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Aplicação do Direito x Criação do Direito

2.3 ESTUDO DA NORMA JURÍDICA

2.3.2 O processo decisório do juiz: Interpretação e aplicação da norma jurídica

2.3.2.3 Aplicação do Direito x Criação do Direito

Uma vez feitas as observações acerca do processo decisório do juiz, é hora de analisarmos se o juiz, ao tomar uma decisão, cria uma norma ou simplesmente aplica o Direito vigente. Antes disso, é muito útil trazer à baila as classificações das normas jurídicas, que as dividem em individuais e gerais; abstratas e concretas.

A classificação de normas individuais e gerais leva em consideração basicamente a relação entre a norma jurídica e o destinatário dela, ou seja, o sujeito passivo atingido pela autoridade da norma. Assim, a norma geral seria aquela que o sujeito passivo é indeterminado, tendo como exemplo clássico a lei. Já a norma individual63 é aquela cujo sujeito passivo é determinado64, sendo a sentença um bom exemplo desse caso.

63 Bulygin questiona essa classificação, pois, segundo ele, generalidade seria uma característica da norma jurídica e, por isso, seria incorreto falar em normas individuais. Só existindo normas gerais. Dessa forma, o autor é expresso em afirmar: “Cabe falar é duvidoso que as chamadas “normas individuais” sejam normas. O termo “norma” – e com maior razão, o termo “regra” – parece requerer a generalidade, ao menos no que diz respeito ao destinatário da norma. Por este motivo, provavelmente seria mais razoável denominar a parte resolutiva de uma sentença “disposição” ou “mandato” e não “norma individual” (No original: “Cabe agregar que es dudoso que las llamadas “normas individuales” sean normas. El término “norma” – y con mayor razón el término “regla” – parece requerir la generalidad, al menos respecto del sujeto o destinatario de la norma. Por este motivo sería probablemente más razonable denominar a la parte resolutiva de una sentencia “disposición” o “mandato” y no “norma individual”). BULYGIN, Eugenio, Los jueces .crean derecho?. Isonomía: Revista de Teoria y Filosofia del Derecho. n.o 18, 2003, p. 13.

64 Dessa forma, o termo individual não significa que apenas um indivíduo é atingido pela incidência da norma, mas que a norma tem como destinatários uma ou mais pessoas que sejam determinadas. O importante aqui é o critério de identificação ou não do sujeito passivo e não a quantidade de pessoas. Nesse sentido, MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006, p. 89.

Já quando falamos em normas abstratas ou concretas, na verdade, estamos falando da relação entre norma e fato e não mais entre norma e sujeito. Dessa forma, a norma abstrata seria aquela em que o Direito regula hipoteticamente uma situação, não sendo necessária a ocorrência fática para a identificação da solução jurídica a ser adotada65. Assim, por exemplo, uma lei traz em seu bojo uma série de enunciados abstratos. Então, quando falamos que matar alguém é um crime, não estamos falando de nenhuma situação que tenha ocorrido concretamente, mas dando a solução abstrata para todos os casos que se encaixarem nessa situação (pena de seis a vinte anos). A norma concreta, por sua vez, é aquela que, normalmente, baseada numa solução abstratamente regulada, resolve uma situação que ocorreu na realidade fática66. O melhor exemplo é uma sentença, que, com base na lei, diz que Tício deve ser condenado por ter cometido o homicídio de Caio.

Levando-se em conta essa classificação, não se pode negar que a decisão judicial cria uma norma concreta, inovando o ordenamento jurídico. Essa criação, contudo, deve obedecer às normas gerais e abstratas, que são o fundamento de validade das normas concretas. Dessa maneira, ocorrem dois fenômenos simultaneamente, a criação de uma norma concreta e a aplicação de norma abstrata67.

Há uma situação em que o juiz fica impossibilitado de aplicar as normas gerais do sistema, pois elas não existem, são as chamadas lacunas. Nesse caso, Bulygin defende que o Direito por não ser um todo completo e coerente, autoriza os juízes a criar não uma regra individual, mas uma regra geral, que servirá para reger aquele caso concreto, além de funcionar como um precedente a ser levado em consideração por outros juízes quando se depararem com casos semelhantes. Explica-se: o juiz, normalmente, não está autorizado a criar regras gerais, dessa forma, quando houver uma regra prevista pelo legislador para resolver determinado caso concreto, o magistrado deve aplicá-la. Porém, quando inexistir tal regra, estaremos diante de uma lacuna, e, nesse caso, o julgador estará autorizado a criar (haveria discricionariedade

65 Tarek Moussalem trata com maestria do tema: “Como o antecedente da norma abstrata é um enunciado conotacional, não podemos afirmar, com rigor lingüístico, existir um fato jurídico. O antecedente da norma abstrata possui critério de identificação de um fato jurídico, não o fato propriamente dito” ibid. p.. 89.

66 Também são importantes as palavras de Tarek Moussalem acerca das normas concretas: “Fala-se em norma concreta quando a situação fáctica descrita na hipótese da norma abstrata (enunciado conotacional) ocorre na realidade empírica, adquirindo identidade lingüística competente, ou seja, revestimento em linguagem hábil. Trata-se aqui de um enunciado denotativo, referente a um evento concretamente ocorrido e relatado em linguagem competente (fato) subsumido ao enunciado conotativo”. ibid, p. 89.

67 Kelsen tratou dessa relação entre criação/aplicação das normas, afirmando: “Uma norma que regula a

produção de outra norma é aplicada na produção, que ela regula, dessa outra norma. A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. Estes dois conceitos não representam, como pensa a teoria tradicional, uma oposição absoluta. E desacertado distinguir entre atos de criação e atos de aplicação do Direito (...)A aplicação do Direito é, por conseguinte, criação de uma norma inferior com base numa norma superior ou execução do ato coercivo estatuído por uma norma”. Kelsen, 1998b, p. 260-261.

judicial) uma norma geral68 para resolver a questão. Essa mesma solução seria adotada pelo magistrado em todos os casos desse tipo julgados por ele, não por uma questão de poder vinculante formal do Direito, mas por que um juiz que julga casos iguais de maneira diferente atua de forma irracional69. Havendo discordância de outros juízes com a tese adotada e com isso a criação de novas regras gerais, então, fatalmente, o caso chegaria ao Supremo Tribunal, e isso acabaria desembocando na criação de uma jurisprudência dominante e, assim, haveria a criação de uma norma geral por meio jurisprudencial.

Não há dúvidas de que a tese apresentada por Bulygin é bastante interessante, mas é preciso um pouco de cuidado para adotá-la. Dizer que o juiz é livre para criar uma solução no caso de lacunas, não pode significar que o magistrado não precisa respeitar o ordenamento jurídico. Isso significa essa nova regra geral terá o mesmo tratamento das outras, ou seja, deverá ser adequada às outras regras gerais e superiores. Uma sentença, então, não poderá violar a Constituição a pretexto de estar regulando uma situação lacunosa.

Essa decisão, de fato, não estaria prevista no sistema jurídico, que, todavia, possui critérios tanto para a produção dela (dispositivos prevendo a integração) quanto para aferir a sua regularidade. Assim, essas normas gerais criadas pelo magistrado passariam por uma espécie de “filtro de juridicidade” para poderem atestar a sua validade e serem aceitas como aplicáveis70.

2.4 A NORMA JURÍDICA DENTRO DO ORDENAMENTO: UM BREVE ESTUDO