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Poder-se-á falar em diferenciação cognitiva por género?

CAPACIDADES COGNITIVAS E PERCURSOS EDUCATIVOS DOS RAPAZES E DAS RAPARIGAS

1. Poder-se-á falar em diferenciação cognitiva por género?

A crença de que existem diferenças entre homens e mulheres ao nível das aptidões cognitivas não tem uma história recente. Ora inspirados por razões ligadas à relevância da alma (Platão), ora alicerçados em argumentos relati- vos às dissemelhanças corpóreas (Aristóteles), já na era pré-cristã alguns filó- sofos tentaram aduzir explicações para a suposta desigualdade das caracte-

rísticas intelectuais de cada um dos sexos. Quase como se tratasse de uma de- terminação divina, acreditava-se que a natureza do homem o levava a ser, por exemplo, mais lógico, mais racional e mais apto ao nível das competên- cias práticas. A mulher, por seu turno, por se deixar dominar mais pelas emo- ções do que pela razão (Tuana, 1993), era caracterizada como menos capaz de aceder a níveis de raciocínios mais complexos e como menos objectiva, possuindo, no entanto, melhor memória de retenção. Tais ideias influenciaram não só alguns pedagogos da modernidade, como foi o caso de Rousseau (1712-1778), mas também os primeiros esforços de estudo científico das dife- renças entre os sexos no desempenho de uma variedade de tarefas (Deaux e LaFrance, 1998; Spence, 1999).

O primeiro trabalho conhecido de revisão de estudos empíricos sobre as diferenças cognitivas entre rapazes e raparigas foi da autoria de Maccoby e Jacklin (1974). Depois de sintetizarem, através do método narrativo, os resul- tados de um conjunto amplo de investigações, estas autoras concluíram que existiam três diferenças sexuais bem estabelecidas no domínio cognitivo: as raparigas tinham uma aptidão verbal superior à dos rapazes, e estes pos- suíam melhores competências ao nível das aptidões vísuo-espacial e númerica. Outros trabalhos se seguiram, reforçando tais deduções, tendo mesmo sido asseverado que: "a existência de diferenças de género na aptidão verbal tem sido um dos 'factos' provados e verdadeiros da Psicologia, durante décadas" (Hyde e Linn, 1988, p. 53); ou que "a conclusão de que os homens superam as mulheres nos testes de aptidão matemática é robusta" (Halpern, 1986, p. 57, citado por Hyde et al., 1990).

A publicação destes resultados, que pretendiam sintetizar o estado do co- nhecimento científico no domínio até ao início da década de 70 do século XX, não deixou indiferente a opinião pública. Sprinthall e Collins (1994), ao men- cionarem este facto, referem, por exemplo, que o seu impacto foi impressio- nante, junto dos pais, na medida em que, por acreditarem que as suas filhas tinham uma aptidão numérica mais fraca do que os seus filhos, as desmotiva- vam a seguir certas áreas académicas, como por exemplo, as das ciências exactas.

Atendendo a estas repercussões sociais, parece-nos, então, legítima a questão: Seriam estas diferenças consideradas "bem-estabelecidas" extensas, isto é, teriam uma significância prática digna de relevância?

A indagação desta extensão das diferenças sexuais pode ser aferida por diversos indicadores estatísticos, que pretendem medir a chamada magnitude

do efeito. Os mais conhecidos são o d e o w2. O primeiro traduz, em unida-

rapazes e o das raparigas. Segundo Cohen (1977, citado por Newton e Ru- destam, 1999), é de fraca magnitude um d=.20, de magnitude moderada um

