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Concepções, género e desenvolvimento vocacional

Uma das primeiras questões com que nos deparamos ao tentar entender as questões associadas ao sexo e ao género na Psicologia Vocacional é a pró-

pria definição adoptada do conceito de género. Enquanto o termo sexo desig- na características sexuais biológicas do homem e da mulher, o conceito de gé- nero remete-nos para o conjunto de significados, crenças, atitudes e papéis de vida que as pessoas atribuem e associam ao homem e à mulher, e que estão na base do sentido atribuído, num dado momento e contexto, aos conceitos de feminilidade e de masculinidade (cf. Fassinger, 2000; Amâncio 1994, 1999; Nogueira, 2001ab).

Na Psicologia Vocacional, contudo, tal como acontece em outras áreas da Psicologia, os investigadores têm utilizado, por diversas vezes, os termos sexo e género, como sinónimos. Este facto tem impedido incorporar devida- mente, na Psicologia Vocacional, os contributos que os Estudos de Género têm trazido, nos últimos trinta anos, ao nosso conhecimento. Ora, no seio deste úl- timo domínio, tem-se estabelecido uma distinção cada vez mais precisa entre os dois conceitos- sexo e género- evoluindo-se, para além disso, de concep- ções feministas de tipo traço-e-factor, para uma perspectiva feminista sócio- construccionista, não essencialista, das questões de género (Harding, 1986, in Nogeira, 2001a).

Nesta nova perspectiva, de acordo com autores como Nogueira e Amân- cio (1996) e Nogueira (1997, 2001ab), o género deixa de ser concebido co- mo uma qualidade inata da pessoa, associada ao sexo, para passar a desig- nar um processo de construção relacional e social de significados associados ao ser mulher e homem. Isto é, um sistema de significados que se constrói e se organiza nas interacções entre pessoas e outras pessoas especiais, como os familiares, os professores e os amigos, ou mesmo, entre pessoas e especialis- tas de orientação escolar e profissional - e que pode influenciar o acesso aos recursos e o sucesso escolar e profissional de mulheres e homens. É este um posicionamento que questiona a natureza dos próprios processos de socializa- ção, em casa, na escola ou na comunidade, os quais, muitas vezes, estão na base das disparidades entre homens e mulheres na educação, no trabalho, na família e na comunidade. Tal como nos evidencia Nogueira (1999; 2001ab), na nova concepção, os factores que definem uma transacção particular como feminina ou masculina deixam de ser o sexo dos actores, para passar a ser os parâmetros situacionais nos quais determinado comportamento ocorre. Ou se- ja, neste modo de pensar o género, ninguém pode ser considerado muito, pouco, ou nada feminino ou masculino, em termos completos. Assim, em con- textos particulares, as pessoas podem agir ou fazer feminino e, noutros, possi- velmente, podem agir ou fazer masculino (Hare-Mustin e Marecek, 1990, in Nogueira, 2001a). Seria importante que estas novas concepções de género fossem tratadas de modo mais explícito pelos psicólogos vocacionais, quer na

investigação, quer sobretudo na intervenção, favorecendo a diversidade e uma maior integração entre a educação e o desenvolvimento vocacional, a cultura e o género.

Uma retrospectiva das teorias da Psicologia Vocacional, ao longo dos últi- mos 90 anos da existência deste domínio, permite constatar que há condições para se evoluir de uma concepção de essencialismo do género para uma po- sição mais sócio-construccionista, apesar de haver ainda muito a fazer neste sentido (cf. Swanson e Gore, 2000). Estamos a mover-nos de um foco nas di- ferenças e semelhanças entre homens e mulheres, para um outro, em que a análise dos efeitos socialmente determinados, as noções mais contextualizadas de género e os papéis de género, quer de homens, quer de mulheres, têm ga- nho maior relevância (Anselmi e Law, 1998). Em seguida, procuraremos de- monstrar uma tal evolução, analisando, em termos gerais, as principais pers- pectivas da carreira, e o modo como o género tem sido concebido e estudado em cada uma delas.

A Perspectiva Vocacional dos Traços

As primeiras teorias vocacionais acentuam a importância das caracterís- ticas e traços estáveis da personalidade e foram desenvolvidas para permitir prever o sucesso ou insucesso escolar e profissional dos jovens e adultos, ba- seados na procura de ambientes e situações que permitissem, à partida e du- rante bastante tempo, um encaixe, o mais perfeito possível, entre as caracte- rísticas estáveis da pessoa e as exigências, também estáveis, do ambiente. Nesta perspectiva, foi realizado um forte investimento na análise e na com- preensão de diferenças nas escolhas escolares e profissionais das pessoas, em função das suas características biológicas e disposicionais. Uma questão de investigação típica no seio destas teorias é tentar saber, por exemplo, se ho- mens e mulheres escolhem diferentes cursos e profissões.

