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O problema dos rapazes ou o sucesso no feminino

Vindo à produção mais científica, muitos livros e artigos tentam analisar e comprender o fenómeno generalizado do fraco rendimento escolar, interes- sando-nos neste momento particularmente a diferenciação por género, quer a nível de faculdades ou competências cognitivas diversificadas, quer mais con- cretamente a nível da realização escolar. Os resultados obtidos em muitos tra-

balhos empíricos, confirma a percepção que se tem da realidade, ouvindo muitos educadores e professores de diversas instituições escolares, que o insu- cesso é geral, aumentando com a idade e atingindo particularmente os rapa- zes. Basta olhar para as classificações no final do ano escolar, sendo os me- lhores alunos quase sempre do sexo feminino. Olhando também para o chamado “quadro de honra”, onde ele existe (e pode ser discutível) são nova- mente as raparigas a ocuparem quase todos os lugares. De facto, diversos es- tudos mostram que elas obtêm mais prémios do que os rapazes, mas podem intrometer-se outras variáveis, como o processo de ensino e de avaliação (Ri- chardson, 2003).

Já há muito que a ciência, e em particular a Psicologia, estudava diferen- cialmente os dois géneros, precisamente na psicologia diferencial (diferenças cognitivas, afectivas, motivacionais, comportamentais), mas também na psico- logia do desenvolvimento, na psicologia da personalidade, na psicologia so- cial, na psicologia da educação. Muitos estudos analisam estatisticamente os resultados por género quanto a diversas variáveis cognitivas e quanto à reali- zação escolar. Aliás, esta variável independente ou interveniente e moderado- ra é, juntamente com a idade, quase sempre mantida sob controlo.

Estudos diferenciais são também feitos a respeito de outros aspectos psi- cológicos, como é o caso das expectativas de realização automática ou auto- cumpridas do professor na sala de aulas, ou o chamado “efeito Pigmalião”, estudado particularmente por Rosenthal e Jacobson (1968) - não sem grande polémica, dando origem a muitos estudos posteriores - que notaram diferen- ças significativas nas três variáveis dependentes em causa: quociente de inteli- gência, rendimento escolar e comportamento na sala de aula. Quanto ao QI, os rapazes avantajaram-se na dimensão verbal e as raparigas no raciocínio, não sendo fácil explicar estes resultados; no rendimento escolar, as raparigas eram melhores na leitura; nos diversos aspectos do comportamento controla- dos, as diferenças por sexo foram irrelevantes. A variável que mais contribuía para as diferenças era a idade, tendo os alunos mais novos expectados obtido ganhos mais significativos (cf. Barros, 1992, 1999), Como em tantos outros estudos, muitas vezes estas diferenças são pouco significativas e inconsisten- tes, devendo sempre ter-se em conta simultaneamente a idade e outras variá- veis interagentes.

Mais directamente no que diz respeito à inteligência, livros clássicos como o de Maccoby e Jacklin (1974), analisando muitas investigações, concluíram que há diferenças por género designadamente na capacidade verbal, numéri- ca e espacial. Põe-se no entanto o problema se tais diferenças resultam efecti- vamente das aptidões cognitivas ou antes de influências sócio-pedagógicas.

Em particular na aptidão verbal (embora o termo possa ser abrangente e seja necessário considerar outras variáveis, notadamente a idade), em geral as ra- parigas levam vantagem, mas pouco significativa (Hyde e Linn, 1988).

Simpson (1999), usando crianças sobredotadas, seguindo o modelo de Renzulli que realça sobretudo nestas crianças uma alta inteligência, alta moti- vação para a tarefa e uma maior habilidade criativa, confirmou que a inteli- gência e a motivação são decisivas para o sucesso escolar dos sobredotados, mas não uma especial criatividade. Também não confirmou a influência do se- xo para o sucesso, sendo unicamente a masculinidade um preditor significati- vo do rendimento em matemática mas não na leitura, enquanto a feminilidade não era preditor significativo nem na matemática nem na leitura.

