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A CONSISTÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO

O ordenamento jurídico é uma construção escalonada, na qual a unidade de suas partes é garantida por um conjunto de princípios fundamentais, que determina o paradigma normativo de determinada sociedade. Entretanto, ainda não foi investigada a questão da coerência entre as normas jurídicas. Nesse ínterim, uma pergunta resume bem o que se pretende estudar: é possível que um ordenamento jurídico seja formado de normas contraditórias? Assim, basicamente será analisada a questão da antinomia entre normas jurídicas.

Para falar da incompatibilidade entre normas, é preciso enfrentar a intrincada questão da relação entre validade, pertença e aplicabilidade da norma jurídica. Já foi dito que o fato de uma norma pertencer a determinado sistema jurídico não implica necessariamente na sua validade. As condições para a sua pertença são: ter sido promulgada por uma autoridade competente do sistema, ser um dos princípios fundamentais que pairam sobre as outras regras (norma suprema) ou ser uma conseqüência lógica das normas supremas ou válidas. Nossa análise a seguir será limitada às normas promulgadas.

A validade foi usada no sentido de legalidade da norma, tanto formal (regularidade do procedimento de enunciação), quanto material (compatibilidade entre o conteúdo da norma e das normas superiores do ordenamento), diante dos fins previstos pelo ordenamento jurídico. Assim, é perfeitamente possível uma norma pertencer ao ordenamento, sem, contudo, ser válida. Dessa forma, quando um juiz cria uma sentença, por mais que seu conteúdo contrarie as normas superiores, ela passa a fazer parte do ordenamento e, com isso, pode gerar efeitos jurídicos relevantes, que não podem ser considerados inexistentes.

Nesse critério, é possível que uma norma pertença ao ordenamento, mas seja inválida, como uma sentença ilegal ou uma lei inconstitucional. Aceitar esse fato, todavia, não significa que as normas válidas e inválidas devam ser tratadas da mesma forma pelo aplicador do Direito. Isso quer dizer basicamente que a norma inválida pode até ser criada e inserida no sistema jurídico, mas só poderá ser expulsa com a criação de outra norma para essa finalidade. Apesar de fazer parte do sistema, ela não deve ser aplicada, pois viola as normas superiores que lhes dão sustentação. Entretanto, uma vez aplicada, seus efeitos jurídicos serão inevitáveis e podem se tornar definitivos (em virtude da autoridade da coisa julgada), só sendo possível sua anulação por meio de ferramentas fornecidas pelo próprio sistema.

Um exemplo ajuda a elucidar a questão: uma lei inconstitucional promulgada pelo Congresso Nacional integrará o sistema jurídico brasileiro, ao menos até que uma outra norma, como a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, a expulse do sistema. Mesmo diante dessa realidade, o magistrado não deverá aplicar tal diploma normativo, visto que ele fere as disposições de uma norma superior (a Constituição), não devendo fazer parte do sistema jurídico, mas como acabou inserido, não deve ser aplicado, pois é inválido. Caso o magistrado produza uma sentença com base nessa lei inconstitucional, então, ela também será inválida, embora também pertença ao sistema jurídico até ser anulada por uma outra norma (o recurso de um tribunal, por exemplo). Nessa situação, esse ato inválido do juiz poderá ganhar um caráter definitivo, pois no próprio ordenamento jurídico há a previsão da coisa julgada, que, com a finalidade de garantir estabilidade, tem como um dos seus efeitos tornar imutável o conteúdo do dispositivo da sentença, evitando uma rediscussão da matéria, ainda que a decisão tenha sido inválida.

É importante esclarecer que quando usamos o termo aplicação de uma norma jurídica, não ignoramos que ele também significa criação de uma norma inferior. Assim, dizer que o juiz não deve aplicar a norma superior viciada (lei inconstitucional – norma abstrata) é o mesmo de dizer que ele não deve criar uma norma inferior (norma concreta) contrária aos ditames constitucionais.

Então, a partir dessa análise, fica claro que toda a norma produzida possui implícita uma cláusula de que deve respeitar as normas superiores do ordenamento jurídico, sob pena de não ser permitida a sua aplicação pela autoridade competente. Isso não consegue prevenir que alguma norma inválida entre no sistema. Apesar disso, dizer que uma autoridade, sem autorização para tanto, inseriu incorretamente uma norma inválida no sistema é muito

diferente de dizer que a inserção de uma norma inválida é permitida. A possibilidade de produzir uma norma inválida é bem diferente da permissão para isso.

Admite-se que apesar dessa análise ser útil no que diz respeito à preservação das normas gerais e abstratas, ela fica muito prejudicada no que diz respeito às normas individuais e concretas, como as sentenças, que, em virtude das características do próprio ordenamento, ganham um caráter definitivo. De fato, como não é possível um controle a priori das normas jurídicas, muitas normas individuais podem entrar e se tornarem definitivas no sistema jurídico, sendo tal fenômeno apenas mais uma conseqüência da falibilidade humana.

Por fim, resta debater se a validade da norma estaria ligada ou não à decisão das autoridades normativas superiores. Explica-se: Kelsen, para comprovar a sua teoria acerca da impossibilidade de inconsistência no ordenamento jurídico, afirmava que uma norma inferior, qualquer que fosse o seu conteúdo, seria válida até a sua revogação por outra norma criada por uma autoridade superior. Com isso, apenas o próprio ordenamento jurídico poderia retirar essa validade, não sendo essa tarefa das partes nem de ninguém mais.

