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Súmula vinculante e a possibilidade de ação rescisória

4 O ESTUDO DOS DISPOSITIVOS QUE REGULAMENTAM A SÚMULA

5.3 A FORÇA NORMATIVA DA SÚMULA VINCULANTE NO PROCESSO

5.3.4 Súmula vinculante e a possibilidade de ação rescisória

No tópico anterior defendemos que a coisa julgada consiste basicamente numa qualidade que torna imutável o conteúdo do comando da sentença. Assim, com o trânsito em julgado a decisão final do magistrado ganha um status definitivo e não pode mais ser reformada por nenhum recurso.

Almejando suavizar um pouco essa realidade e evitar que uma grande quantidade de sentenças inválidas se tornasse definitivas, o sistema jurídico criou a ação rescisória que constitui um remédio excepcional para “retirar do mundo jurídico essas decisões judiciais que já transitaram em julgado e que estão produzindo efeitos no mundo fático, mas que na verdade são decisões que padecem de algum vício muito sério, não percebido no andamento do processo317”.

Nesse cenário, a ação rescisória surge como uma ação autônoma de impugnação318, por meio da qual se pede a desconstituição de uma decisão transitada em julgado, para que uma nova decisão seja tomada. Ela é a última ratio que o sistema jurídico oferece para evitar a imutabilidade da decisão.

316 Logicamente que se esse desrespeito deixar de ser uma exceção e passar a se tornar uma regra, então, a ineficácia da norma pode influenciar na própria existência dela dentro do sistema, culminando com o que Kelsen chama de desuetude.

317 RODRIGUES, 2010, p. 542.

318 Nesse sentido, José Carlos Barbosa Moreira: “O direito brasileiro, à semelhança de outros ordenamentos, conhece dois tipos de remédios utilizáveis contra decisões judiciais: os recursos e as ações de impugnação. Em nosso sistema, o traço distintivo consiste em que, através do recurso, se impugna a decisão no próprio processo em que foi proferida, ao passo que o exercício de ação autônoma de impugnação dá sempre lugar à instauração de outro processo. A ação rescisória é o exemplo clássico dessa segunda espécie. Seria hoje anacronismo injustificável prolongar a controvérsia, que em certa época lavrou na doutrina, sobre a assimilação da ação rescisória à figura do recurso”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil,

Com isso, para sermos fiéis ao conceito defendido de coisa julgada (imutabilidade do comando da sentença), é preciso admitir que a coisa julgada só existirá de fato, com toda a sua autoridade, depois de decorrido o prazo da ação rescisória. Antes disso, embora se forme a coisa julgada formal, não há a imutabilidade do comando sentencial, já que o sistema jurídico ainda prevê uma forma de correção da decisão que contenha algum vício previsto nas hipóteses taxativas do artigo 485 do Código de Processo Civil. Apenas depois disso é que teremos a coisa julgada material e a decisão tornar-se-á definitiva319. Assim, reafirmando a posição de que a súmula vinculante não pode relativizar coisa julgada material, passaremos a analisar a possibilidade de utilização de ação rescisória para as decisões que violem a súmula vinculante.

O artigo 485 do Código de Processo Civil prevê as seguintes hipóteses para o ajuizamento de ação rescisória320: I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar literal disposição de lei; VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal, ou seja, provada na própria ação rescisória; Vll - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

Uma das hipóteses que poderiam se relacionar à violação da súmula vinculante seria o erro de fato, que consiste em a sentença admitir um fato inexistente ou considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido. É preciso esclarecer que o erro deve recair sobre o fato em si, ou seja, sobre um evento ocorrido no mundo, não ocorrendo tal hipótese no caso de engano na

319 A maior parte da doutrina defende que a ação rescisória terá como objeto de rescisão a decisão judicial sobre a qual se imprima a autoridade da coisa julgada, ou seja, a decisão que se torna imutável e tem o seu comando eternizado. Nesse sentido, RODRIGUES, 2010, p. 546; CORTES, 2008, p. 54. Entretanto, não parece coerente dizer que a decisão tornou-se imutável e, ao mesmo tempo, prever uma ação capaz de mudá-la. Na verdade, a decisão só ganha, de fato, essa qualidade definitiva, quando não há mais nada que possa modificá-la e isso só ocorre quando já não puder mais ser usada a ação rescisória. Isso, contudo, não significa que os efeitos dessa decisão só se manifestem após a ação rescisória, tais efeitos ocorrerão desde o trânsito em julgado (não se pode confundir coisa julgada –imutabilidade do comando sentencial- com trânsito em julgado ou os efeitos da decisão), mas o comando sentencial só se tornará imutável com o fim do prazo para ação rescisória.

320 É importante ressaltar que tais hipóteses são taxativas, não podendo haver uma ampliação do rol previsto. Osmar Mendes Paixão Côrtes não deixa dúvidas: “Até por ser um remédio extremo, que tem como objetivo corrigir defeitos que tenham marcado uma decisão judicial transitada em julgado ou para, à luz de fato superveniente, adequar a decisão ao direito, a ação rescisória só é cabível nas hipóteses taxativamente previstas na legislação processual civil”. CÔRTES, 2008, p.68.

qualificação jurídica. Assim, quando o magistrado diante de um caso concreto considera que a cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas não viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal321, ele não estará cometendo um erro de fato, mas um erro de julgamento, visto que a qualificação jurídica utilizada por ele está equivocada. Tanto é assim que o erro deve ser constatado pelos simples exame dos documentos e peças dos autos originários. Já se falou que a súmula vinculante é uma norma abstrata e, portanto, não poderia ser confundida com essa hipótese, que é produzida por meio de uma análise concreta da situação fática. Por fim, o §2º do artigo 485 ainda exige dois requisitos adicionais: que não tenha havido controvérsia sobre o fato e que sobre ele tenha havido pronunciamento judicial. Então, não é cabível a ação rescisória por erro de fato no caso de violação de súmula vinculante.

