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O SAMBA COMO CIRCUITO COMUNICATIVO

No documento CONTRIBUIÇÕ S ARA A P T CA DO NT (páginas 171-175)

outras possibilidades de viver e de pensar o mundo

O SAMBA COMO CIRCUITO COMUNICATIVO

Contam que no tráfico de escravos da África para “novo mundo”, antes de embarcarem, os prisioneiros deveriam dar sete voltas em torno de uma árvore. Essa árvore era chamada de árvore do esquecimento. Os traficantes acreditavam que seria muito ruim se os negros levassem para o novo mundo, referências materiais ou simbólicas que os mantivessem com um pé na África. Como os negros embarcavam seminus, a única coisa que poderiam levar era a memória. Para que isto não acontecesse, eles os transportadores os submetiam ao ritual que consistia em dar voltas nessa árvore para que fossem “zerados”, sem memória (portanto, mais fácil de serem dominados), prontos para uma “nova” vida no outro lado do oceano.

Tenho pensado o samba como uma criação, uma arte como muitas outras que conectou as experiências dos negros em seus destempos. No caso do Rio de Janeiro, o samba atuou de forma decisiva no processo de socialização dos habitantes da cidade principalmente negros e não-negros pobres acolhendo e transformando as histórias cotidianas em respostas as complexas exigências das circunstâncias. O samba como lampejos, gretas por onde podemos vislumbrar movimentos das memórias. Memórias em que o corpo foi empenhado e sua ativação, sua narrativa é feita do deslocamento gerado no encontro desse corpo com/pela percussão. Percussão e corpo canto, música e dança que também são narrações e evocações, pelas conexões que faz dos múltiplos tempos, no/do ritmo, do/no corpo/memória e território da experiência, como sugere Exu. Narrações e evocações que, para uma determinada comunidade narrativa (Benjamin,1994), falam de vários sentimentos, tratam de muitas dores, produzem muitos efeitos, convocando outras possibilidades estéticas, outras artes de viver.

O samba funciona como uma batida que convoca o corpo, seus tempos, seus movimentos e suas histórias próximas e ancestrais. Que toca em coisas muitas vezes sentidas, mas que nem sempre se pode precisar ou explicar. Sentimentos que são compreendidos pelos afetos, por outros sentidos. Para mim, é impossível colocar em palavras aquilo a que meu corpo responde quando Xangô da Mangueira canta. Um registro vocal que parece atravessar muitos tempos, muitos oceanos. Acontece o mesmo quando ouço Clementina de Jesus.

É muito bom pensar que, séculos depois, a mesma metáfora da árvore que por “estranhas coincidências” serve também à ciência moderna como modelo para pensar a organização do conhecimento , hoje serve de acolhimento e atualização das memórias. Memórias que são saberes de anos de presença, de observação, de entranhamento, de encontros, de conversas, de cabelos brancos pintados pelo orvalho e de vadiagens na

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sombra delas: mangueiras, jaqueiras, salgueiros e tamarineiras . Estas árvores de agora são símbolos de voltas, no sentido contrário às que foram dadas na África. Para dizer dessas novas árvores da memória - guardiãs de alguns segredos/memórias contrabandeados - vou trazer para cá trechos da letra de alguns sambas:

Da Mangueira:

Quando piso em folhas secas / caídas de uma mangueira / penso na minha escola / e nos poetas da minha 'Estação Primeira' /Não sei quantas vezes / subi o morro cantando / sempre o sol me queimando / e assim vou me acabando / Quando o tempo me avisar / que eu não puder mais cantar / as coisas do meu violão / da minha mocidade (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito)

58 A Mangueira é parte de uma já legendária tradição do samba carioca; a jaqueira é a árvore símbolo da

Portela, escola de Madureira; o Salgueiro representa o samba do morro do mesmo nome, na Tijuca; a tamarineira é a árvore do Cacique de Ramos.

E sobre o Salgueiro:

Eu venho trazer o meu abraço / nos versos do samba que faço / nos braços do meu cavaquinho /o samba não tem casa e nem padrinho / ele nasce de um carinho / que mora no coração / por isso eu vim cantar noutro terreiro / pra falar bem do Salgueiro em respeito a tradição / Salgueiro não é cravo e nem é rosa / é uma flor misteriosa de pureza e de paixão / que nasce lá num morro da Tijuca / a tanto tempo que nunca ninguém sabe quem plantou / E assim Salgueiro vai / vestido de vermelho e branco ele sai / parece que a cidade se enfeitou / na alegria colorida feito um manto na avenida / e que o carnaval bordou. (Romildo e Toninho Nascimento) E sobre a Tamarineira, diz assim, Bandeira Brasil e Zeca Pagodinho:

Lá, onde nós madrugamos / é o Cacique de Ramos / onde o samba foi morar / procuro sombra que é pra do sol me abrigar / Tamarineira me dá / Tamarineira me dá / abrigo que é pro sereno não me molhar / Tamarineira me dá / Tamarineira me dá / o ecoar da poesia onde reina a magia / naquele lugar / o prateado das folhas pela lua cheia a se derramar / a primavera ao chegar / flores perfumam o ar / bate o tambor / ecoa o cantar / inspiração pra compor / sempre que vou procurar / Tamarineira me dá / Tamarineira me dá. Minha intenção é valer-me do samba, não apenas na sua dimensão de gênero musical ou produto do mercado de bens simbólicos, embora essas “condições” sejam importantes e estejam, de alguma forma, consideradas aqui. Não tenho condições de uma análise musical, tampouco de submeter as letras aos olhos da teoria literária, da semiótica ou outros saberes, embora, reitere que estas não são dimensões descartáveis e certamente, vez e outra, tentarão pôr a cabeça para fora, como insinuações, neste texto.

