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2.3 ESTUDO DA NORMA JURÍDICA

2.3.2 O processo decisório do juiz: Interpretação e aplicação da norma jurídica

2.3.2.2 Aplicação

A aplicação é a utilização de normas para solucionar casos concretos, manifestando-se por meio de uma decisão. Assim, podemos dizer que a aplicação é a concretização da atividade interpretativa do magistrado, que, após desvendar o significado das normas jurídicas, deve escolher uma delas para resolver o conflito e, com isso, aplicar o Direito.

Esse processo decisório é encarado por parte da doutrina como um silogismo, no qual a premissa maior é a norma geral, a premissa menor é o fato e a conclusão é a subsunção do fato à norma (aplicação do Direito)56. É preciso muito cuidado com essa afirmação, já que a construção do raciocínio judicial é originada da interpretação, não sendo uma simples dedução das premissas.

55 Mauro Cappelletti trata com maestria o assunto, afirmando que há alguns limites para a interpretação judiciária. Segundo o autor: “o reconhecimento de que é intrínseco em todo ato de interpretação certo grau de criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade e assim de escolha -, não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos (...) é verdade que existe, pelo menos, um baluarte extremo, digamos uma fronteira de bom senso, que se impõe tanto no caso da interpretação do case law, quanto no do direito legislativo, ao menos porque também as palavras têm um significado tão geralmente aceito que até o juiz mais criativo e sem preconceitos teria dificuldade de ignorá-lo”. Além desses limites, que o autor denomina substanciais, ele também cita outros, que seriam processais, consistindo basicamente nos princípios da inércia, da imparcialidade e do contraditório. CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores?. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 24- 26.

56 Esse pensamento, segundo Perelman, foi defendido pela escola da Exegese: “Temos aqui uma tentativa de aproximar o direito quer de um cálculo que de uma pesagem, seja como for de algo cuja tranqüilizadora exatidão deveria proteger-nos contra os abusos de uma justiça corrompida como a do Antigo Regime (...) Uma vez estabelecidos os fatos, bastava formular o silogismo judiciário, cuja maior devia ser fornecida pela regra de direito apropriada, a menor pela constatação de que as condições previstas na regra haviam sido preenchidas, sendo a decisão dada pela conclusão do silogismeo”. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Trad. Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 33.

Com isso, antes mesmo de se falar em premissa maior, há que se definir o significado da norma geral. Karl Larenz lembra que os enunciados jurídicos, especialmente a lei, diferentemente de algumas ciências, não possuem conceitos rigorosamente fixados, mas termos relativamente flexíveis que são expressos por meio da linguagem corrente, logo também possuem os mesmos problemas de vagueza e ambigüidade. Esse quadro se agrava ainda mais em um ordenamento jurídico como o brasileiro, infestado de cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados e princípios57.

Ademais, as normas jurídicas não estão isoladas no ordenamento e, por isso, não é correto pensar na premissa maior enquanto uma única regra para regular o caso concreto. Quando dizemos que o juiz elegeu uma norma para aplicá-la para a resolução do caso concreto (artigo 155 do Código Penal, por exemplo), na verdade, não podemos ignorar que diversas outras normas também compõem essa solução, como as normas que garantem competência; as que estabelecem procedimentos; as que cuidam da análise probatória; alguns princípios constitucionais que fundamentam essa escolha, além de outros enunciados não normativos que também fazem parte dessa decisão. Enfim, não se deve falar em aplicação de normas, mas na aplicação do Direito58.

No que diz respeito à premissa menor (fato concreto a ser subsumido59), é preciso esclarecer que não há uma análise do evento real, mas dos elementos probatórios presentes nos autos. Nesse cenário, levando-se em consideração que o Brasil adota o sistema do convencimento motivado60, a premissa menor dependerá de uma série de interpretações do juiz em relação às

57 Karl Larenz apresenta com muita nitidez a situação: “Que o significado preciso de um texto legislativo seja constantemente problemático depende, em primeira linha, do facto de a linguagem corrente, de que a lei se serve em grande medida, não utilizar, ao contrário de uma lógica axiomatizada e da linguagem das ciências, conceitos cujos âmbito esteja rigorosamente fixado, mas termos mais ou menos flexíveis, cujo significado possível oscila dentro de uma larga faixa e que pode ser diferente segundo as circunstâncias, a relação objectiva e o contexto do discurso, a colocação da frase e a entoação de uma palavra. Mesmo quando se trata de conceitos em alguma medida fixos, estes contêm frequentemente notas distintivas que, por seu lado, carecem de uma delimitação rigorosa (...) Com freqüência, uma mesma expressão é usada em diferentes leis, e inclusivamente na mesma lei, em diferentes sentidos; assim, a expressão “condução de negócio alheio”, nos §§ 662 e 667 do BGB, por um lado, e no § 675, por outro”. LARENZ, 2005, p. 439-440.

