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4 O ESTUDO DOS DISPOSITIVOS QUE REGULAMENTAM A SÚMULA

5.3 A FORÇA NORMATIVA DA SÚMULA VINCULANTE NO PROCESSO

5.3.1 Súmula vinculante x Lei

274 Conforme se verificou no capítulo 3, a única conseqüência da desobediência do juiz diante da súmula vinculante é a possibilidade da reclamação, com uma eventual cassação da decisão e ordem para que outra seja proferida. Isso ocorrerá sempre que a súmula vinculante seja descumprida, seja por inaplicação ou aplicação incorreta.

275 Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier: “Haverá súmulas erradas? Talvez. Haverá súmulas inconstitucionais? É provável. Ao juiz caberá não aplicá-las, se demonstrar que a situação de fato em que incide aquela súmula não é igual à dos autos; ao juiz caberá também recusar seu cumprimento, se a entender inconstitucional. Isto já ocorre hoje com textos de lei infraconstitucionais”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.

Súmula vinculante: desastre ou solução?. Revista de Processo, São Paulo, v. 25, n. 98, 2000, p. 306.

276 A utilização do termo lei engloba tanto a lei ordinária quanto a lei complementar, que na presente dissertação são encaradas como normas de mesma hierarquia, tendo apenas quórum e matéria diferenciados. Nesse sentido, PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ISENÇÃO. LEI 9.430/1996 E LEI COMPLEMENTAR 70/1991. PRECEDENTES. 1. É constitucional a revogação da isenção da COFINS, uma vez que não existe hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. 2. Matéria pacificada pelo Plenário do Supremo Tribunal: RE 381.964/MG, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, por maioria, DJe 13.3.2009 e RE 377.457/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, por maioria, DJe 19.12.2008. 3. Não ocorreu omissão quanto ao art. 3º, §1º, da Lei 9.718/98, pois o referido dispositivo não foi argüido anteriormente

As leis são normas jurídicas de um escalão inferior ao da Constituição e possuem a função básica de implementar os ditames constitucionais, prescrevendo condutas e, com isso, regulando os conflitos sociais. Sendo assim, a primeira característica importante das leis é o fato de tirarem o seu fundamento de validade da Constituição.

Ademais, esses documentos normativos inauguram o ordenamento jurídico prescrevendo condutas, ou seja, é basicamente por meio das leis que são determinadas as normas utilizadas para a resolução de conflitos. Nesse cenário, as leis são os principais veículos de regulamentação infraconstitucional, uma vez que inovam o sistema jurídico, tratando dos mais variados assuntos, precisando apenas respeitar as normas superiores do ordenamento. Algumas de suas principais características são a generalidade e abstração, apesar disso nem sempre ser observado em todos os diplomas normativos277. As súmulas vinculantes, por outro lado, são normas interpretativas e, por isso, devem estar apoiadas em um sistema jurídico anterior, que o Supremo Tribunal Federal interpreta, a fim de editar enunciados para resolver questões constitucionais que apresentem graves controvérsias. A súmula, portanto, não pode criar nenhuma norma que já não pudesse ser extraída da ordem jurídica, sendo vedado o tratamento de assuntos não enfrentados diretamente no ordenamento, sob pena de ter a sua validade questionada. Tal diferenciação é interessante de ser feita, pois delimita o campo de atuação de cada norma, influenciando diretamente na validade.

Dito isso, já é possível tratar da questão do tempo relativo da lei perante a súmula vinculante. O tema é um dos poucos que foi enfrentado diretamente pelo legislador, por meio do artigo 5º da Lei 11417/06, que possui a seguinte redação: “Revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso”.

Primeiramente, vale dizer que a revogação ou modificação de uma lei tem como principal conseqüência a mudança na estrutura normativa do ordenamento jurídico, gerando a criação de um novo sistema jurídico. Ademais, é bom lembrar que a súmula vinculante é fruto de reiteradas decisões, produzidas num determinado contexto normativo, donde se extrai a ratio decidendi que dá sustentação a esses enunciados vinculantes.

pela parte agravante. 4. Agravo regimental improvido. (AI 632154 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 01/12/2009, DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009 EMENT VOL- 02387-11 PP-02133 RT v. 99, n. 894, 2010, p. 126-127 LEXSTF v. 32, n. 373, 2010, p. 58-61).

Sendo assim, a lei editada posteriormente à súmula vinculante deve prevalecer, pois sendo alteradas as condições sobre as quais a súmula foi produzida, ou seja, modificando-se o ordenamento jurídico com a criação de um novo sistema, diverso daquele que serviu de fundamento de validade para edição da súmula, então, ela não deve mais incidir sobre essa nova realidade, tendo em vista que não pode ser dissociada dos precedentes que lhe deram origem e estes estavam ligados a um sistema jurídico anterior278. Assim, levando-se em conta a redação da súmula vinculante número 5 (A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição), caso o legislador, após a edição de tal enunciado, acrescentasse um artigo na Lei 9784/99, tornando obrigatória a defesa técnica por advogado no processo administrativo (nos moldes da antiga súmula 343 do STJ), sendo tal modificação considerada válida pelo STF, então, pode-se dizer que, nesse caso, a lei prevaleceria, tornando inaplicável a súmula vinculante.

Vale dizer ainda que a lei não tem o condão de revogar totalmente a súmula vinculante, que continuará regulando os casos ocorridos durante o período em que ela estava vigorando. Com isso, os comentários feitos no capítulo 1 sobre a revogação de normas aplicam-se também nesse assunto.

