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2.3 ESTUDO DA NORMA JURÍDICA

2.3.2 O processo decisório do juiz: Interpretação e aplicação da norma jurídica

2.3.2.1 Interpretação

O Direito, para cumprir a sua função de organizar a sociedade, regulando condutas e dirimindo conflitos, utiliza-se de normas, que se manifestam por meio de textos, ou seja, por

afinal, diante de um texto controverso, poderiam ocorrer interpretações divergentes acerca de um mesmo enunciado e não ser possível descobrir qual é a norma jurídica existente no sistema.

45 “Defender a norma jurídica como sinônimo de interpretação poderia criar uma situação na qual coexistiriam diversas, a partir do mesmo enunciado, normas opostas no sistema (um juiz entende que o artigo X permite, enquanto outro que o mesmo artigo proíbe e um terceiro que tal dispositivo obriga). Sendo assim, haveria uma indeterminação do sistema, na qual ninguém saberia qual é a norma, dando ao intérprete um poder absoluto e ilimitado. Afinal, na prática, norma jurídica seria apenas aquilo que o juiz dissesse. Essa realidade garante um poder excessivo ao magistrado e faz com que as normas gerais percam boa parte da sua relevância, pois elas seriam apenas instrumentos para serem manejados pelos juízes. Portanto, em virtude dessa indeterminação do sistema, não será adotado o conceito de norma como interpretação do enunciado, mas como sinônimo de enunciado. Dessa forma, diante de um texto controverso, o que poderia ocorrer seriam interpretações divergentes acerca da mesma norma, gerando conseqüências jurídicas diferentes, mas os juízes, ao julgar o caso, estariam sempre diante da mesma norma geral (por exemplo, artigo 232 do Código Civil). O que poderia variar, portanto, seriam as interpretações e não a norma jurídica. Isso traria maior segurança, pois não se correria o risco de um texto criar diversas normas incoerentes, deixando o operador do Direito sem saber onde estaria a norma aplicável”.

46 Quando dizemos que a norma não é fruto de interpretação do magistrado, estamos defendendo que ela não é igual ao seu significado. Assim, a norma da súmula vinculante nº 27 (compete à justiça estadual julgar causas entre consumidor e concessionária de serviço público de telefonia, quando a anatel não seja litisconsorte passiva necessária, assistente, nem opoente) é o próprio enunciado e não o significado desse enunciado. Entretanto, é preciso admitir que nem todas as normas possuem um enunciado expresso, sendo descobertas por meio da interpretação. Assim, as normas implícitas são exemplos de normas produtos da interpretação dos enunciados.

meio da linguagem. Sendo assim, problemas como a ambigüidade47 e a vagueza48 atingem os enunciados jurídicos, especialmente aqueles mais abertos, como os princípios e as cláusulas gerais.

Nessa realidade, a interpretação é imprescindível para a compreensão e o próprio funcionamento do Direito, afinal, se não for possível determinar o sentido e alcance das normas jurídicas não há como aplicá-las. Com isso, a interpretação é um pressuposto para aplicação do Direito, não sendo possível aplicação sem interpretação49.

Segundo Angel Rafael Mariño Castellanos a interpretação jurídica possui duas etapas: uma etapa pré-interpretativa, na qual o intérprete deve determinar se existe uma norma (no sentido de enunciado lingüístico) aplicável ao caso, verificar se existe um precedente vinculante e determinar a aplicabilidade ou não do enunciado normativo ao caso50; e a outra etapa interpretativa, que, por sua vez, deve determinar os diferentes significados que o enunciado tem em relação ao caso, as conseqüências jurídico-normativas dos diferentes significados do enunciado para o caso e os sujeitos implicados, relacionar as conseqüências jurídico- normativas com outros fatores e decidir por um significado, que é tomar uma decisão51.

É preciso advertir ainda que essa busca pelo significado da norma não pode ser resultado da livre e espontânea intenção do intérprete, devendo respeitar alguns critérios ou métodos. A

47 Ambigüidade é o uso da palavra com mais de um significado. Ocorre quando a palavra é usada com dois ou mais sentidos (ex. manga – que pode ser fruta ou parte de uma camisa).

48 A vaguidade é o estado de indeterminação da palavra, é sua condição de imprecisão. É a incapacidade de determinarmos se a linguagem da realidade social está abrangida pelo conceito de uma palavra (Ex. jovem – uma pessoa de 18 anos está incluída nesse conceito?).

49 Nesse sentido, Angel Rafael Mariño Castellanos: “Toda aplicação supõe, obrigatoriamente, uma interpretação. Mas nem toda interpretação supõe uma aplicação. Para chegar a uma decisão, no processo de aplicação, deve-se primeiro descobrir uma decisão anterior que está contida nessa norma. E para determinar o que está contido nessa norma que será adotada ou utilizada, é necessário, preliminarmente, desvendar o que ela diz, qual o dever- ser, a conduta planejada, a regra, o mandato, o que está requerido. Veja, portanto, que a decisão decorre de um processo complexo, baseado na trilogia linguagem – interpretação – aplicação”. CASTELLANOS, Angel Rafael Mariño e FACHETTI, Gilberto. O poder decisório das Autoridades judiciais e a produção normativa- Parte

1. Disponível em: http://ordemepoder.blogspot.com/. Acesso em 20 de dezembro de 2010.

50 O próprio autor alerta que “É incorreto dizer que o intérprete faz uma escolha entre diferentes normas; ele faz uma escolha entre diferentes significados. Para chegar à escolha ele necessitou identificar diferentes significados”. CASTELLANOS, Angel Rafael Mariño e FACHETTI, Gilberto. O poder decisório das

Autoridades judiciais e a produção normativa- Parte 1. Disponível em:

http://ordemepoder.blogspot.com/. Acesso em 20 de dezembro de 2010.

