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Súmula vinculante x Medida Provisória

4 O ESTUDO DOS DISPOSITIVOS QUE REGULAMENTAM A SÚMULA

5.3 A FORÇA NORMATIVA DA SÚMULA VINCULANTE NO PROCESSO

5.3.5 Súmula vinculante x Medida Provisória

Como já se falou no capítulo 2, o princípio da Separação dos Poderes não pode ser visto de forma absoluta, possuindo alguns temperamentos ou funções atípicas como, por exemplo, as súmulas vinculantes e as medidas provisórias.

As medidas provisórias originaram-se do Decreto-lei, previsto primeiramente na Constituição de 1937326, e utilizado para a regulamentação de diversos temas importantes, como o Código Penal, o Código de Processo Penal e boa parte da legislação trabalhista. Tal previsão foi mantida nas Constituições de 1967327 e 1969328.

A Constituição de 1988 extinguiu a figura do Decreto-lei, substituindo-o pela medida provisória, que funcionaria como uma verdadeira legislação de urgência a ser manuseada pelo Poder Executivo. Segundo José Levi do Amaral Júnior ela pode ser definida como “ato normativo primário, e provisório, circunscrito à esfera privativa de competência do Presidente da República, possuindo, desde logo, força, eficácia e valor de lei329”. Regulada no artigo 62 da Constituição, a medida provisória possui dois requisitos fundamentais para a sua validade, a relevância e urgência, podendo, inclusive, ser objeto de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal330.

na inconstitucionalidade de norma posteriormente considerada constitucional, ou, ainda proferidas de forma contrária à súmula vinculante, terão, necessariamente, que ser julgadas procedentes”. CADORE, Márcia Regina Lusa. Súmula vinculante e uniformização de jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007, p. 234-235.

326 O termo Decreto-lei foi usado em vários sentidos pela Constituição de 1937, embora a previsão do artigo 180 (Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União) tenha sido a mais utilizada e que ficou mais conhecida.

327 Artigo 58 da Constituição de 1967: Art 58 - O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias: I - segurança nacional; II - finanças públicas. Parágrafo único - Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá- lo; se, nesse prazo, não houver deliberação o texto será tido como aprovado.

328 Redação do artigo 55 da Emenda Constitucional n. 1 de 1969 (Constituição de 1969): Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes matérias: I - segurança nacional; II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. §1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo, se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado. 329 AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em Lei: a emenda

constitucional n. 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 122.

330 O Supremo Tribunal Federal admite que essa análise de relevância e urgência não pode ter um viés apenas jurídico, havendo também uma grande carga política. Apesar disso, há casos em que, para proteger a Constituição, a Suprema Corte precisa intervir e exercer o controle de constitucionalidade, como no EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MEDIDA PROVISÓRIA. REQUISITOS DA URGÊNCIA E RELEVÂNCIA. O

Nesse cenário, a medida provisória funciona da seguinte maneira: o presidente, diante de uma questão relevante e urgente, respeitadas as limitações do artigo 62, §1º da Constituição331, edita uma medida provisória para regular o assunto. Nesse caso, tal ato normativo deve ser avaliado pelo Congresso Nacional no prazo de sessenta dias (prorrogável por igual período), sob pena de, se não for convertida em lei, perder a sua eficácia332. Assim, embora possua força de lei, a medida provisória não é lei333, possuindo caráter excepcional e temporário.

O Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ADI 1417/DF334 adotava o entendimento que a medida provisória (ato transitório do Poder Executivo) e a lei de conversão (ato definitivo do Poder Legislativo) eram atos distintos e, em virtude disso, a conversão em lei convalidaria vícios presentes na medida provisória, como falta de relevância e urgência, já que, nesse caso, não se trataria mais da análise de medida provisória, mas de uma lei335. Entretanto, tal entendimento foi modificado a partir da ADI 4048/DF, que foi expressa em

entendimento desta Corte é no sentido de que o exame dos requisitos da urgência e relevância somente pode ser submetido ao Judiciário quando se configurar abuso da discricionariedade pelo chefe do Poder Executivo. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 489108 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 02/05/2006, DJ 26-05-2006 PP-00029 EMENT VOL-02234-06 PP-01185).

331 Art. 62, §1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; III - reservada a lei complementar; IV - já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República

332 Mais uma vez o termo eficácia é usado de forma um pouco diferente do que foi explanado na presente dissertação. Na realidade não se trata de perda de eficácia, mas de vigência.