A este propósito, está bem documentado na literatura vocacional que as necessidades, motivações, os objectivos e problemas ou preocupações de ra- parigas e rapazes podem ser diferentes (cf. Afonso e Taveira, 2002). No de- bate sobre estas diferenças persistem dois temas: o primeiro é o da subutiliza- ção das capacidades das mulheres que se traduz numa segregação nos empregos e em posições de mais baixo estatuto, salário, e oportunidade de avanço, quando aquelas são comparadas com os homens. O segundo tema é o elevado nível ou a sobrecarga de participação de uma grande parte das mulheres nos papéis familiares, e os problemas que daí advém para algumas, como aspirações de carreira comprometidas ou problemas de saúde. Ou seja,

apesar da extensão da participação da mulher na força do trabalho ser uma realidade e se assemelhar actualmente à dos homens, a natureza dessa parti- cipação contém ainda particularidades a que devemos atender enquanto pro- fissionais de orientação e educadores. Neste âmbito, por exemplo, regista-se ainda uma dificuldade elevada por parte das mulheres em aceder a carreiras desejáveis e em balancear responsabilidades de trabalho e de vida familiar e pessoal (Betz, 1994; Fitzgerald e Weitzman, 1992).

A Perspectiva Vocacional Desenvolvimentista

À medida que se foram produzindo profundas mudanças no mundo só- cio-profissional, surgem novas teorias vocacionais, de carácter desenvolvimen- tista, como a teoria de Super e de Linda Gottfredson, que criticando o carácter demasiado estático das teorias de traço, assumem uma perspectiva diferente no modo de ver o problema da orientação: encara-se a orientação vocacional como uma série de acontecimentos ao longo da vida, definidos por expectati- vas sociais dos mais velhos e pela capacidade, dos mais novos, em lidar com tais exigências, em cada momento do curso de vida e não apenas no final da adolescência. Definem-se estádios de um processo de desenvolvimento voca- cional e, para cada um, tarefas distintas. Assim, poderia esperar-se que a maioria dos homens e, depois com a sua entrada na escola e no mercado de trabalho, que a maioria das mulheres, vivesse um período de Crescimento ou Fantasia, do nascimento aos 11 anos; um período de Exploração da carreira, dos 12 aos 20 anos, aproximadamente; o Estabelecimento numa profissão e emprego, dos 20 até aos anos 35 da vida adulta; seguindo – se a Manuten- ção e o Desinvestimento ou Reforma da vida profissional, nos anos mais tar- dios da vida adulta (Super, Savickas e Super, 1996).

É a compreensão das mudanças no processo de orientação vocacional de um mesmo individuo que mais interessa agora aos investigadores. Como é que um mesmo homem ou uma mesma mulher vai mudando de objectivos e vai aprendendo novos comportamentos e atitudes para lidar com as várias questões e problemas da sua vida vocacional e pessoal, torna-se o foco princi- pal de estudo. E, também, que factores ou condições podem facilitar ou inibir este processo de desenvolvimento? Nesta perspectiva, as questões associadas ao género constituem-se como um factor determinante do desenvolvimento vo- cacional e, ainda que pouco aprofundada, numa visão mais sócio-construc- cionista do conceito.

Nesta linha, os trabalhos de autoras como Linda Gottfredson são um con- tributo interessante porque sugerem que o desenvolvimento vocacional é um

processo que depende do desenvolvimento do próprio auto-conceito e também do tipo de representações, imagens e conhecimento que progressivamente as crianças, os jovens e os adultos vão formando sobre o mundo escolar e profis- sional. As questões de género são muito importantes nestes processos. Segun- do Gottfredson (1981, 1996), a orientação sexual das actividades, ou seja, aquilo que se considera ser adequado para mulheres e homens, em termos de actividades ocupacionais e profissionais, são ideias que se criam desde muito cedo, pelos três anos, e que determinam as preferências da criança e as suas representações sobre o modo como o trabalho está organizado em casa, na escola e na comunidade. Uma vez que o papel mais manifesto dos adultos é o laboral, a criança tem oportunidades, através da imitação de comportamentos e atitudes, nas suas brincadeiras, de assumir as identidades que desejar e pôr à prova diferentes situações.

