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4 O ESTUDO DOS DISPOSITIVOS QUE REGULAMENTAM A SÚMULA

5.3 A FORÇA NORMATIVA DA SÚMULA VINCULANTE NO PROCESSO

5.3.3 Súmula vinculante e a coisa julgada

Antes de adentrar no tema da força normativa da súmula vinculante perante a autoridade da coisa julgada, é preciso lembrar que ambas foram criadas para garantir segurança jurídica. Nesse cenário, a coisa julgada possui surge como uma importante ferramenta para garantir estabilidade ao sistema301, dando um caráter definitivo às decisões judiciais. Mas o que é a coisa julgada?

O artigo 6º, §3º, da Lei de Introdução ao Código Civil assevera que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”. Já o artigo 467 do Código de Processo Civil, inspirado em Liebman, denomina coisa julgada material a eficácia302, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário303.

Doutrinariamente, vale comentar as idéias de Liebman, que rechaçou a tese de que a coisa julgada seja um efeito que torna a sentença imutável. Segundo o autor italiano, a eficácia da sentença pode ser definida como um comando com a finalidade de constituir, modificar ou determinar uma relação jurídica. Esse comando pode ser suscetível de reforma pela pluralidade de instâncias do sistema recursal sobre o qual o processo está construído e também pela criação de outro comando, pronunciado por outro órgão de Estado, de acordo com as regras do ordenamento jurídico em análise. Assim, não é a eficácia da sentença que

constitucional transformadora. 5 ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 33.

301 Osmar Mendes Paixão Côrtes comenta o assunto: “Sem a garantia do respeito à coisa julgada, o caos estaria instaurado, pois não só as partes envolvidas em uma lide viveriam em situação de insegurança, como também todos os jurisdicionados, pois não teriam a consciência e a tranquilidade de que, havendo dúvida quanto à resolução de um problema, o Poder Judiciário ditaria a solução definitiva a partir das normas do ordenamento jurídico. Assim, não conseguiriam guiar seus negócios, suas vidas e suas condutas” (CÔRTES. 2008, p.45). 302 Mais uma vez o legislador utiliza o termo eficácia como sinônimo de aptidão para produzir efeitos. As críticas sobre tal definição já foram feitas no capítulo I, o que se nota é uma promiscuidade do termo, ora usado como sinônimo de vigência, ora como aptidão para gerar efeitos, ou como o próprio efeito, enfim, o tema não é tratado com o devido cuidado.

303 Esse conceito é duramente criticado pela doutrina, pois ele não faz a distinção entre coisa julgada material e formal; não determina quais espécies de sentença ganhariam o selo da imutabilidade e indiscutibilidade; não é a coisa julgada que determina que a sentença vai se tornar imutável e indiscutível, e sim o trânsito em julgado. CÔRTES, 2008, p.45.

garante, por si só, a imutabilidade desse comando decisório304, mas uma qualidade que reveste o ato também em seu conteúdo, tornando imutáveis tanto o ato em sua existência formal, quanto os seus efeitos305. Essa qualidade (imutabilidade) que se agrega aos efeitos da decisão seria a coisa julgada.

Embora essa posição conte com o apoio da grande maioria da doutrina brasileira, Barbosa Moreira306, seguindo uma trilha um pouco diferente, defende que a coisa julgada não consiste na imutabilidade dos efeitos da sentença, mas na imutabilidade do conteúdo do comando da sentença307, pois os efeitos da sentença podem vir a ser modificados ou extintos e se o objeto do direito for disponível, as partes podem ajustar, após o trânsito em julgado, solução distinta. De fato, diante dos argumentos apresentados, a segunda corrente parece estar com a razão, já que a coisa julgada só terá o condão de tornar indiscutível e imutável o conteúdo da sentença e não seus efeitos308.

Ainda sobre o assunto, há uma divisão comumente feita entre coisa julgada formal e coisa julgada material. A primeira é “uma espécie de estabilidade relativa que a sentença ganha, para garantir que a discussão não poderá ressurgir no mesmo processo309”. Assim, a coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão dentro do processo, sendo, para alguns, conseqüência da preclusão máxima310. Já a coisa julgada material projeta seus efeitos para

304 A imutabilidade desse comando decisório é dada por uma questão de escolha política legislativa, não sendo algo ínsito à própria decisão.

305 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada . trad. Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 50-51.