Num robusto artigo de síntese sobre a natureza da inteligência, Neisser et al. (1996), depois de analisarem os conceitos de inteligência conforme os diversos autores, os instrumentos ou testes de avaliação da mesma, a sua ori- gem genética e ambiental, estudam as diferenças conforme diversas variá- veis, em primeiro lugar por sexo. Em geral, nos testes de inteligência, contro- lando a variável género, não se verificam diferenças ou elas são diminutas e inconsistentes. Porém, nalgumas tarefas há diferenças significativas e consis- tentes. Assim, os homens realizam melhor tarefas visuais e espácio-tempo- rais. As mulheres avantajam-se em tarefas quantitativas, nos primeiros anos escolares, mas a partir da adolescência a situação inverte-se (Hyde, Fenne- ma e Lamon, 1990). Os homens também levam vantagem em testes de racio- cínio mecânico.

No que concerne a competências ou tarefas verbais, há diferenças subs- tanciais a favor das mulheres, como na fluência verbal. As jovens obtêm notas mais elevadas em testes de composição literária e na leitura. Efectivamente, há muitos mais rapazes do que raparigas com dislexia e outros problemas de lei- tura (Sutaria, 1985) e de gaguez, particularmente em crianças pré-escolariza- das (Yairi e Ambrose, 1992). Neisser et al. (1996) dão conta também de me- lhores performances das mulheres em algumas tarefas de memória, mas é necessário ter em conta os diversos tipos de memória. McGivern et al. (1998) concluíram igualmente que as mulheres possuem uma melhor memória de re- conhecimento visual, talvez devido a um processo inconsciente diversificado de captar os estímulos ambientais.

Há também autores que falam em “inteligência fluída”, não encontrando diferenças relevantes conforme o género (Colom e García-López, 2002).

Voltando às aptidões numéricas ou às matemáticas, são os rapazes que parecem levar vantagem, sobretudo a partir da adolescência ou da escola se- cundária. Sintetizando os estudos mais significativos feitos até então, Stage et

al. (1985) chegam à conclusão de que os rapazes da escola secundária têm um pouco mais de sucesso nos testes de raciocínio matemático do que as ra- parigas, mas igualdade nos testes de álgebra e nos de conhecimentos básicos de matemática. Concluem ainda que quando estão em causa algumas diferen- ças por sexo, elas tendem a aparecer mais cedo tratando-se de alunos mais dotados e talentosos. De qualquer modo, quanto à matemática, mas também quanto a outras competências, os factores culturais e escolares devem ser sem- pre considerados, sob pena de não entendermos, por exemplo, como é que as crianças do Japão ou de Taiwan têm melhores resultados do que os seus pares dos Estados Unidos.

Hyde, Fennema e Lamon (1990), numa meta-análise de cem estudos, constatam a tardia diferença a favor dos rapazes quanto à matemática (na in- fância praticamente não há diferenças), mas a sua magnitude tem vindo a de- clinar. Os autores concluem que as diferenças na ‘performance’ das matemáti- cas são pequenas. Todavia, deve interpretar-se o menor rendimento das raparigas, sobretudo na resolução de problemas ou de tarefas envolvendo uma complexidade cognitiva mais elevada, porque em tarefas de menor com- plexidade, como o cálculo, são elas a avantajar-se. Enfim, os autores con- cluem, através desta meta-análise, que tem pouco fundamento a conclusão a que chegaram Maccoby e Jacklin (1974, p. 352) de que “os rapazes excelem na competência matemática” ou a que chegou Halpern (1986, p. 57) que considera as diferenças a favor dos rapazes “robustas”. Na realidade, mesmo a diferença quanto à solução de problemas só emerge na escola secundária e pode ser devida a competências que os rapazes adquirem fora da aula de matemática, por exemplo, nas aulas de física e química mais frequentadas por eles. De qualquer modo, tal diferença é muito moderada.

Os rapazes manifestam ainda vantagens nas aptidões espaciais (Linn e Peterson, 1985). Outros estudos confirmaram esta tendência, bem como nou- tras aptidões, mas também que as diferenças são pouco relevantes ou até in- significantes (Feingold, 1988, 1994).

