• Nenhum resultado encontrado

OUÇA-ME E ME VERÁS!

No documento CONTRIBUIÇÕ S ARA A P T CA DO NT (páginas 183-187)

A ARTE DAS IMAGENS: O QUE VÊ QUEM NOS OLHA? a fabricação do olhar entre estudantes e professores

OUÇA-ME E ME VERÁS!

A fabricação do olhar dos professores e dos alunos entre si resulta de condições para além do universo visual. Sabemos que a visibilidade dos indivíduos depende muito mais das suas falas e da escuta a elas destinada do que da mera aparição restrita à

visualidade. Pois, a nossa imagem ganha forma, cor, volume e pregnância também na proporção que nossa fala é acolhida. Na era das imagens, parece contraditório que a força delas dependa da potência dos enunciados. Se as imagens procuram dispensar as palavras, essas últimas efetivamente podem ressignificar facilmente as primeiras. Por mais que algumas imagens de fato falem mais que muitas palavras, são também os discursos verbais e seus enunciados que formatam e vitalizam as realidades e as verdades visuais. A palavra ouvida faz a professora gordinha e mal encarada revelar-se a mais querida orientadora; faz do aluno inicialmente relegado ao temível estereótipo de delinquente revelar-se um adorável aprendiz. Entretanto, a visualidade ganha terreno em função da lógica de ordenação dos espaços e tempos, sempre separados, da escola idealizada por sua gestão oficial. Na medida em que as palavras proferidas por ambas as dimensões centrais de seu universo, ou seja, adultos e jovens, são cada vez menos

consideradas pelos seus destinatários.

No campo de batalha da palavra enunciada, que aqui reduzimos a instituição escolar, a atuação docente é comprometida e tencionada por várias forças muitas vezes em posições opostas. O aparentemente inexpugnável compromisso com um programa é o tempo todo posto a prova pela rebeldia do cotidiano (OLIVEIRA, 2003). A atuação docente ante os desafios e obstáculos que redesenham continuamente a vida escolar redesenha, por sua vez, a imagem do professor. Imagem oferecida com toda nitidez aos alunos: da franqueza, do desdém, da indiferença, da desesperança ou desencantamento e às vezes, surpreendente vitalidade, animação e bom humor.

Quem nos olha, os alunos sem olhares traduzidos, sequer percebidos, apreendidos ou captados, operam continuamente a edição de nossas imagens, imagens que serão utilizadas para melhor compreender e avaliar os mundos dos quais somos, querendo ou não, conscientes ou não, porta-vozes. Nossos textos, o entendimento e humor dos quais somos autores, fornecerão traços decisivos para a composição do que veem aqueles que não olhamos, ou vacilamos ao olhar. Assim como contribuem, os elementos apontados, com a cor, o volume, a densidade e a ordenação estética e ética da própria instituição escolar. As imagens fabricadas das relações entre estudantes e professores resultam de suas muitas tensões, do desequilíbrio das expectativas, das distâncias e aproximações das sintonias culturais, do respeito e consideração pelos acervos culturais postos em jogo, das possibilidades de compreensão e apreensão de valores e vocabulários, da flexibilidade e elasticidade dos dispositivos comunicacionais, meio aos quais está até o reconhecimento da incapacidade de compreender algumas coisas sem necessariamente inviabilizar os canais de encontro.