306 No mesmo sentido, CAMARA, 2008, p. 460 e CÔRTES, 2008, p.44.

307 Barbosa Moreira procura se distanciar da proposta de Liebman, afirmando que “Liebman, que tanto fez para distinguir da eficácia da sentença a autoridade da coisa julgada, e com isso prestou serviço inestimável à ciência processual, deteve-se contudo a meio caminho. Em sua construção, fica ainda a coisa julgada conceptualmente presa à rede dos efeitos da sentença, como algo que a eles adere “per qualificarli e rafforzarli in um senso ben

determinato”, ou seja, para fazê-los imutáveis. Ora, tal compromisso é insatisfatório, até porque, na realidade, os

efeitos da sentença não se tornam imutáveis com o trânsito em julgado: o que se torna imutável (ou, se se prefere, indiscutível) é o próprio conteúdo da sentença, como norma jurídica concreta referida à situação sobre que se exerceu a atividade cognitiva do órgão judicial”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito

Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 89.

308 Marcelo Abelha Rodrigues destaca que a coisa julgada passou por um processo de dessubstancialização, deixando de significar o “caso julgado” para passar a ser a autoridade que se imprime ao caso julgado. Assim, para o autor a coisa julgada seria simplesmente o fenômeno de ter ocorrido o julgamento da lide (coisa=lide; julgada=particípio do verbo julgar) e não a imutabilidade da decisão dentro (coisa julgada formal) e fora do processo (coisa julgada material). RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil: teoria

geral: premissas e institutos fundamentais/ relação jurídica : procedimentos em 1. e 2. graus : recursos : execução : tutela de urgência. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2010, p. 548.

309 CÔRTES, 2008, p. 41.

310 Marcelo Abelha Rodrigues afirma que: “A consequência lógica da preclusão máxima, o efeito de sua ocorrência, é que a relação jurídica processual finda fica estável, de modo que não é mais possível movimentá-la. A imutabilidade e a estabilidade dessa relação jurídica processual é o que se denomina coisa julgada formal”. RODRIGUES, 2010, p. 246. Apesar dessa relação, não há que se confundir coisa julgada formal e preclusão, sendo ambos fenômenos diferentes, embora ligados. Ada Pellegrini Grinover esclarece a questão: “Na verdade, porém, coisa julgada formal e preclusão são fenômenos diversos, na perspectiva da decisão irrecorrível. A preclusão é, subjetivamente, a perda de uma faculdade processual e, objetivamente, um fato impeditivo; a coisa

fora do processo, tonando imutável o conteúdo da sentença e impedindo que juízes de processos futuros se pronunciem novamente sobre um caso já transitado em julgado311. Pode- se dizer que quando houver coisa julgada material, necessariamente deve existir coisa julgada formal; o inverso, todavia, não ocorre, podendo haver casos em que há coisa julgada formal, mas não se forma a coisa julgada material, como, por exemplo, quando o processo é extinto sem julgamento de mérito.

Quanto aos limites da coisa julgada, o Código de Processo Civil dispõe no artigo 469 que não fazem coisa julgada: os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. Isso significa basicamente que apenas recebe a autoridade da coisa julgada a parte dispositiva da sentença, estando de fora a motivação e fundamentação, que podem ser rediscutidas em ulteriores processos312. Quanto aos limites subjetivos o artigo 472 diz que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros. Uma vez estudados alguns conceitos iniciais, já é possível trazer à discussão a posição normativa que a coisa julgada ocupa no sistema, para, após isso, estudar a sua relação com a súmula vinculante.

A coisa julgada não é uma questão meramente processual, tendo previsão expressa na Constituição313, donde retira a sua força para estabilizar o sistema jurídico e garantir a autoridade e o respeito das decisões judiciais. Afinal, de nada adiantaria receber uma resposta

julgada formal é a qualidade da decisão, ou seja, a sua imutabilidade, dentro do processo. Trata-se, assim, de institutos diversos, embora ligados entre si por uma relação lógica antecedente-consequente”. Ada Pellegrini Grinover em notas ao livro LIEBMAN, 2007, p. 68.

311 O trânsito em julgado “é o momento da passagem da sentença da situação de mutável para a de imutabilidade, quando não há mais possibilidade de a sentença vir a ser alterada”. CÔRTES, 2008, p. 42. Para saber se essa imutabilidade se restringe apenas ao processo definitivamente julgado ou se ela também vale para qualquer processo que julgar o caso, é preciso analisar se há apenas a formação de coisa julgada formal ou se também se forma a coisa julgada material.