Este décalage por sexo, quanto às competências cognitivas e ao rendi- mento escolar, é de algum modo global, como vimos através de algumas notí- cias internacionais. Há investigações científicas considerando diversas etnias e interculturas que também o provam. O “problema dos rapazes”, isto é, o seu menor rendimento nos testes, desde há muito que é debatido nas mais diver- sas partes do mundo, mesmo nos países escandinavos (Stage, 1988).

Um estudo realizado na Índia com alunos da escola secundária, concluiu que as raparigas têm um sucesso escolar significativamente mais elevado do que os rapazes (Singh e Maharaja, 1986).

Gambell e Hunter (2000), analisando dados do Ministério da Educação do Canadá e Programas indicadores de sucesso nas escolas canadianas de origem inglesa concluem que as raparigas adolescentes (de 13 e 16 anos) têm muito maior sucesso no ler e escrever do que os rapazes da mesma idade, tentando os autores explicar o fenómeno com razões que podem ser discutí- veis.

Filardo (1996) comparou adolescentes americanos de origem africana com adolescentes brancos, concluindo que nestes há maior diferença entre os sexos numa tarefa cooperativa de resolução de problemas, tentando interpre- tar os resultados em termos de papéis sociais. Honora (2002), estudando par- ticularmente adolescentes americanos de origem africana concluiu que as ra- parigas com maior sucesso expressaram objectivos futuros e expectativas mais elevadas do que os rapazes também bem sucedidos, além de considerarem mais objectivos a longo prazo.

McCoy e Reynolds (1999), na sequência de outros trabalhos realizados pelo segundo autor, através de um estudo longitudinal analisando particular- mente os alunos repetentes, concluem que a variável sexo é um dos preditivos da retenção, havendo significativamente mais casos de repetência por parte dos rapazes.

De qualquer modo, estão muitas variáveis em jogo quanto à realização escolar de rapazes e raparigas. Não apenas as diversas competências cogni- tivas e as diversas disciplinas escolares, os programas e os professores, mas também a idade, o estatuto social, e outros factores que interagem e interfe- rem entre si. Daí não resultarem modelos univariados mas serem necessários estudos ou modelos multivariados, considerando várias variáveis em interac- ção e interdependência. Por exemplo, o facto de os rapazes apresentarem melhores resultados em matemática e nas ciências, pode acontecer apenas em determinadas idades ou em determinados estratos sociais, sendo sempre de considerar o impacto dos factores de socialização, mormente dos estilos edu- cativos parentais (Barros, 1994, 2002; Maccoby, 2000). Efectivamente, sabe- se que os pais, em conjunto, ou separadamente (a mãe ou o pai) se relacio- nam de forma diversificada com os filhos, conforme o sexo destes, levados muitas vezes por estereótipos sociais que são assumidos pelos filhos. Em todo o caso, em geral os estudos mostram que uma boa prática educativa, de bom teor afectivo e de aceitação, combinada com certa autonomia, propicia me- lhores resultados escolares (Barros, 1994, 2002).

Relacionado com a idiossincrasia de cada sexo, e ainda com outras va- riáveis, como os professores e a família, é importante considerar outrossim a importância da motivação, factor decisivo para o sucesso. Os estudos por se-

xo também neste aspecto não são conclusivos, se bem que os rapazes tendam a usar maior persistência do que as raparigas. Mas é necessário igualmente considerar outros factores. Muitos estudos, neste como noutros campos, já têm uma ou mais décadas, assistindo-se cada vez mais a grandes mudanças, no sentido da aproximação das raparigas aos rapazes. Digamos que, no passa- do, a respeito do sucesso escolar (e noutros sectores), dominou o sexo mascu- lino; recentemente assitiu-se a um ‘empate’ ou a uma espécie de moda escolar ‘unisexo’; no futuro (e já no presente) vislumbra-se um domínio do sexo femi- nino. Por exemplo, actualmente as mulheres invadiram a Universidade, sendo já mais do que os homens, o que não acontecia algumas décadas atrás. O mesmo se diga no mundo de trabalho.