Luiz Norton Baptista de Mattos elucida o tema:

Não é correta ou precisa a simples afirmação de que a revogação ou a derrogação do texto constitucional ou legal interpretado leva à caducidade ou à perda do objeto da súmula. Os fatos jurídicos são regulados pela norma jurídica em vigor no momento da sua constituição, isto é, no instante em que preenchem todos os elementos necessários à sua existência no mundo jurídico segundo a lei vigente. Uma vez preenchidos esses requisitos em consonância com a norma legal vigorante, o fato jurídico será por ela regulado quanto à sua validade e aos seus efeitos, mesmo que aquela norma venha a ser alterada. Submetida ao Poder Judiciário alguma controvérsia quanto à sua validade ou aos seus efeitos, os órgãos jurisdicionais terão de aplicar a lei revogada, contemporânea à ocorrência do fato ou ato jurídico, na solução do mérito. Se tiver sido editado enunciado vinculante a respeito do significado, do conteúdo ou do alcance da norma legal revogada, aquele entendimento será de observância compulsória para o julgamento das ações ajuizadas posteriormente à alteração normativa, mas referentes a fatos anteriores a ela. A súmula continuará a vigorar para os fatos jurídicos ocorridos antes da alteração legislativa. Já quanto aos fatos posteriores à modificação legal ou constitucional, a súmula editada anteriormente não será mais aplicável, pois o conteúdo da norma jurídica mais recente pode ser diverso daquele da norma revogada e, por isso, incompatível com o enunciado da súmula do Supremo Tribunal Federal. A nova norma jurídica pode demandar interpretação do seu sentido pelo 278 Edílson Pereira Nobre Júnior comenta a situação: “Diversa da revisão e do cancelamento é a possibilidade dos órgãos públicos vinculados deixarem de adotar a orientação emergente da Súmula quando verificada a sua superação (...) Interessa assentar que os órgãos jurisdicionais e administrativos podem deliberar em não mais seguir o precedente quando, por força de alteração legislativa, ou constitucional relevante, não mais persistir a

Poder Judiciário, o que acabará, conforme o caso, e, depois de percorridas as diversas instâncias e preenchidos os requisitos que serão analisados no capítulo seguinte, levando à edição de novo verbete vinculante, com objeto e conteúdo diversos do anterior279.

A solução para o caso de súmula vinculante editada após a lei é diversa, ou seja, a súmula vinculante deve prevalecer. Isso ocorre porque, na verdade, antes mesmo da edição do enunciado sumular a lei já não era aceita pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sendo a súmula vinculante apenas um reflexo dessa interpretação realizada pela Suprema Corte.

Explica-se: o STF para resolver os casos que lhe são submetidos deve utilizar as regras presentes no sistema jurídico. Caso chegue à conclusão de que determinado mandamento legal afronta a Constituição, deve declarar a sua inconstitucionalidade, adotando solução contrária à lei e de acordo com a Constituição.

Podemos tomar como exemplo o RE 389383/SP280 que proibiu a exigência do depósito como pressuposto para a admissibilidade de recurso administrativo, em virtude de violar a garantia constitucional da ampla defesa. Tal decisão foi contrária aos parágrafos 1º e 2º do artigo 126 da Lei 8213/1991 (com redação dada pela Lei 9639/1998), sendo tais dispositivos, nessa ocasião, declarados inconstitucionais pela Suprema Corte.

Esse controle difuso, todavia, embora possua um considerável poder persuasivo é apenas uma decisão concreta, afetando somente as partes envolvidas, sem que tal entendimento se torne obrigatório para as demais instâncias do Poder Judiciário, ao menos até que o Senado edite a resolução descrita no art. 52, X, da Constituição. Assim, ainda que seja adicionada uma nova norma concreta, não há grandes alterações no ordenamento jurídico. Se outras decisões forem tomadas no mesmo sentido pelo STF, observa-se a formação de uma jurisprudência dominante, o que eleva ainda mais o poder de violência simbólica, sem, contudo, produzir efeito vinculante. Por isso é muito importante a súmula vinculante, pois ela potencializa essa jurisprudência e a torna vinculante para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e para a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

279 MATTOS, 2010, p. 80.

280 RECURSO ADMINISTRATIVO - DEPÓSITO - §§ 1º E 2º DO ARTIGO 126 DA LEI Nº 8.213/1991 - INCONSTITUCIONALIDADE. A garantia constitucional da ampla defesa afasta a exigência do depósito como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo. (RE 389383, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2007, DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP- 00031 EMENT VOL-02282-08 PP-01625 RDDT n. 144, 2007, p. 235-236).

Foi isso que ocorreu no supracitado caso do RE 389383/SP, que se juntou a diversos outros julgados no mesmo sentido281, servindo de inspiração para a edição da súmula vinculante número 21, que possui a seguinte redação: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”. Assim, a análise do tempo relativo da lei perante a súmula vinculante não é feita de forma automática, devendo-se analisar o momento em que cada norma é produzida. Apesar de serem duas normatizações bastante diversas, visto que cada uma delas possui fundamentos e missões diferentes (ainda que ambas se apóiem na Constituição), é forçoso reconhecer que, tendo em vista a situação descrita acima, o critério cronológico282 é fundamental para resolver essa disputa.