51 Embora valiosas as lições do autor, sendo, inclusive, bastante didáticas para explicar o fenômeno da interpretação, não há essa ordem (primeiro a fase pré-interpretativa e depois a interpretativa), ocorrendo todo o processo interpretativo simultaneamente. Explica-se: quando o juiz se depara com um caso concreto, a sua primeira missão é identificar se existe alguma norma aplicável ao caso. Ora para saber disso, é preciso que o juiz conheça os significados dessas normas, o que só acontecerá com a interpretação das normas gerais presentes no sistema. Veja, então, que há uma interpenetração entre as fases pré-interpretativa e interpretativa, na qual o magistrado utilizando-se das suas pré-compreensões (que logicamente são fruto da interpretação) acerca das normas gerais identificará as normas presentes no sistema regulando a questão, após isso determinará o significado delas e, por fim, escolherá o significado mais adequado para aplicar. Assim, não há uma fase pré- interpretativa, havendo interpretação em toda atividade normativa produzida pelo juiz.

doutrina possui vasta produção sobre quais seriam esses métodos interpretativos52, podendo-se destacar as idéias de Savigny, que propõe os seguintes métodos de interpretação: gramatical, lógico, histórico e sistemático. O método gramatical busca significado da norma a partir da estrutura gramatical do enunciado, os sentidos da palavra e de que forma estão conectadas; o lógico foi desenvolvido para evitar incoerências na busca pelo significado; o sistemático defende que a norma não está isolada no sistema, não podendo ser encarada de forma dissociada do complexo normativo ao qual ela pertence; e o histórico leva em consideração o fundamento histórico para a produção da norma53.

Independente do autor a ser adotado, o mais importante no que diz respeito a esse assunto, é entender que esses métodos não são excludentes, pelo contrário, são complementares e devem ser entendidos sempre de forma integrada. Angel Rafael Mariño Castellanos é preciso quando afirma:

Os critérios e métodos de interpretação incidem na interpretação do Direito. Os autores geralmente são excludentes, ou seja, ou se interpreta por um método ou por outro. Todavia não é bem assim, a exemplo do que ocorre com as interpretações objetiva e subjetiva, em que o ideal é trabalhar com as duas. Dessa maneira, o melhor método é aquele que, na verdade, faça uma junção de todos os métodos no processo de interpretação. Isto fará com que a interpretação seja uma interconexão (...) Não se trata de diferentes métodos de interpretação entre os quais o intérprete venha porventura escolher um, segundo seu arbítrio, mas de pontos de vista diretivos aos que cabe peso distinto. Quando o intérprete aplica diferentes pontos de vista com pesos distintos, entende-se que é porque está num processo de complementação. A justiça da solução é uma meta desejável da atividade judicial: a justiça não é a utilização de um método, senão o resultado que se espera após a interpretação54. 52 Outro importante autor que tratou do assunto foi Karl Larenz, que propôs os seguintes critérios de interpretação: sentido literal, contexto significativo da lei, intenção reguladora, critérios teleológico-objetivos, conformidade com a Constituição e inter-relação dos critérios de interpretação. O primeiro é o sentido literal, que significa interpretar dentro do significado da palavra, ou seja, do significado da norma (aproxima-se do critério gramatical); O contexto significativo da lei refere-se a identificar que essa norma que está sendo interpretada pertence a uma lei, o significado dela nunca poderá ser achado fora do contexto em que ela está colocada. Procura o significado da norma no contexto significativo da lei, no marco contextual em que ela se encontra; a intenção reguladora, isto é, fins e idéias normativas do legislador histórico, pode ser associada ao método histórico de Savigny em que, para decidir qual o significado que a norma interpretada tem, busca-se as intenções do legislador. Aliás, mais do que as intenções, o contexto histórico em que se deu a formulação ou a criação da norma; já os critérios teleológico-objetivos não buscam as intenções do legislador no momento da criação, mas a sua finalidade no presente; e a conformidade com a Constituição, pela qual toda interpretação deve partir da busca do significado em conformidade com a Constituição. LARENZ, Karl. Metodologia da

Ciência do Direito. 4 ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005, p. 450-483.

53 SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Sistema del derecho romano actual – Tomo I/ por F. C. de Savigny ; Trad. Jacinto Mesía y Manuel Poley ; Prólogo de Manuel Durán y Bas. 2 ed. Madrid : Centro Editorial de Góngora, [1880?], p. 150. Disponível em:

http://fama2.us.es/fde/ocr/2009/sistema_Del_Derecho_Romano _Actual_Savigny_T1.pdf.

54 CASTELLANOS, Angel Rafael Mariño e FACHETTI, Gilberto. O poder decisório das Autoridades

judiciais e a produção normativa- Parte 1. Disponível em: http://ordemepoder.blogspot.com/. Acesso em 20 de dezembro de 2010.

Por fim, vale falar rapidamente dos limites desses poderes hermenêuticos do juiz, já que ele não é ilimitado na sua tarefa de interpretar textos55. O primeiro são os métodos de interpretação, que não podem ser ignorados pelo magistrado na sua atividade, como, por exemplo, o sentido literal do texto (ou método gramatical) que precisa ser levado em conta na produção de suas decisões; além disso, o juiz deve respeitar a realidade existente, adaptando as normas jurídicas às exigências da sociedade em que vive; deve ainda seguir as exigências formais e materiais do discurso racional; deve respeitar os precedentes vinculantes; por fim, deve respeitar as regras superiores do ordenamento.