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Aptidões cognitivas e percursos escolares: Que relação?

CAPACIDADES COGNITIVAS E PERCURSOS EDUCATIVOS DOS RAPAZES E DAS RAPARIGAS

2. Aptidões cognitivas e percursos escolares: Que relação?

De uma maneira geral, observa-se ainda actualmente que os rapazes ten- dem a enveredar por certas áreas de estudo e as raparigas por outras, che- gando a apresentar um rendimento diferencial nas mesmas, facto que parece conferir robustez acrescida à crença de que existem diferenças reais entre os 1No que diz respeito a dimensões de natureza afectiva, é possível encontrar documentadas na literatura magnitudes do

efeito muito mais elevadas do que aquelas que se conhecem relativas ao domínio cognitivo, o que parece apontar para a existência de maiores diferenças entre os sexos relativamente aos comportamentos estudados. Pode mencionar-se, a título de exemplo, uma meta-análise conduzida por Feingold (1992, citado por Feingold, 1994, p. 450) sobre as características valorizadas num parceiro romântico: a atracção física do parceiro parecia ser mais importante para os homens (d=.54) e o estatuto socioeconómico e a ambição do parceiro pareciam características mais valorizadas pelas mulheres (os valores de d variavam entre -.67 e -.69), sendo que estas consideravam também como mais importante o carácter (e.g., inteligência, honestidade) e a inteligência do parceiro (os valores de d variavam entre -.30 e -.35). Convém ainda salientar que as maiores magnitudes do efeito encontradas em trabalhos desta natureza se referem às capacidades físicas de ambos os sexos. Linn e Hyde (1989, citado por Feingold, 1994), depois de analisarem seis capacidades físicas diferentes, concluíram pela existência de um d médio de 1.35 (os valores de d variavam entre .09 e 2.60), que traduzia a superioridade dos homens a este nível.

sexos ao nível das capacidades cognitivas. Esta é uma das conclusões princi- pais do Relatório Mundial sobre Educação para Todos (2003), publicado pela UNESCO, no qual pode depreender-se a tentativa de compreensão deste fe- nómeno, a partir da análise das práticas de socialização diferencial de cada um dos sexos nos variados países do mundo.

Numa tentativa de relacionar as escolhas vocacionais dos adolescentes com as supostas características de personalidade masculinas e femininas tra- duzidas pela dicotomia instrumentalidade/expressividade, Whitehead (1996) apresenta a seguinte sugestão: as ciências e a matemática relacionam-se com o mundo dos objectos, tendo como pontos de craveira científica a racionalida- de e a lógica; por seu turno, a literatura, a arte e a música encontram-se inti- mamente ligadas à exploração e à expressão das emoções humanas, apelan- do, por isso, a capacidades como a intuição e a empatia. Por estas razões, as primeiras áreas seriam mais procuradas, e mais facilmente apreendidas, pelo sexo masculino, e as segundas, pelo sexo feminino. O referido autor acrescen- ta ainda à lista de profissões provavelmente mais condizentes com as caracte- rísticas femininas de personalidade, as áreas da História, das Ciências Sociais e, até certo ponto, da Geografia, na medida em que esta também envolve o estudo das pessoas.

Partindo de uma outra vertente de análise, concordamos que as dicoto- mias implícitas nas crenças estereotipadas, relativas aos atributos e às compe- tências do homem e da mulher, parecem encontrar tradução naquilo a que Martino (1995, citado por Saavedra, 2001) chamou a bipolarização dos co- nhecimentos. No entender deste autor, os rapazes escolhem, e têm mais êxito, nas áreas das ciências (mais na física do que na biologia), da matemática e das tecnologias, e as raparigas, nos domínios das línguas e das humanida- des. Isto porque os atributos masculinos de frieza, de racionalidade, de impes- soalidade e de objectividade se encontram associados às primeiras áreas mencionadas, e as características femininas, ligadas à emotividade, à intuição e à subjectividade, são, supostamente, mais condizentes com os requisitos das segundas.

Na realidade, atendendo a informações continuamente tornadas públicas pela UNESCO (e.g., 1995; 2003), a repartição dos sexos pelos diferentes do- mínios do saber era ainda claramente evidente, no final do século XX, na ge- neralidade dos países, qualquer que fosse o respectivo grau de desenvolvi- mento social e económico. Dados portugueses recentes, sobre as preferências vocacionais dos adolescentes vão, efectivamente, neste sentido.

Ao nível do ensino secundário, "verifica-se uma maior orientação das ra- parigas para os cursos de carácter geral (56.8% do total de alunos matricula-

dos) do que para os cursos tecnológicos (43.6%); por outro lado, os cursos tecnológicos acusam um maior enviesamento das escolhas, por sexos, com uma larga predominância dos rapazes na área Científico-natural (82.9%); em contrapartida as raparigas apresentam uma participação bastante superior à média nas áreas Económico-social (60.8%) e das Humanidades (67.3%)" (CIDM, 2002, p. 17). É ainda de destacar que segundo os resultados dos Censos de 2001 (INE, 2002), a maior parte das mulheres com ensino superior completou cursos nas áreas da formação de professores e das ciências da educação (18.2%), das letras e das ciências religiosas (15.2%) e da saúde (14.8%). Curiosa é ainda, por exemplo, a representatividade de cada um dos sexos no domínio dos serviços sociais: por cada 100 mulheres existiam em Portugal, em 2001, apenas 7 homens.

