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CAPÍTULO I. O Advento da Reserva Museológica

1.2. Os primórdios da reserva

1.2.3. As Colecções Pré Institucionais

O coleccionismo pode ser interpretado como o reflexo de uma moda, podendo ser apontados alguns factores que contribuíram para que o acto de coleccionar adquirisse um âmbito científico, sistemático metódico e especializado, entre eles: o espírito enciclopedista e a cultura de salão115.

No Renascimento ver era conhecer. Porém nos inícios do século XVII, interpretar era conhecer. A classificação dos objectos deixa de ser realizada com base num sistema de afinidade e semelhança e para passar a ser efectuada de acordo com critérios científicos de ordem e racionalidade. O desenvolvimento da ciência é agora encarado como uma actividade de foro colectivo (o colectivo sobrepõe-se ao privado), não sendo portanto de estranhar que

112 RAPOSO, Luis - Arqueologia em diálogo: o papel dos museus. Arkeos. N.º 1 (1997), p. 74. 113 Isto porque houve diversos gabinetes que não sobreviveram após a morte dos donos.

114 MOREIRA, Isabel M. Martins – Museus e Monumentos em Portugal: 1772-1974. Lisboa: Universidade

Aberta, 1989, p. 32.

neste período se tenham criado diversas sociedades científicas e academias que possuíam as suas próprias colecções. Uma das mais relevantes é o Repository of the Royal Society116, de Londres. Esta sociedade tinha entre os seus objectivos a organização da sua colecção – repositório, por séries ou tabelas de classificação117, de modo a comprovar cientificamente os

fenómenos da ciência e da arte; ambicionava-se que o repositório fosse o mais abrangente e que reunisse o maior número possível de artefactos de caracter natural e artificial. A Sociedade Real queria que a sua colecção fosse empregue para propósitos filosóficos e finalidades úteis. É nomeado pela primeira vez um conservador da colecção - Robert Hooke. Em 1681 Neemias Grew publicou um catálogo do Repositório o qual continha a descrição detalhada de cada objecto118. O Repositório marca assim a passagem do domínio do coleccionismo privado para

colecções do domínio colectivo.

O contexto francês também é paradigmático. A Académie Royale de Peinture et Sculpture119 elabora em 1667 a primeira exposição de Arte dos seus membros intitulada “Salão de Arte”, em virtude de se realizar no Salon Carré, do Palais du Louvre. Estas exposições eram organizadas de início de forma irregular, passando a ter uma periodicidade anual a partir de 1725, durante o reinado de Louis XV. Os salões de arte sendo acontecimentos de elevada notoriedade de índole cultural, política e social vieram demonstrar contudo, que as obras apresentadas a concurso eram de reduzida qualidade, nomeadamente entre 1740 e 1747, fase em que não foram atribuídos prémios. Este facto ganhou grande notoriedade tornando-se mesmo um assunto de estado. Diversas vozes insurgiram-se120, apontando como a principal

causa para a “decadência” da arte francesa, a inexistência de uma galeria em França que reunisse obras de pintura e de escultura, bem como as colecções reais, as quais inclusive estavam descuradas. A solução para o problema passaria pela criação de uma galeria de arte que conservasse e exibisse as colecções reais, contribuindo para a exaltação da arte francesa. O

116 A Royal Society fundada em 1660 era direccionada ao desenvolvimento da ciência experimental.

117 As tabelas de classificação deveriam ser o mais científicas possível e universais, de modo a que em todo o

mundo se desse o mesmo nome ao mesmo animal, planta, etc. – são as denominadas tabelas taxonómicas.

118 THE ROYAL SOCIETY Website. Before the British Museum: the Repository of the Royal Society. [Consulta:

22.08.2015]. Https://royalsociety.org/exhibitions/2008/repository/

119 Esta academia fundada em 1648, era dirigida pelo pintor oficial da corte de Luis XIV, Charles Le Brun.

120 Uma das figuras que se destacou foi La Font de Saint-Yenne, defendendo o seu ponto de vista no seu livro

Palais du Luxembourg foi o local selecionado, motivo pelo qual a Galeria passou a denominar- se Galeria do Luxemburgo. Esta abriria ao público121 em 1750. Porém, antes da abertura foram

contratados dois restauradores122 para intervirem nas obras que iam estar expostas. A profissão

de restaurador ganha então notoriedade, já que a preservação dos bens patrimoniais assume contornos políticos; era preciso demonstrar ao mundo que a França tinha a capacidade de manter as suas colecções em bom estado.

Dado que um dos objectivos da Galeria era a instrução de pintores franceses, para que a arte francesa rejuvenescesse, se atualizasse em comparação com a arte dos países nórdicos (holandesa) e italiana, tornara-se premente encontrar um critério científico de classificação das obras de arte, que fosse pedagógico, de modo a possibilitar a destrinça e apreensão dos talentos e falhas artísticas dos pintores que estavam representados. Os teóricos de arte André Félibien123

e Roger de Piles124 tiveram um papel importante neste domínio. Félibien defendia a

aprendizagem por meio da constante visualização de exemplos; para ele o conhecimento decorria do acto de fazer e de observar. Piles sustentava que apenas pelo método comparativo é que se podia determinar se uma pintura era ou não de boa qualidade. Para tal bastava agrupar as obras dos artistas consoante a classificação mais elevada auferida com base nas componentes formais da pintura. Esta foi a lógica implementada para a organização das pinturas na Galeria do Luxemburgo. A Galeria do Luxemburgo encerra em 1759, todavia não tardaria a ser planeada a criação de uma nova galeria – a Grande Galeria do Louvre. A Galeria do Luxemburgo é o embrião do Louvre.

Tal como refere Françoise Choay:

121 A galeria era pública uma vez que abria ao público dois dias por semana, sendo frequentada por membros das

Academias, pintores da Corte, Aristocratas.

122 As intervenções de conservação e restauro das pinturas ficaram a cargo de François-Louis Colins e Marie-

Jacob Godefroid.

123 André Félibien era arquitecto e historiador da corte, tendo em 1666 escrito a obra “Entretiens sur les viés e sur

les ouvrages des plus excellens peintres”. Nela ele analisa a evolução da pintura tendo em conta as suas

componentes formais (desenho e proporção, a cor e a luz, a invenção, perspectiva e expressão), examinando-as por comparação com os grandes mestres da pintura seiscentista (Ticiano, Miguel Ângelo, etc.).

124 Roger de Piles publica em 1708, o livro “Le Balance de la peinture”. Também ele acreditava numa análise

objectiva da pintura alcançável através das distintas componentes formais que a constituíam (composição, desenho, expressão e a cor).

[…] pouco a pouco, as antiguidades adquirem uma nova coerência visual e semântica que confirma o trabalho epistémico do esclarecido século XXVIII e do seu projecto de democratização do saber. O Museu que recebe o seu nome quase na mesma altura que o monumento histórico, institucionaliza a conservação material das pinturas, das esculturas e dos objectos de arte antigos e prepara a via da conservação dos monumentos da arquitectura125.