d=.50 e de elevada magnitude um d=.80. O outro indicador estatístico é o w2

(Hayes, 1963, citado por Hyde, 1981), equivalente ao r2(coeficiente de deter-

minação), que o substitui quando estão em causa correlações. Através de w2

somos capazes de averiguar a proporção (e a percentagem) de variância dos escores que pode ser explicada pelas diferenças sexuais (ficando a restante parte da variância a dever-se a variações intra-sexuais e ao erro da medida). Em virtude de o método narrativo de revisão das publicações científicas, que foi utilizado por Maccoby e Jacklin (1974), ser considerado relativamente subjectivo e mais passível, por isso, de interpretações tendenciosas (Morales, 1993), foram desenvolvidos, posteriormente (durante a década de 80 do sé- culo XX), procedimentos quantitativos de análise de estudos primários, no âm- bito dos quais se recorre a indicadores estatísticos para a apresentação das conclusões. Estes trabalhos, habitualmente designados por meta-análises, pas- saram a assumir uma importância fundamental para os investigadores, quan- do se trata de ajuizar a consistência dos resultados de diferentes estudos desti- nados ao teste de uma mesma hipótese (e.g., os rapazes são melhores do que as raparigas ao nível da resolução de problemas). De alguns desses traba- lhos, dedicados às capacidades cognitivas de ambos os sexos damos conta, a seguir,

No sentido de testar as conclusões de Maccoby e Jacklin (1974), Hyde (1981) conduziu uma meta-análise com os estudos revistos por aquelas auto- ras, tendo trazido a lume dados que levantaram dúvidas sobre a existência das referidas diferenças sexuais bem estabelecidas, nos domínios citados. Com efeito, os valores das magnitudes do efeito encontradas não foram muito elevados (d=.43, para a aptidão numérica; d=.25, para a aptidão verbal), sendo que as diferenças sexuais pareciam explicar não mais de 1% a 5% da variância dos resultados da população. A sobreposição das curvas normais, relativas aos dados de cada um dos sexos, no que diz respeito à aptidão ver- bal, que foram obtidos na sequência do trabalho de Hyde (1981), encontra-se reproduzida na Figura 1.

Figura 1. Duas distribuições normais com uma diferença entre médias de 0.25 D.P., ou seja,

com um d=.25. Esta era aproximadamente a magnitude das diferenças sexuais a nível da aptidão verbal (Retirado de Hyde, 1981).

Outras revisões subsequentes continuavam a apontar para a fraca rele- vância da significância prática de algumas pequenas diferenças entre rapazes e raparigas, a nível cognitivo. No que concerne à aptidão verbal, Hyde e Linn (1988), depois de analisarem um conjunto de 165 estudos primários, encer- ram o seu trabalho com a seguinte conclusão geral: "A nossa meta-análise oferece evidência robusta de que a magnitude das diferenças de género, ao nível da aptidão verbal, é, hoje, de tal maneira pequena, que pode, efectiva- mente, ser considerada nula" (p. 64). Embora tenha sido detectada uma pe- quena diferença, a favor dos homens, na produção de palavras (d=.33), nas outras categorias verbais, como o vocabulário, a compreensão da leitura e as analogias não foram descobertas magnitudes do efeito dignas de relevância. No que à aptidão matemática diz respeito, Hyde, Fennema e Lamon (1990), numa revisão de 100 estudos, verificaram que o valor médio da mag- nitude do efeito era ainda mais baixo (d=.15) do que aquele que foi desco- berto por Hyde (1981). Concluíram, por conseguinte, que as diferenças entre os sexos neste domínio eram de fraca expressão. Na Figura 2 encontra-se es- quematizada a sobreposição das distribuições normais, uma respeitante aos homens e outra às mulheres, relativas aos desempenhos em matemática.

Figura 2. Duas distribuições normais com uma diferença entre médias de 0.15 D.P., ou seja,

com um d=.15. Esta era aproximadamente a magnitude das diferenças sexuais a nível dos desempenhos em matemática (Retirado de Hyde, Fennema e Lamon, 1990).

Uma análise mais específica dos resultados, por cinco grupos etários dis- tintos, pôs em destaque um aspecto particular, que lhes pareceu digno de refe- rência. A partir do ensino secundário, tornava-se patente a superioridade masculina, ao nível da resolução de problemas (d=.29, para o ensino secun- dário; d=.32, para o ensino superior), tanto nos adolescentes como nos jovens adultos (Hyde et al., 1990, p. 139). Não tendo sido detectadas tais diferen- ças, nas duas faixas etárias anteriores, ou seja, entre os 5 e os 10 anos e en- tre os 11 e os 14 anos, parece-nos plausível a atribuição da assimetria dos desempenhos, pelo menos em parte, ao processo de socialização (e.g., No- well e Hedges, 1998; Furnham e Gasson, 1998), que tende a ser diferencial para ambos os sexos.