58 CASTELLANOS, Angel Rafael Mariño e FACHETTI, Gilberto. O poder decisório das Autoridades

judiciais e a produção normativa- Parte 1. Disponível em: http://ordemepoder.blogspot.com/. Acesso em 20 de dezembro de 2010.

59 Karl Larenz explica que não são os fatos que são subsumidos na premissa menor, mas os enunciados sobre os fatos: “A situação de facto como enunciado, tal como aparece na premissa menor do silogismo de determinação da conseqüência jurídica e também no silogismo de subsunção, tem que ser distinguida da situação de facto enquanto fenómeno da vida, a que se refere tal enunciado. A premissa menor do silogismo de subsunção é o enunciado de que as notas mencionadas na previsão da norma jurídica estão globalmente realizadas no fenómeno da vida a que tal enunciado se refere”. LARENZ, 2005, p. 384.

60 Alexandre Freitas Câmara ensina os três sistemas de valoração da prova mais conhecidos. O primeiro seria o da prova legal, originário das ordálias, no qual as provas teriam valores fixos, definidos pela lei. Assim, uma prova testemunhal poderia valer um ponto, a confissão três pontos e a prova pericial dois pontos, cabendo ao juiz fazer essa soma para saber qual prova deve prevalecer. O segundo seria o sistema íntima convicção, podendo o

provas, o que nos leva à conclusão de que um mesmo conjunto probatório pode originar diferentes fatos (premissas menores), de acordo com a valoração dada pelo magistrado61. Dessa maneira, a premissa menor também não é automática, sendo necessária uma série de cognições do juiz.

Mesmo definidas as premissas maior e menor, ainda assim, não se pode afirmar que estaremos diante de um silogismo, pois a conclusão judicial nem sempre advém unicamente das premissas. Atienza comprova isso por meio do seguinte exemplo: o Código Penal Espanhol no artigo 344 prevê a pena de prisão maior (de seis anos e um dia a doze anos) para quem cometer o delito de tráfico de drogas (premissa maior); A e B cometeram o delito (premissa menor); logo, devem ser condenados à pena prevista (conclusão). O autor prossegue explicando que a conclusão do silogismo não representa a decisão da sentença, e sim um passo prévio da mesma. Na sentença, a parte dispositiva estabelece uma pena concreta, de seis anos (pena mínima), em virtude do réu do bom comportamento e sociabilidade dos réus. Entretanto, isso não é uma conseqüência necessária, sendo possível ao juiz condená-los à pena de 12 (doze) anos, sendo tal atitude perfeitamente legal e sem qualquer contradição com as premissas. Assim, essas premissas adicionais (bom comportamento e sociabilidade), que se unem ao processo argumentativo para justificar a decisão, acabam desnaturando a construção silogística, já que a conclusão final não mais depende apenas da premissa maior e premissa menor, depende também dessas novas premissas62.

Esse raciocínio, que é muito pertinente para o Direito Penal, pode ser usado em vários ramos do Direito, basta pensar no pedido de indenização ou na condenação por litigância de má-fé. Enfim, num cenário jurídico em que a razoabilidade e a proporcionalidade funcionam como elementos nucleares no raciocínio judicial, o silogismo, ao menos encarado nos termos tradicionais, parece não dar conta de explicar a complexidade do processo decisório do juiz.

juiz julgar de acordo com o seu convencimento, que poderia ser formado por quaisquer elementos, é o sistema usado ainda hoje para o Tribunal do Júri. Por fim, o terceiro sistema e que conta com mais prestígio, sendo adotado pelo processo civil é o da persuasão racional (ou livre convencimento motivado), no qual o juiz é livre para formar o seu convencimento, desde que se baseie nas provas presentes nos autos e justifique os motivos que o levaram a tomar a sua decisão. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. vol. 1, 18. ed. rev. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 382-384.

61 Quando se fala em liberdade do magistrado para valorar a prova, não se ignora que o juiz deve respeitar as regras processuais vigentes no sistema jurídico. Assim, quando o artigo 366 do CPC fala que quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir- lhe a falta, não pode o juiz simplesmente ignorar essa disposição e suprir a falta do instrumento público.

62 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. 3 ed. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006, p. 34-36.

O que se pretende, então, não é negar que o Direito trabalha com regras gerais (premissas maiores) e casos específicos (premissas menores) a fim de se atingir uma solução (conclusão). Essa forma de raciocinar é útil e não pode ser simplesmente abandonada, apenas adaptada para a complexidade exigida pelo fenômeno jurídico. Assim, quando falamos em premissa maior, devemos ter em mente não mais uma regra geral regulando um caso, mas na interpretação de todo o ordenamento jurídico, composto por regras de competência, definições etc. A premissa menor, no mesmo sentido, também deve ser encarada com suas particularidades, sendo formada numa dialética constante com as regras presentes no ordenamento. A conclusão também não pode ser obtida simplesmente por uma dedução das premissas, ela deve ser justificada com base nos princípios fundamentais do ordenamento jurídico.