Estou considerando o samba como prática cultural que possibilitou outros discursos, para além do discurso hegemônico, sobre a cidade do Rio de Janeiro. Cidade que, no início do século XX que é quando se considera o aparecimento do samba na sua forma mais urbana, de sua entrada no mercado , materializava seu projeto de europeização, de 'embranquecimento' e suas consequentes políticas de intervenção no espaço, no corpo tanto físico quanto simbólico -, na organização da cidade.

Neste sentido, o samba disponibiliza elementos para compreendermos melhor como se deu/dá esse encontro. Como fizeram/fazemos, nós, negros, para sobrevivermos no mundo preparado para os brancos, negociando sentidos tanto inter como intra grupos? E aproveitando o 'embalo' dos estudos destas práticas, talvez possamos conseguir outros elementos que nos ajudem a lidar com esse mal-estar civilizatório chamado “racismo” (Sodré, 2000), com as histórias e epistemologias que tentam forjar uma memória ensinada (RICOEUR, 1999). Talvez esta minha empreitada nos ajude a pôr ao sol a proliferação das histórias não contadas, não ouvidas ou ignoradas. Convocar para os espaços acadêmicos, com status de conhecimento, aquilo que durante muito tempo vem mofando na umidade da sombra e da sobra de determinados formas de fazer ciência e de determinadas praticas sociais. Recolocar

aquilo que os saberes acadêmicos hegemônicos têm definido como experiência social circunscrita à escravidão, desvinculada de qualquer debate científico. Uma condição epistêmica que forma-se pela deformação do problema e que vai abstendo-se do assunto, atribuindo-o como problema exclusivo dos negros.

Pensado assim, o samba está sendo entendido como um circuito comunicativo, aproveitando-me da idéia que Gilroy (op.cit.:2001) põe em 'movimento'. O autor usa tal noção para tratar das questões dos negros espalhados pelo mundo e suas dificuldades em decorrência do desterro, da dispersão, das descontinuidades e deslocamentos. O conflito entre a fixação em uma terra “própria” ou a volta a uma nação originária tem criado muitos problemas. Desta maneira, a dificuldade de pensar a questão do espaço, segundo Gilroy, é transposta quando esse conceito é pensado em termos de um circuito comunicativo (op. cit.:20).

Segundo o autor, foi o que capacitou as populações da diáspora, dispersas, a conversar, interagir e mais recentemente até a sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais (p: 20). Ou seja, o circuito comunicativo como metáfora de espaço ajuda a superar a dificuldade de pensar um lugar próprio.

No caso do samba o circuito comunicativo ajuda a pensar nas negociações dos negros com os não-negros e as marcas destas negociações, deixadas como contaminação, no terreno de um poder hegemônico.

A noção de circuito comunicativo que Paul Gilroy usa para nomear aquilo que articulou os negros de diferentes partes do mundo para que estes pudessem se encontrar a partir de muitos elementos simbólicos e sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais , ajuda a pensar na complexidade do samba como circuito que tem possibilitado encontros interraciais onde tem sido possível um intenso movimento de identificações, de exclusões e de trocas simbólicas. O samba como circuito comunicativo que tem se mantido de conversas entre grupos culturais e sociais diferentes.

Estes encontros interculturais e estas interações sociais não significam a concretização do paraíso da convivência, tampouco apagam as tensões, os conflitos e os preconceitos raciais. Mas, podem sim, nos dar pistas das muitas ambiguidades, dos paradoxos e das contradições da situação racial do Brasil. Destas dificuldades-desafios do racismo brasileiro, um “enigma” ganha aparência: por que o samba tem sido considerado um dos mais importantes patrimônios da cultura brasileira e essa importância não é estendida aos compositores? Ou melhor, existe uma 'consideração', uma aceitação do samba, mas que não se traduz em políticas concretas com relação aos compositores. Como questiona Serginho Meriti (2004): neste país, são tantos sambistas talentosos, mas só uns poucos podem estar no mercado, por quê? Ele compôs o samba “Deixa a vida me levar” que foi o hino da conquista do pentacampeonato da seleção brasileira de futebol, no Japão/Coréia, em 2002, e que Zeca Pagodinho gravou, fazendo 'explodir' no mercado. É por isso que Serginho Meriti diz: em outros países, era pra eu nunca mais me preocupar com a vida, minha e da minha família. Mas, daqui a pouco, tenho que colocar outro samba, outro sucesso, pra ir sobrevivendo. Então, talvez nem o samba seja realmente considerado, como se supõe.

No documento CONTRIBUIÇÕ S ARA A P T CA DO NT (páginas 171-175)