Alzheimer’s Disease: a Randomized Controlled Study”, Journal of the American Geriatric Society 56 (2008): p. 2.076-81; e W.d.S.

Moraes et al., “ e Effect of Donepezil on Sleep and REM Sleep EEG in Patients with Alzheimer’s Disease: a Double-Blind Placebo-Controlled Study”, Sleep 29 (2006): p. 199-205.

CAPÍTULO 8