Para investigar o que produzem uns e outros e os processos de elaboração das imagens de uns pelos outros, é preciso criar percursos e iniciativas que além de propiciarem a elucidação das relações entre mestres e aprendizes, poderão facilitar a reconfiguração do sentido desses termos, e nesse mesmo movimento apontar caminhos para o reencontro da instituição escolar com o tempo de agora. Um tempo que aposentou as metodologias fixas, um tempo que convoca e instiga a coautoria coletiva. Um tempo que interroga a posse individual seja lá da obra que for. Um tempo que reinventa a juventude, redesenha os jovens e lhes possibilita uma, nunca antes experimentada, capacidade e liberdade de inventar a vida. Se o resultado dessa aventada liberdade e capacidade é constantemente considerado condenável, apontado como indisciplina, vandalismo, hedonismo excessivo, e outras práticas reprováveis, convém avaliarmos a crucial participação do universo adulto e gestor dos programas dominantes nesses resultados e a validade de tais julgamentos. Convém, da mesma forma, avaliarmos quais os insumos e espaços que são legados aos jovens e à formação da juventude contemporânea, sabidamente tecida por diferentes tramas, pertencimentos transitórios e em trânsito, fluxos de afetos e plasticidade extrema dos desejos. Pois estamos diante, querendo ou não, diante de uma juventude cujos olhares diversificados e intercambiantes partem e operam com movimento em franco contraste e inegável oposição aos sistemas reguladores da educação e da formatação dos sujeitos como temos mantido já há algum tempo.

A atualidade planetária evidencia ao menos preocupado olhar que não é açambarcável por um único tema. Se podemos considerá-la a era das imagens,

também podemos defendê-la como o tempo das incertezas e das transfigurações, o tempo da movimentação e das tribos. O tempo da radical iconoclastia, o que não significa, entretanto, o aniquilado abandono meio aos despojos das certezas e verdades de um passado hoje aparentemente ingênuo. O tempo das tribos também é o tempo das invenções de possibilidades coletivas moduladas pelas realizações individuais, a vida como obragem estética, a vida como tatuagens da diferença. Jogos imagéticos os quais exigem que as nossas expectativas e verdades particulares se alarguem para melhor fruir e usufruir do acontecimento do outro, e responder às instigações estéticas do não idêntico. A potência sensual da diferença seja no campo das ideias, das artes ou das insignificâncias cotidianas fazem da vida a vida! E no que toca a vida nas escolas, disponibiliza a conexão entre alunos e professores, entre jovens e jovens, entre jovens e adultos, entre imagens encarnadas e corpos imagéticos e imaginados.

Destacamos assim, que o papel do jogo dos afetos, das sensibilidades, criações e escolhas estéticas está posto como imanente contemporaneidade e desta não escapa nem quem olha nem que é visto pelos que não são considerados. E sob a ordenação racional das ideias e argumentações - ainda postuladas por boa parte da educação formal - ordenação, que contrasta com os pensamentos que provoca, se pronuncia evidente, eloquente na sua gagueira deleuzeana, o descontrole de tudo que se julgou e se quis controlar na oficialização da formação escolar, que para além de inegáveis importantes realizações ainda tem sido palco privilegiado da coerção e do aniquilamento. Aniquilamento de presenças e de perspectivas duramente realizado por meio da edição dos olhares e da ação da epistemologia da invisibilização, não só da juventude, mas de tido que os regimes de fé da escola descartam por não compreender, julgar açodadamente nefasto ou simplesmente não perceber. Entretanto, as realizações e imagens juvenis, as obras dos jovens inalcançáveis pelas abordagens e olhares hegemônicos criam mundo e nestes alocam seus parceiros e seus opositores. Resta a nós professores, na escolha de nossos trânsitos e pertencimentos, a luta pela localização e formatação das nossas imagens. O que também significa decidir que tipo de afetação estaremos contribuindo aos donos dos olhos que nos olham e nos veem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS:

Zouk, 2007.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.

________. Mille plateaux Capitalisme et schizophrénie. Paris: Les Éditions de Minuit,

1980.

________. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.

GUATTARI, Félix. Caosmose; um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34,

2000.

MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

________. O tempo das tribos: declínio do individualismo nas sociedades de massa. São Paulo: Forense universitária, 2006.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos praticados. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SANTAELLA, Lúcia. Culturas e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias a cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

No documento CONTRIBUIÇÕ S ARA A P T CA DO NT (páginas 183-187)