A outra situação, que sem dúvida é a mais polêmica, é a utilização do inciso V do artigo 485 do Código do Processo Civil (violar literal disposição de lei) para o caso de desrespeito à súmula vinculante. Primeiramente vale esclarecer que essa discussão só deve ser levada adiante para o caso da decisão judicial contrária formada posteriormente à edição da súmula vinculante, pois, sendo ela anterior, então não será caso de ação rescisória (ao menos não por violação da súmula vinculante), pois a súmula vinculante possui um caráter prospectivo, não retroagindo e influenciando situações passadas.

A grande questão é saber se o vocábulo lei deve receber uma interpretação extensiva, englobando a súmula vinculante, ou uma interpretação restrita, excluindo os enunciados vinculantes322.

Analisando o tema, Barbosa Moreira ensina que lei, nesse caso, deve ser entendido em sentido amplo, compreendendo a Constituição, a lei complementar, ordinária, delegada, a medida provisória, o decreto legislativo, a resolução (Carta da República, art. 59), o decreto emanado do Executivo, o ato normativo baixado por órgão do Poder Judiciário (como o regimento interno). O mesmo autor, entretanto, afirma que decisão que se afaste da jurisprudência não terá de ser revista, ainda que o entendimento divirja de proposição constante de súmula,

321 A súmula vinculante número 12 tem redação expressa dizendo que a cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal.

322 Cassiano Luiz Iurk defende que o termo lei não pode ser empregado para a súmula vinculante: “Necessário ressaltar ainda, que sequer deve-se admitir a relativização da coisa julgada anterior em face da súmula vinculante, como sujeita à ação rescisória por violação à literal disposição de lei (art. 485, V do CPC), porque a súmula, para este fim, não se equipara à lei, e mesmo que assim fosse, admitir este hipótese seria permitir que todas as sentenças que tratassem de matéria constitucional estivessem condicionadas a uma interpretação futura coincidente com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, fazendo com que a coisa julgada tivesse sempre um caráter provisório” IURK, 2008, p. 120-121.

ressalvado o caso do disposto no artigo 103-A da Constituição (súmula vinculante). Assim, o que se verifica é que não só a lei strictu sensu está regulada pelo artigo 485, V, do CPC, mas a norma jurídica, tanto é que se propõe a utilização do termo Direito em tese ao invés de lei323.

O Supremo Tribunal Federal foi ainda mais longe e afastou a súmula 343 (não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais) quando a matéria divergente for de natureza constitucional. Deve-se garantir a força normativa da Constituição e isso só será feito quando forem prestigiadas as decisões do STF, que, afinal, é o guardião da Constituição. Gilmar Mendes, em voto no paradigmático RE 328812/AM afirmou:

Ora, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado à sua decisão. Não estou afastando, obviamente, o prazo das rescisórias, que deverá ser observado. Há um limite, portanto, associado à segurança jurídica. Mas não parece admissível que esta Corte aceite diminuir a eficácia de suas decisões com a manutenção de decisões diretamente divergentes à interpretação constitucional aqui formulada. Assim, se somente por meio de controle difuso de constitucionalidade, portanto, anos após as questões terem sido decididas pelos Tribunais ordinários, é que o Supremo Tribunal veio a apreciá-las, é a ação rescisória, com fundamento em violação de literal disposição de lei, instrumento adequado para a superação de decisão divergente324.

Assim, considerando que uma jurisprudência da Suprema Corte já é capaz de dar ensejo à ação rescisória, não há dúvidas de que ela deve ser admitida no caso da súmula vinculante. Essa posição adotada parece ser realmente a mais adequada, tendo em vista que o sistema jurídico não é formado apenas pela lei, diversos outros documentos normativos também possuem grande relevância, garantindo direitos que também devem receber a maior proteção possível. Levando-se às últimas conseqüências a literalidade do artigo 485, V, nem o tratado de direitos humanos (com hierarquia superior à lei) nem a Constituição seriam contempladas como hipóteses de cabimento da ação rescisória, o que é um absurdo, tendo em vista que a lei possui tal proteção. Por tudo isso, não há como negar que a violação à súmula vinculante, que é a jurisprudência do STF potencializada acerca de determinada matéria constitucional, pode ser atacada pela ação rescisória quando tiver seu comando violado325.

323 MOREIRA, 2009, p. 131-133.

324 RE 328812 ED, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2008, DJe-078 DIVULG 30-04-2008 PUBLIC 02-05-2008 EMENT VOL-02317-04 PP-00748 RTJ VOL-00204-03 PP-01294 LEXSTF v. 30, n. 356, 2008, p. 255-284.

325 Nesse sentido, Márcia Cadore: “Assim, as ações rescisórias propostas com base no artigo 485, inciso V, do Código de Processo Civil, para rescindir sentenças baseadas em normas declaradas inconstitucionais ou baseadas