Desenvolvendo esse raciocínio, Lourival Vilanova102 tratou da separação entre Direito Positivo e Ciência do Direito, afirmando que esta seria apenas metalinguagem, incapaz de transformar o Direito Positivo. Sendo assim, a questão da validade não poderia ter esse caráter de legalidade defendido no presente trabalho, já que sendo apenas metalinguagem, não poderia provocar modificações no Direito Positivo e, portanto, até que uma autoridade superior declare determinada norma inválida, então ela seria válida, independente do conteúdo.

Apesar das observações acima, é muito importante reafirmar a validade como sinônimo de legalidade. Afinal, ainda que a Ciência do Direito não possa impedir a criação de normas inválidas, não se pode ignorar que há normas gerais no sistema e elas possuem força normativa. Ignorar esse fato é garantir um poder ilimitado ao aplicador do Direito, que não teria limites na sua tarefa103.

102 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 4 ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 130-134.

103 É preciso entender que o fato de o sistema jurídico eleger os juízes como intérpretes e aplicadores das normas gerais, não os torna criadores dessas normas. Como já foi dito anteriormente, a interpretação de uma norma não significa sua criação, mas compreensão do significado. Então, a relação entre aplicação e criação do Direito não pode ser confundida. Assim, a aplicação incorreta da norma geral influencia apenas na sua eficácia, embora a norma individual decorrente desse processo seja inválida (a questão da existência e validade, então diz respeito apenas à norma concreta e não à norma abstrata). Daí poderia surgir uma questão: quem está habilitado pelo sistema para dizer que a regra criada pelo juiz é inválida? De fato, não há ninguém com essa competência, afinal os juízes é quem teriam essa missão, quando eles não a cumprem com sucesso, então, o próprio sistema estabiliza os efeitos dessa decisão, tornando-a definitiva. Isso, contudo, não transforma em válida uma decisão inválida do magistrado (efeitos definitivos são diferentes de validade). Dessa maneira, uma decisão que contrarie

Assim, é preciso entender que, ao respeitar uma norma geral, não é a Ciência do Direito que está servindo de limite para o responsável pela aplicação da norma, mas o próprio Direito Positivo, cujas normas gerais possuem uma força normativa que não pode ser ignorada pelo aplicador do Direito.

Então, não é a autoridade normativa que determina a validade de uma norma inferior, mas a compatibilidade dela com as normas superiores do ordenamento jurídico. Validade é sinônimo de legalidade e, portanto, mesmo o órgão máximo do judiciário pode criar normas inválidas (nesse caso, tais normas entrariam no sistema e, em virtude de não poderem ser modificadas, consequentemente, provocariam efeitos jurídicos).

Essa tese também é compartilhada por Bulygin e Mendonça, que afirmam104:

Agora bem, a constitucionalidade de uma lei não depende do que diga tal Tribunal e uma lei que não foi ditada por uma autoridade competente, seguindo determinado procedimento e em relação com determinada matéria, segue sendo inconstitucional, ainda que o Tribunal diga o contrário. Contudo, o pronunciamento do Tribunal Constitucional é que determina a aplicabilidade da norma. Se o Tribunal disse (erroneamente) que a lei é constitucional, a lei será aplicável, ainda que não seja válida no sistema. Esta tese, que pode resultar chocante a muitos juristas, é, porém, mera conseqüência lógica da definição de pertença das normas ao sistema ou validez das normas ao sistema. Uma norma é válida em um sistema se, e somente se, tiver sido ditada por uma autoridade competente, de acordo com certas regras e para regular determinada matéria, e não quando alguém disse que é válida, ainda que esse alguém seja o tribunal competente para decidir acerca da constitucionalidade das leis.

Portanto, o sistema jurídico pode ser formado por normas incompatíveis, entretanto, isso não garante total liberdade ao aplicador do Direito, que deve analisar a validade de uma norma antes de aplicá-la.

direitos básicos do indivíduo, como permitir a tortura de um acusado para que ele delate seus comparsas, serão inválidas diante do paradigma normativo da nossa atual sociedade, ainda que tal ato seja permitido por um tribunal superior.

104 No original: “Ahora bien, la constitucionalidad de una ley no depende de lo que diga tal Tribunal y una ley que no fue dictada por una autoridad competente, siguiendo determinado procedimiento y em relación con determinada materia, sigue siendo inconstitucional, aunque el tribunal diga lo contrario. Pero es el pronunciamiento del Tribunal Constitucional el que determina la aplicabilidad de la ley. Si el Tribunal dice (erróneamente) que la ley es constitucional, la ley será aplicable, aunque no sea válida en el sistema. Esta tesis, que puede resultar chocante a muchos juristas, es, sin embargo, mera consecuencia lógica de la definición de pertenencia de las normas al sistema o validez em el sistema. Uma norma es válida en um sistema si, y sólo si, há sido dictada por autoridad competente, de acuerdo con ciertas reglas y para regular determinada materia, y no cuando alguien dice que es válida, aunque ese alguien sea el Tribunal competente para decidir acerca de la constitucionalidad de las leyes”. BULYGIN, y MENDONCA, 2005, p.71.