Com efeito, recentemente, num estudo realizado com 98 crianças de am- bos os sexos, dos 3-6 anos de idade, a frequentar estabelecimentos de ensino pré-escolar da cidade de Braga, Araújo (2000) demonstrou que as crianças estudadas evidenciavam preferências por actividades no jardim-de-infância em função da orientação sexual percebida nas actividades que, em muitos ca- sos, era estereotipada. Este facto pode ter efeitos negativos na exploração efectuada pela criança ao longo da infância e da adolescência, podendo res- tringir o leque de actividades e ou experiências realizadas pela mesma. Estan- do estas experiências e actividades na base da formação e do desenvolvimen- to dos seus interesses e capacidades, é importante que em contextos educativos como a escola se procure combater o efeito de tais estereótipos, para melhor promover o desenvolvimento vocacional das nossas crianças (Ta- veira, Silva, Rodríguez, e Maia, 1998; Taveira e Rodríguez, 2003).

Assim, há que assinalar, que como consequência deste tipo de modelos, passa a ser importante desenvolver nas escolas, programas de carácter desen- volvimentista que, desde cedo, ajudem rapazes e raparigas, gradualmente, a lidar com informação e actividades apropriadas relacionadas com o self, com o mundo do trabalho não remunerado e remunerado e com a natureza dos diversos papéis de vida (Taveira, 2002). Exemplos de questões que as crian- ças poderão aprender a responder, desde cedo, relacionadas com o self, o mundo do trabalho e os papéis de vida, são: O que mais gosto de fazer na escola e fora dela? O que faz o Sr. X, por exemplo, aquele senhor que traba- lha na mercearia perto de minha casa? O que pensa o Sr. X, quando faz aquilo? O que sente o Sr. X, quando o faz? Por que é que as pessoas fazem o que fazem? Porque é que é sempre o Sr. X que carrega com os sacos na Mer- cearia e é sempre a Sra. W que arranja a disposição dos frutos e dos legu-

mes? E eu, gosto mais, por exemplo, de fazer desenhos ou de brincar na casi- nha e porquê? Trata-se de actividades destinadas a oferecer oportunidades de aprendizagem sobre si próprio/a e sobre o meio circundante, apoiando a construção progressiva de um auto-conceito vocacional, onde os papeis asso- ciados ao género assumem um papel importante.

Face ainda às novas mudanças na natureza do mundo escolar e profissio- nal, encara-se mais recentemente, dentro desta perspectiva, a possibilidade dos indivíduos, homens e mulheres, a propósito de uma mudança de carreira, poderem viver também em momentos específicos do maxi-ciclo de Carreira já referido, um ou vários mini-ciclos (também de crescimento-exploração-estabe- lecimento-manutenção e reforma) (cf. Super, Savickas, e Super, 1996).

A investigação deste modelo com mulheres evidenciou, no entanto, que para certos homens e para muitas mulheres, a trajectória de desenvolvimento vocacional não seguia um tal padrão, tendo sido possível identificar, no caso das mulheres, várias outras formas ou padrões de gestão e desenvolvimento da carreira, tendo em conta os papéis familiares, escolares e profissionais ao longo da sua vida e também factores de ordem contextual e cultural, como a classe social e a etnia (Fitzgerald, Fassinger, e Betz, 1995). Ou seja, começa a compreender-se a necessidade de estudar não só as diferenças entre homens e mulheres no desenvolvimento vocacional, mas também as particularidades de certos grupos de mulheres e homens, e de aprofundar o papel dos contex- tos relacionais, sociais e culturais nestes processos.

A Perspectiva Vocacional Desenvolvimentista-Contextualista e a Teoria da Acção

São as abordagens vocacionais mais recentes, a teoria desenvolvimentis- tas-contextualista e a teoria da acção, que melhor estão a permitir responder a novos focos científicos e que mais condições criam para se adoptar, na Psi- cologia Vocacional, uma concepção sócio-construccionista do género. Na abordagem desenvolvimentista-contextualista da carreira, a orientação e o de- senvolvimento vocacional são definidos como um processo de construção que se efectua a partir de um processo contínuo de interacção dinâmica entre a pessoa, em desenvolvimento, e os múltiplos contextos onde a pessoa vive, tam- bém eles encarados como sistemas em desenvolvimento e em relação e inter- dependência uns com os outros, desde os mais próximos - como a família, a escola, os ambientes de trabalho e a comunidade, até aos mais distantes - co- mo o regime e as política sociais, educativas e económicas do país onde se vi- ve (Vondracek, Lerner, e Schulenberg, 1983).