Perante tais evidências, parece-nos ser provável que as raparigas conti- nuem a escolher menos as ciências ou as tecnologias, porque sabem que essas áreas são consideradas tipicamente masculinas (Marry, 2000), ao passo que também será plausível afirmar que a maioria dos rapazes não prefere uma carreira profissional no campo das línguas ou da prestação de cuidados pois tem consciência de que as raparigas são avaliadas como mais capazes nas aptidões por elas exigidas.

Diversos estudos descritos por Huston (1983) põem em evidência a relati- va precocidade da relação entre as crenças estereotipadas das crianças, quanto às capacidades cognitivas e aos interesses dos homens e das mulheres, e a forma como tendem a avaliar as suas competências para o desempenho de diversas profissões. Por exemplo, numa investigação longitudinal, com a duração de um ano, que envolveu crianças com idades compreendidas entre os 4 e os 6 anos de idade, o seu autor (Crandall, 1978, citado por Huston, 1983) verificou que, em todos os momentos de avaliação, era evidente a asso- ciação referida entre variáveis. Isto é, os estereótipos acerca dos desempenhos intelectuais, em função do sexo, mostraram-se sempre relacionados com as expectativas de sucesso dos rapazes e das raparigas, em diferentes áreas. Além disso, os autores constataram que a intensidade com que eram defendi- das tais crenças estereotipadas, na primeira fase de recolha de dados, se re- velou um preditor significativo da possibilidade de ocorrência de mudanças, ao nível das referidas expectativas de cada um dos sexos, durante o ano sub- sequente de investigação.

Na busca das razões para a relação directa entre a adopção dos este- reótipos de género e as opções educativas de ambos os sexos, várias têm si- do as justificações propostas. Referindo-se, em particular, aos rapazes, Mil- lard (1998, citada por Saavedra, 2001) defendeu que talvez eles se

envolvam menos em actividades de leitura, porque as consideram femininas, e porque a sociedade os encoraja a não se empenharem em nada que seja associado às mulheres, a menos que queiram correr o risco de ser ridiculari- zados. No caso das raparigas, parece-nos importante referir, por exemplo, que a sua fuga a certas áreas ditas masculinas, como a engenharia, ou ou- tras profissões das ciências exactas, que envolvam a matemática, não pare- ce ter que ver com um menor rendimento escolar nessa disciplina, ou nas

afins – até, porque elas superam, muitas vezes, os rapazes2(Baudelot e Es-

tablet, 1992; Frome e Eccles, 1998; Saavedra, 2001) – mas sim com um menor autoconceito académico nesse domínio (e.g., Huston, 1983; Marry, 2000).

Efectivamente, muitos estudos têm mostrado que os alunos encaram a matemática como um domínio masculino (e.g., Meece et al., 1982, Hyde et

al., 1990, citados por Correll, 2001). Além disso, em investigações feitas

nos Estados Unidos, a maioria dos alunos revelou considerar a matemática e as ciências como mais úteis para os rapazes, sendo áreas mais facilmente apreendidas por eles (Eccles, 1984). Assim, como afirma Correll (2001), "se uma rapariga acredita que os rapazes são melhores em matemática, ela te- rá tendência a perceber a competência para este domínio como incongruen- te com a identidade de género feminina, a duvidar das suas capacidades para lidar com números e a diminuir o seu interesse pelas carreiras, que exigem um nível elevado de proficiência nessa área" (p. 1695).

Em síntese, entendemos que à luz dos resultados das meta-análises atrás referidas não parece justificar-se, com base nas aptidões cognitivas, a conti- nuada selecção diferencial das áreas de estudo e até mesmo das profissões, que ainda hoje é notória nos rapazes e nas raparigas, como tivemos oportuni- dade de ilustrar com dados estatísticos recentes. Assim sendo, há que reflectir sobre o papel, a este nível, das várias forças que concorrem para a socializa- ção das crianças, muitas vezes orientada por estereótipos.

Com efeito, ainda que de modo sub-reptício, os diversos agentes educa- tivos tendem a comunicar mensagens aos rapazes e às raparigas que refor- çam a sua crença na existência real de capacidades cognitivas diferentes entre homens e mulheres. Não podemos negar que tal prática é susceptível de condicionar as suas escolhas em termos de áreas de estudo e de percur- sos profissionais (Vieira, 2002), continuando estas a ser restringidas por 2Num estudo recente, feito em Portugal, Saavedra (2001) chegou a esta conclusão, quanto às notas obtidas na disciplina

de Matemática, por alunos dos 7º e 9º ano de escolaridade de escolas do concelho de Vila Nova de Gaia. Ao comparar rapazes e raparigas de diferentes níveis socioeconómicos, a autora constatou que, quando existiam diferenças significativas entre os sexos, estas eram favoráveis às raparigas.

concepções estereotipadas de masculinidade e de feminilidade. Daqui resul- ta, em última instância, a manutenção da tradicional assimetria a nível da representatividade de cada um dos sexos nas várias esferas do mercado de trabalho.