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CAPÍTULO I. O Advento da Reserva Museológica

1.4. O percurso para a criação dos Museus em Portugal

1.4.1. Do coleccionismo medieval e renascentista ao Real Museu da Ajuda

Na opinião de Isabel Martins Moreira «o colecionismo é, sem margem de dúvida, um dos factores que está na base do surgimento de núcleos museológicos portugueses»149.

147 AMARAL, Joana Rebordão. Gestão de acervos: Proposta de abordagem para a organização de reservas.

Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2011, p. 2. Dissertação de Mestrado em Museologia.

148 GOMES, Maria Fernando; VIEIRA, Eduarda - As Reservas Visitáveis do Musée des Arts et Métiers em Paris.

ECR - Estudos de Conservação e Restauro. Nº 5 (2014), pp. 131-132. [Consulta: 31.05.2014].

Http://revistas.rcaap.pt/ecr/article/view/3748.

149 MOREIRA, Isabel M. Martins – Museus e Monumentos em Portugal: 1772-1974. Lisboa: Universidade

Portugal acompanhou o desenvolvimento do coleccionismo do período medieval e renascentista através das Câmaras de Tesouros (Schatzkammers), dos Gabinetes de Curiosidades (Wünderkammers), e dos Gabinetes do Mundo (Künstkammers), tendo inclusive contribuído para o acréscimo de espécimes de fauna e flora e artefactos de naturalistas e colecionadores europeus, provenientes da Lusitânia e de territórios coloniais150.

Sobretudo a partir da época medieval a Igreja constituiu o mais importante repositório de obras de arte. Recorde-se que neste período tal como menciona André Vauchez:

[…] a Igreja esforça-se por educar um povo pouco polido e de curta instrução para além do necessário no plano estritamente material, fazendo-o pressentir a existência de uma realidade superior. Para isso, ela não hesitava em utilizar os recursos da arte, ao mesmo tempo, expressão de uma vida espiritual intensa – a dos clérigos – e meio para os leigos entreverem a grandeza e infinita riqueza do mistério divino151.

A Igreja é, na realidade, o grupo social que acumulou ao longo do tempo a maior quantidade de bens artísticos, por dois factores principais: o carácter privilegiado da Igreja como catalisador do mercado de arte (mecenato) e as ofertas dos fiéis152.

Este facto condicionou de certo modo o percurso para a criação dos museus nacionais. A conciliação do sistema museológico e o Clero não foi a mais cadenciada em Portugal

150 Veja-se as alusões de João Carlos Pires Brigola no seu livro “Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no

Século XVIII”. A título de exemplo: «O fenómeno cultural setecentista que temos vindo a evidenciar, isto é a de

os naturalistas e colecionadores europeus encararem o nosso país e o seu vasto Império – terra ignota e inexplorada, porque geográfica e culturalmente excêntrica – como campo privilegiado para as viagens científicas, alimentou igualmente outro veio da pulsão naturalista: a aquisição de espécimes novos para as colecções dos gabinetes de naturalia» (BRIGOLA, João Carlos Pires - Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no Século XVIII. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003. p. 75).

151 VAUCHEZ, André – A espiritualidade da Idade Média Ocidental: Séc. VIII-XIII. Lisboa: Editorial Estampa,

1995, p. 185. O autor acrescenta: «A alma humana, envolvida na opacidade da matéria, aspira a regressar a Deus. Ela só pode consegui-lo por intermédio das coisas visíveis que, os sucessivos níveis da hierarquia refectem cada vez melhor a sua luz. Através do criado, o espírito pode assim aceder ao não-criado. Aplicada ao campo da arte, esta concepção das relações entre o homem e o divino levou à multiplicação, dentro da igreja, de objectos como as pedras preciosas ou obras de ourivesaria sacra que, pela sua irradiação, podiam ser consideradas como símbolos das virtudes e ajudar o homem a elevar-se até ao esplendor do Criador» (Ibidem, p. 186).

152 MOREIRA, Isabel M. Martins – Museus e Monumentos em Portugal: 1772-1974. Lisboa: Universidade

atendendo a que a maioria das Câmaras de Tesouros eram propriedade da Igreja, estando localizadas em mosteiros e conventos. Porém, curiosamente, «o maior tesouro do país, distribuído por conventos, mosteiros, igrejas e capelas aquando da extinção das Ordens Religiosas, em 1834, deu origem ao núcleo central dos fundos dos museus de arte nacionais»153.

Ter-se-ia que aguardar pelo período dos Descobrimentos, que teve início em 1415 com a conquista de Ceuta, para assistir-se a um novo fôlego ao nível da história das colecções, agora ligadas também à realeza e à aristocracia.

A alusão mais antiga a uma colecção de antiguidades em Portugal segundo Carlos Fabião154, data do século XV, sendo pertença de D. Afonso, filho do primeiro Duque de

Bragança. A colecção era composta de objectos trazidos das suas viagens pela Europa, a par de lápides e outras antiguidades recolhidas no Alentejo, as quais tinham sido oferecidas pelo seu pai155.