Neste âmbito, a teoria sócio-cognitiva da carreira, baseada nos conceitos de expectativas de auto-eficácia, de expectativas de resultados e de objectivos pessoais, explicita muito bem a influência da escola e da família em diversos aspectos do desenvolvimento vocacional das crianças e dos jovens (Lent, Brown, e Hackett, 1994). É seguramente uma das posições teóricas que me- lhor poderá ajudar a compreender as causas e a natureza de possíveis dispa- ridades nos padrões de escolha, acesso e sucesso no ensino em função do gé- nero das pessoas. Trata-se de uma posição que permite traçar as relações complexas que existem entre as pessoas e os seus ambientes escolares e pro- fissionais, entre os factores pessoais e interpessoais e, entre as influências im- postas internamente e externamente às pessoas, no que respeita a sua vida de estudante e trabalhador (Lent, Brown, e Hackett, 1994). De acordo com a perspectiva sócio-cognitiva da carreira, os interesses relacionam-se com as es- colhas que as pessoas realizam e com as acções que as mesmas desenvolvem para concretizar as suas escolhas no terreno. Assim, mantendo-se o restante igual, as pessoas escolhem, ou desenvolvem objectivos de escolha por áreas ou ocupações em que estão interessadas. Mas as escolhas podem ser afecta- das também por influências do meio e de personalidade. Por exemplo, as pes- soas tendem a por de lado um pouco os seus interesses se perceberem que o ambiente não as apoia ou se percepcionam barreiras significativas à entrada e ao sucesso nas carreiras que mais lhes interessam. Quando as pessoas per- cebem a necessidade de comprometer os seus interesses devido a limitação de oportunidades, devido a barreiras intransponíveis, ou a um ambiente muito pouco apoiante, farão as suas escolhas na base da acessibilidade a certos empregos, na base das suas crenças de auto-eficácia e, na base das suas ex- pectativas de resultados. Ou seja, mulheres e homens, ao implementarem os seus interesses académicos, podem escolher trajectórias vocacionais menos in- teressantes mas que estão ao seu dispor, que consideram que poderiam pro- porcionar resultados adequados e que acreditam poder realizar com sucesso. Sabemos que as experiências de sucesso promovem o desenvolvimento de ca- pacidades e, como consequência, a auto-eficácia e as expectativas de resulta- dos, criando-se, neste caso, um ciclo dinâmico de funcionamento. Pais e pro- fessores constituem fontes de informação relevantes nos processos de construção de significados em redor dos papéis atribuídos ao sexo, na mode- lação, avaliação, desempenho e mérito, contribuindo para o desenvolvimento de interesses e de valores vocacionais. O trabalho de consultadoria vocacio- nal junto dos pais e professores pode ser uma condição favorável à aborda- gem adequada das questões de género nas práticas educativas das nossas crianças e jovens.

Por sua vez, na linha mais construtivista, com a teoria da acção intencio- nal, marca-se a ideia de que o pensamento e a acção das pessoas podem ser melhor compreendidas na situação em que ela se desenvolve. A acção é ex- plicada em termos dos objectivos e significados que lhe estão ligados. O com- portamento é encarado como dirigido para objectivos e regulado por forças sociais e cognitivas. Os objectivos, planos, estratégias, decisões, avaliações, a escolha, o sucesso e o insucesso, devem ser encarados como fazendo parte de sistemas compreensivos, que incluem projectos de médio e longo prazo (Soa- res, 1998). A nível individual, as acções são compreendidas como sendo leva- das a cabo por agentes, ou seja, pessoas capazes também elas próprias de moldar os seus ambientes e os seus comportamentos, prosseguindo projectos, estabelecendo objectivos, realizando planos, e monitorizando o seu próprio comportamento, pensamentos e emoções. O significado social tem aqui um papel especial na acção dirigida para objectivos. São a fábrica da interacção social e tem consequências sociais. A acção conjunta de duas pessoas ou de grupo, tem um valor especial. A carreira de uma pessoa é encarada como um processo, quer de agentes e acções individuais, quer de grupos sociais. Assim, as características do contexto das relações família-alunos, professor-aluno e profissional de orientação-aluno, passam a ser objecto de maior atenção e podem ser modificadas para se tornarem mais sensíveis às questões de géne- ro, facilitando o desenvolvimento vocacional (Young, Friesen, e Pearson, 1988).

Estes diferentes paradigmas têm influenciado de modo distinto as linhas de investigação sobre o papel do género na orientação das pessoas. No en- tanto, muita da investigação realizada reflecte ainda uma posição essencialis- ta no modo de pensar sobre o género na educação e na orientação vocacio- nal. Assim, apesar da evolução referida, muito há ainda a fazer neste campo, quer no que respeita a teoria, quer no que respeita a investigação.