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ARTES DE FAZER PELA ARTE DE DIZER BENDITOS!

No documento CONTRIBUIÇÕ S ARA A P T CA DO NT (páginas 175-179)

outras possibilidades de viver e de pensar o mundo

ARTES DE FAZER PELA ARTE DE DIZER BENDITOS!

Muitos compositores têm mantido certo tipo de inconformismo, subversão mesmo de certas ordens. Uma das táticas de insubordinação está nas maneiras de usar as misérias transformando-as em outras coisas. Das misérias existenciais mais profundas às misérias cotidianas assumidas como as mais banais, o samba vai dando mostras de como sua gente vai transitando entre uma e outra, sem pecado, muitas vezes, com ferimentos leves, como diria Marcos Diniz. Da poesia à violência, ao desagravo, ao prazer. Do flagelo, da falta de sombra no chão que é como Catoni/Sergio Fonseca falam de um sentimento de inexistência tão presente em certas circunstâncias , seja pela saudade de um amor, de uma vida que não se teve. Histórias que cantam sobre as dores que são atribuídas, indiscriminadamente, aos amores, às relações afetivas, às traições, aos abandonos, às gafes, às malandragens e às coisas, supostamente, mais banais do cotidiano. E que cantam, também, sobre o ridículo, o riso que a miséria, às vezes, chega a causar. E esse riso não significa traço de imbecilidade, de afastamento, de desvio de uma consciência sobre tais misérias. São maneiras de desmoralizar os infortúnios, a dor, desmoralizando alguns dos seus efeitos. Aliás, essa tem sido a tarefa do Trio Calafrio: transformar miséria em festa, com muito humor, sem que essa faceta vire identidade dos três compositores que têm um amplo raio de ação.

Gostaria de contar histórias de um dos membros do Trio Calafrio: Barbeirinho do Jacarezinho. Ele nos contou uma história à qual demos o título de “Milagre dos pães”. Vamos a ela:

Um dia, um sujeito, que morava em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, me contou a seguinte história: estava desempregado e sem dinheiro, consequentemente, sua mulher e duas filhas, sofriam com a difícil situação. Pensou em ir ao bairro onde morara, onde havia se criado o Jacarezinho. Lá sempre havia uma viração: de servente de pedreiro, um portão pra pintar, enfim, poderia ganhar algum trocado. Mas, tinha apenas o dinheiro da passagem. Quando ia saindo, sua mulher pergunta se ele não deixaria dinheiro para comprar pão para as crianças. Ele coça a cabeça, olha para as crianças e, compadecido, resolve ir até a padaria, com o único dinheiro que tinha. No caminho, pensava como ia fazer para chegar ao seu destino: “pular o muro do trem, dar calote no ônibus”, alguma coisa ele faria. Chegou na padaria e deu-se conta de que havia uma confusão na fila do caixa. Aproximou-se e viu que uma senhora mostrava ao gerente da padaria, um pão, aberto, com alguns fios de cabelo dentro. Ao ver a cena, nosso personagem parou, coçou a cabeça, sorriu e pensou: “ganhei meu dia!” Voltou pra casa feliz e fez a música “Cabelo no pão careca”, gravada por Zeca Pagodinho e que adiou as preocupações com o pão de cada dia de sua família, por um bom tempo. O samba conta a história da seguinte forma:

Bolo na padaria, Maria pulava igual perereca Pão, doces e broas viram peteca

pegaram o padeiro e quebraram a munheca (por quê?) Porque encontraram cabelo no pão careca Porque encontraram cabelo no pão careca

Sonho virou pesadelo brigadeiro perdeu a patente

confeitaram o confeiteiro

com a massa de pão para cachorro-quente Deixaram o gerente, um tal de Clemente

Sem uns cinco dentes e só de cueca Porque encontraram cabelo no pão careca

Porque encontraram cabelo no pão.