Embora a tendência destes resultados, no que concerne às aptidões verbal e numérica, aponte para a pouca significância prática das diferenças encon- tradas entre os sexos, em virtude das reduzidas magnitudes do efeito, incorre- ríamos num certo viés se omitíssemos as conclusões de uma meta-análise so- bre as diferenças sexuais na aptidão espacial, que foi conduzida, sensivelmente a meio da década de 80 do século XX, por Linn e Petersen (1985). Com efeito, estas autoras reuniram uma amostra de 172 estudos pu- blicados entre 1974 e 1982, em particular, sobre três tipos distintos de apti- dão espacial: a percepção espacial, a rotação mental e a visualização espa- cial. No decurso do seu trabalho concluíram pela existência de uma diferença sexual robusta, a favor dos indivíduos do sexo masculino, ao nível da rotação mental: d=.73 (Linn e Peterson, 1985, p. 1486). No que concerne aos outros tipos de aptidão espacial considerados, foi possível apurar uma magnitude do efeito apenas média para a percepção espacial (d=.44) e de uma magnitude do efeito reduzida para a visualização espacial (d=.13). Em ambos os casos, os homens tendiam a apresentar, efectivamente, desempenhos superiores aos das mulheres (Linn e Peterson, 1985). É curioso acentuar que estas diferenças entre o sexos, em especial, no que concerne à rotação mental revelaram uma tendência para se manifestarem antes da adolescência, ainda que algumas medidas deste tipo de aptidão sejam contra-indicadas para idades inferiores a 13 anos.

Neste âmbito, é ainda de referir uma meta-análise levada a efeito por Feingold (1988) sobre as diferenças entre rapazes e raparigas, alunos do en- sino secundário, nas suas respostas aos itens do Teste de Aptidões Diferenciais (DAT; Benett, Seashore e Wesman, 1982), que operacionalizavam oito apti- dões diferentes. Na sequência deste trabalho de análise descobriu-se que os rapazes se mostravam melhores do que as raparigas ao nível do raciocínio mecânico (d=.89) e da visualização espacial (d=.22), ao passo que as rapari-

gas obtinham resultados superiores aos deles ao nível da ortografia (d=-.51), do uso da linguagem (d=-.40) e da velocidade perceptiva (d=-.32). Curiosa- mente, nesta investigação não foram encontradas diferenças entre os sexos no que concerne ao raciocínio verbal, ao raciocínio figurativo e à aritmética (os valores de d variavam entre -.01 e .02). Outros trabalhos mostraram, ainda, que as raparigas são melhores do que os rapazes a descodificar material não verbal (e.g., d=-.42; Hall, 1984, citado por Feingold, 1994).

Perante esta relativa inconsistência dos resultados, somos compelida a concordar com Feingold (1994), quando este autor, num extenso trabalho so- bre as diferenças entre os sexos ao nível da personalidade, concluiu que, em

comparação com as outras áreas do desenvolvimento1, os dados recentes so-

bre as diferenças entre os rapazes e as raparigas no domínio cognitivo nos le- vam a constatar que estas são muito mais pequenas do que aquelas documen- tadas no passado, pelo menos para os adolescentes (e.g., Feingold, 1988, 1994). É ainda curioso verificar que as diferenças entre os sexos ao nível cog- nitivo têm exibido variações acentuadas de cultura para cultura.

Ora, atendendo ao cenário exposto anteriormente, poderemos perguntar qual a relação entre as aptidões – ainda que as diferenças entre os sexos se- jam de fraca magnitude – dos rapazes e das raparigas e os seus desempe- nhos escolares em domínios diversos, ou as suas preferências vocacionais? A tentativa de resposta a esta questão constitui o objecto de análise da sessão seguinte deste artigo.