333 Celso Antônio Bandeira de Mello aponta algumas entre os dois institutos: as medidas provisórias teriam caráter excepcional, ao contrário das leis, que seriam a forma normal de regulamentação; as medidas provisórias seriam efêmeras, enquanto as leis teriam duração indeterminada; as medidas provisórias dependeriam de manifestação de outro órgão (Congresso Nacional), já as leis só dependeriam dos órgãos que responsável por editá-las (quando constitucionais, obviamente); a medida provisória possui requisitos como a relevância e urgência, não previstos para as leis. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Perfil Constitucional das Medidas

Provisórias. RDP, n. 95, 1990, p. 28-32.

334 EMENTA: Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP. Medida Provisória. Superação, por sua conversão em lei, da contestação do preenchimento dos requisitos de urgência e relevância. Sendo a contribuição expressamente autorizada pelo art. 239 da Constituição, a ela não se opõem as restrições constantes dos artigos 154, I e 195, § 4º, da mesma Carta. Não compromete a autonomia do orçamento da seguridade social (CF, art. 165, § 5º, III) a atribuição, à Secretaria da Receita Federal de administração e fiscalização da contribuição em causa. Inconstitucionalidade apenas do efeito retroativo imprimido à vigência da contribuição pela parte final do art. 18 da Lei nº 8.715-98. (ADI 1417, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/1999, DJ 23-03-2001 PP-00085 EMENT VOL- 02024-02 PP-00282)

335 Nesse sentido ainda José Levi Mello do Amaral Júnior: “Com efeito, os vícios próprios e peculiares à medida provisória não se transmitem a uma eventual e subseqüente lei de conversão. Isso porque a lei de conversão é ato legislativo formal com autonomia relativamente à medida provisória (...) Assim, os vícios próprios e peculiares à medida provisória maculam apenas e tão-somente essa. Se acaso declarada a inconstitucionalidade de um vício próprio e peculiar à medida provisória (que já tenha sido convertida em lei), a conseqüência será a nulificação das normas que tiveram vigência provisória por força da decretação de urgência, sem prejuízo da lei de conversão”. AMARAL JUNIOR, 2004, p. 288.

afirmar que a lei de conversão não invalida os vícios contidos na medida provisória336. Essa nova orientação faz com que a lei de conversão tenha a mesma sorte da medida provisória num eventual conflito com outra norma superior do ordenamento jurídico, pois uma vez que a medida provisória seja considerada inválida, tal efeito “contamina” a lei de conversão, tendo em vista a impossibilidade de convalidação dos vícios.

Em relação ao confronto da súmula vinculante com a medida provisória, considerando que se afirmou que esta possui força de lei, poder-se-ia afirmar cair na armadilha de dizer que a solução seria a mesma utilizada para o tempo relativo da súmula vinculante diante da lei. Isso, porém, não ocorre, pois a medida provisória apresenta dois requisitos fundamentais para a sua validade, relevância e urgência, que não são exigidas para a edição lei.

Com relação à relevância, não há dúvidas de que esse elemento sempre estará presente numa medida provisória que entre tenha uma redação contrária a de uma súmula vinculante, afinal, os enunciados vinculantes do Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 103-A da Constituição, sempre tratarão de matéria constitucional, o que inviabiliza qualquer questionamento acerca da relevância da matéria.

336 EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões "guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. "Guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. (ADI 4048 MC, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2008, DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008 EMENT VOL-02329-01 PP-00055 RTJ VOL-00206-01 PP-00232)

Quanto à urgência, o entendimento a ser adotado é diverso. Para chegar a essa conclusão basta lembrar que a súmula vinculante decorre de reiteradas decisões sobre um assunto, representando a jurisprudência pacificada da Suprema Corte acerca de uma questão que provocava grave divergência no âmbito do Judiciário. Até que se chegue à formação de tais enunciados (passagem do concreto para o abstrato) é preciso uma maturação daquele caminho a ser seguido. Já a medida provisória é um ato de urgência, de caráter excepcional e transitório, que o Executivo toma para agilizar a regulamentação de uma situação que poderia demorar a ser resolvida pelo Congresso Nacional. Nesse cenário, uma jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, ainda mais quando consubstanciada em uma súmula vinculante, é algo muito importante não podendo ser desafiada por uma medida provisória, que possui uma natureza excepcional, com diversas limitações, não tendo sequer um caráter definitivo.

Portanto, não há como visualizar a satisfação do requisito da urgência e levando-se em conta a própria finalidade para a qual a medida provisória foi feita (servir como um expediente de urgência), a súmula vinculante, que visa à estabilidade do sistema, sempre deve prevalecer diante de uma medida provisória com redação contrária ao enunciado sumular.