Barbeirinho é um desses compositores de samba de um humor perspicaz que, juntamente com seus parceiros, vai fazendo crônica, vai contando histórias da vida privada de personagens anônimos, noturnos e que só aparecem nos noticiários das tragédias. Ou aparece na tevê para responder uma pergunta feita para atender a uma “informação/opinião” que, de antemão, os próprios perguntadores querem difundir. É o popular que é procurado muito mais pelo efeito que pode produzir do que pelo que pode revelar, contar de “útil”. São os que dão mais dramaticidade às edições das catástrofes, às tragédias, quando estas ganham outras dimensões nas mídias. Os moradores das muitas periferias, das favelas, trabalhadores braçais, empregadas domésticas, mulheres valentes. Personagens que podem dar respostas de vítimas quando lhes convêm, escondendo o leite, desviando-se, fabricando a tal “margem de erro” das pesquisas e, em algumas delas, confundindo-se com aquilo que se supõe acerto. São esses os personagens desse Trio. Esses são eles.

O Luiz Grande, do Trio Calafrio, dos compositores gravados pelo 'Puxando Conversa', é de uma linhagem especial. Compõe seus sambas dando-lhes uma marca de muita singularidade. Compõe como quem faz um lançamento (como um brilhante jogador de bola) para ele mesmo ou para outros com a mesma habilidade Zeca Pagodinho, Elza Soares, João Nogueira, alguns que já receberam um destes lançamentos e deitaram e rolaram. Lança de “três dedos” dando curva na linguagem. Recebe, domina no peito e canta utilizando-se de uma rara divisão dos ritmos, dos tempos. Canta como quem dribla. Espera a chegada do zagueiro dando-lhe a esperança de que ele tem chances de lhe roubar a bola. Mas depois, num golpe, lhe desconcerta. Com um toque de ponta de chuteira toca por um lado, sai faceiro, por outro. Olha pra trás e vê a cara que mescla raiva e tristeza daquele zagueiro que tentava marcá-lo dentro de um mesmo andamento. Sabedoria daqueles que andam pela noite e aí têm que inventar maneiras de pisar, de respeitar caminhos, de pedir licença ao passar pelas encruzilhadas. Maneiras de saber chegar e de saber sair. Assim, Luiz Grande vai fazendo das suas. No dizer, mostra como fez.

O terceiro personagem do “trio” e que “fecha curto” é outro “fio desencapado”: Marcos Diniz, que, no dizer de Barbeirinho, é “sangue bom para transfusão universal”, pois é filho do Monarco da Portela. Essa é uma referência que ele faz, não porque

necessite, mas por orgulho. Dono de uma voz poderosa, Marquinhos é uma pessoa emblemática do samba. Talentoso conhecedor das coisas da noite, das zonas de sombra e de luz, do asfalto, das vielas, becos e favelas do Rio. Bom versador numa roda de partido. Respeitador das autoridades, dos “mais velhos”. Autoridade, aqui, não significa um poder adquirido, desde fora, por um cargo. Autoridade no samba é aquilo que vai sendo autorizado, aos poucos, sem cerimônia de posse, com o tempo, nas relações. Autoridade refere-se mais a uma capacidade de cuidar daquilo que é de todos o próprio samba. Autoridade que, mesmo incidindo sobre uma disputa, sobre outros, não é um poder coercitivo, não se vale da força, espera-se a sabedoria. A autoridade, neste sentido, é como uma capacidade de potencializar o samba e os sambistas. Sendo assim, não existe briga por poder neste tipo de autoridade, o que não significa que não existam brigas de poder no samba, que não existam disputas que terminam em morte.

Marcos Diniz é um dos mais importantes nós da rede do 'Puxando Conversa'. Por causa dele chegamos ao Sarabanda e descobrimos que este é irmão do Nego Fugão, um personagem de São João de Meriti que se ligava à nossa produção por outros caminhos; chegamos ao Tio Hélio e ao próprio Monarco. Um elegante elo de ligação entre o samba mais “tradicional” e suas renovações, sendo capaz de cantar as dores de amor como os mais antigos e de inventar histórias que insinuam outras situações cotidianas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense,

1994.

BHABHA, Homi (1998). O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1994

GILROY, Paul. O Atlântico negro Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.

34; Rio de Janeiro: UCAM-Centro de Estudos Afro-Asiáticos,2001.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

RICOEUR, P. La lectura del tiempo pasado: memória y olvido. Madrid: Ediciones de

la Universidad Autônoma de Madrid, 1999.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

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