Durante os séculos XV e XVI as colecções portuguesas assemelhavam-se ao nível organizativo aos gabinetes de curiosidades, abarcando espécies do mundo natural, tal como artefactos díspares, de colecções de etnografia, epigrafia, numismática e arqueologia, algumas delas eram pertença de personalidades ligadas à ciência e à educação, como André de Rezende e Damião de Góis. André de Rezende por exemplo possuía uma considerável colecção de epígrafes romanas no jardim da sua casa em Évora156. Porém, na perspectiva de João Carlos

Brigola terá sido D. Francisco Xavier de Menezes que melhor interpretou o coleccionismo pioneiro e experimental. O 4º Conde da Ericeira teria já em meados do século XVII iniciado um gabinete de curiosidades naturais no Palácio da Anunciada, em Lisboa, assim como uma biblioteca, com mais de quinze mil volumes. A família Menezes também era detentora de uma

153 Ibidem.

154 Com base numa descrição de Vilhena Barbosa de 1878.

155 FABIÃO, Carlos – Para a história da arqueologia em Portugal. Penélope. Fazer e desfazer a história. Lisboa:

Quetzal Editores, Nº2. Fev.1989, p.12.

“preciosa” galeria de pintura onde constavam obras de artistas célebres como Correggio, Tiziano, ou Rubens157.

Embora a partir do século XVI o ensino artístico fosse fruto da aprendizagem das componentes técnicas e teóricas no seio das academias, em Portugal, a introdução desta metodologia pedagógica foi um pouco mais tardia. No término do século XVII, pela égide do rei D. Filipe II, com a criação da Aula do Risco do Paço da Ribeira, em 1594158. Foi dado o

primeiro passo para formação da Academia de Belas-Artes de Lisboa159.

No decorrer do século XVIII160 até inícios do século XIX, com a fundação do Museu

Portuense161 criaram-se em Portugal vários museus como:

[…] os museus de Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, destinados ao clero, aos universitários da extinta escola dos jesuítas e aos eruditos; o Museu de Tibães, de limitado acesso a religiosos;

157 BRIGOLA, João Carlos Pires - Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no Século XVIII. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003. p. 70.

158 UNIVERSIDADE DE LISBOA, FACULDADE DE BELAS-ARTES. O Ensino artístico e as origens da

FBAUL. In Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Lisboa: FBAUL, 2014. [Consulta: 03.04.2014]. Http://www.fba.ul.pt/informacao-institucional/historia/

159 A Academia de Belas-Artes só viria a ser constituída em 1836, pelo Decreto de 29 de Outubro, estando

instalada no Convento de São Francisco, que albergava de igual modo a Biblioteca Pública, passando a designar- se por Academia Real de Belas-Artes, em 1862.

160 Ao nível do património e das políticas de salvaguarda do mesmo salienta-se o alvará Régio de D. João V de

1721. Este diploma indica várias medidas que visam a protecção do património, incluindo a apresentação de uma noção de património tipologicamente alargada; a delimitação temporal, até D. Sebastião, de o que são considerados monumentos, antigos; atribuição de poderes locais na área patrimonial; um código penal; ou a atribuição à Academia Real de História, do controlo e coordenação das actividades patrimoniais. Destaca-se ainda a figura de D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses - o 1º Marquês de Abrantes, que alerta para o estado de incúria em que se acha à data vários monumentos e antigas ruínas, no decorre das suas jornadas pelo Alentejo. Vd. RAMOS, Paulo Oliveira - O Alvará régio de 20 de Agosto de 1721 e D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, o 1º Marquês de Abrantes: Uma leitura. Discursos. Língua, Cultura e Sociedade. III Série, vol. 6 (2005). Lisboa: Universidade Aberta, pp. 87-97. Vd. MENDES, J. Amado - Estudos do Património: Museus e educação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, pp. 120-121.

Vd. SOROMENHO, Miguel, SILVA, Nuno Vassalo e - Salvaguarda do Património – Antecedentes Históricos – Da Idade Média ao Século XVIII. In Dar Futuro ao Passado. Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, Secretaria de Estado da Cultura, 1993, pp. 22-32.

161 Apesar de ser conhecido segundo esta denominação, o nome integral era Museu Portuense de Pintura e

o Museu Maynense, para o público que quisesse usufruir das aulas aí ministradas; o Museu da Academia das Ciências, para os académicos e “curiosos”; o Museu do Marquês de Angela, de carácter privado; e o Museu Lisbonense, que, anunciado pela gazeta de Lisboa, era acessível a qualquer leitor da mesma. O Museu Allen embora de formação anterior ao Museu Portuense, só abrirá portas ao público, em 1836162.

Em finais do século XVIII surgem as primeiras colecções de carácter científico e pedagógico, resultantes da percepção de que o conhecimento provinha da compreensão e experimentação das coisas. Nesta conjuntura o Marquês de Pombal cria o Real Museu da Ajuda, como o fim de instruir os príncipes herdeiros, netos de D. José163. Este era composto por dois

gabinetes: Gabinete de Coisas Naturais e o Gabinete de Física. A reforma Pombalina do Ensino marca a transposição destes gabinetes para o ambiente académico em 1772, com a fundação do Gabinete de História Natural e o Física Experimental, na Universidade de Coimbra. Trata-se da primeira colecção institucionalizada em Portugal, no seio de uma academia. Nas últimas décadas do século XVIII assiste-se a uma mutação cultural fomentada pelos ideais iluministas, que dará origem à génese dos museus públicos nacionais.