312 Cassiano Luiz Iurk destaca que não é possível dissociar completamente a parte dispositiva da sentença dos motivos que a ensejaram. Segundo o autor: “Não obstante a afirmação doutrinária de que apenas o decisium adquire a condição de coisa julgada, e nunca os motivos e fundamentos da sentença, importante ressaltar que estes não desaparecem por completo, pois são elementos necessários para o esclarecimento do sentido do julgado. Sob este aspecto, importa dizer que não há que se entender os limites objetivos da coisa julgada em seu aspecto meramente formal, confundindo-os com o que está exclusivamente contido no dispositivo da sentença, visto que esta parte da decisão apenas poderá ser corretamente mensurada caso seja correlacionada com a causa de pedir”. IURK, Cassiano Luiz. Coisa julgada e súmula vinculante. Curitiba: JM Livraria Jurídica, 2008, p. 33.

favorável do Poder Judiciário, se a qualquer momento essa situação pudesse ser modificada. Assim, essa norma abstrata prevista constitucionalmente funciona como fundamento de validade para que as normas concretas produzidas pelo magistrado ganhem estabilidade e seus efeitos se tornem permanentes314. Essa, então, é a função da coisa julgada, tornar imutável o conteúdo da sentença de casos concretos definitivamente decididos pelo juiz, garantindo a paz social.

A súmula vinculante, embora se origine de reiterados casos (normas concretas), é uma norma abstrata, aplicada não para resolver um caso concreto, mas para solucionar qualquer situação que se encaixe na hipótese de incidência prevista.

Dessa maneira, não há que se falar em conflito de normas no caso de uma decisão acobertada pela coisa julgada315 e súmula vinculante, pois ambas são normas de tipologias diferentes (uma é concreta e a outra é abstrata), com missões diferentes e âmbitos de incidência diferentes, não havendo possibilidade de choque entre elas.

Um exemplo ajuda a elucidar a questão: João é funcionário público e está sendo julgado em um determinado processo administrativo. Sobre o assunto, vale dizer que a redação súmula vinculante número 5 fala que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. Essa norma possui um caráter abstrato, devendo ser aplicada por quem está submetido à sua autoridade. Suponha que um juiz, vinculado, portanto, pela súmula, ignore-a e anule o processo administrativo de João pelo fato de não existir defesa técnica apresentada por advogado, incidindo a coisa julgada sobre a decisão, que, com isso, torna-se imutável.

Nesse caso, mesmo havendo uma contradição entre o comando sumular e a decisão acobertada pela coisa julgada, ambas cumpriram com as suas funções dentro do sistema. Sobre o assunto, é importante relembrar os ensinamentos de Kelsen, que, ao estudar a norma jurídica, defendia a utilização do princípio da imputação, ou seja, ocorrendo determinado evento, então deve ocorrer uma determinada conseqüência (Se A, então deve ser B). Assim, o fato de a súmula vinculante não ter sido aplicada em determinado caso concreto não retira a

314 Essa imutabilidade ocorreria, inclusive, no caso de normas inválidas, uma vez que, como já foi dito no capítulo 1, a pertença da norma ao ordenamento jurídico pode acontecer independentemente da validade, bastando para isso o ato de promulgação da autoridade competente. Logicamente que há casos em que essa imutabilidade cede para outros valores presentes no sistema jurídico, ocorrendo o que chamamos de relativização da coisa julgada.

315 Como já foi dito, a coisa julgada não é uma norma jurídica, mas uma qualidade que torna o conteúdo de comando da sentença definitivo. Quando estamos nos referindo a um eventual conflito, na verdade, seria entre a norma jurídica concreta produzida pelo magistrado, sobre a qual recaia a coisa julgada, e a súmula vinculante.

sua autoridade nem a sua existência no sistema jurídico, embora afete a sua eficácia316. Quanto à coisa julgada, ela cumpriu o seu papel de estabilizar o sistema, garantindo a imutabilidade da decisão judicial, ainda que contrária a normas superiores do sistema (inválida).

Em suma, a súmula vinculante atua no sistema como uma norma geral e abstrata, não podendo influenciar em decisões concretas acobertadas pelo manto da coisa julgada. Não há que se falar, então, em relativização da coisa julgada em virtude de contrariedade da decisão definitiva com o conteúdo da súmula vinculante.