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CAPÍTULO I. O Advento da Reserva Museológica

1.3. O aparecimento do Museu Público

O século XVIII caracteriza-se pela coexistência da noção de propriedade privada, resultante do nascimento da burguesia e do sentimento de um património cultural colectivo, fruto do espírito da Revolução Francesa e do Neoclacissismo. O espírito de que a arte e a ciência são pertença da humanidade, tal como defende Goethe, em 1813, impregna o coleccionismo da época, o que despoleta que as colecções comecem a abrir ao público, criando-se centros de depósitos culturais e museus com projecção pedagógica e estatal, pois o Estado intervém protegendo e impulsionando as belas-artes126.

Durante o período da Revolução Francesa127, as classes altas detentoras de bens

patrimoniais foram gravemente lesadas. A 2 de Novembro de 1789 ocorre a confiscação dos bens da Igreja e consequente nacionalização dos mesmos, seguindo-se os bens dos exilados e de emigrantes, assim como da realeza.

125 CHOAY, Françoise – A Alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 55.

126 MACARRÓN MIGUEL, Ana Mª - Historia de La Conservación y de la Restauración: desde la Antiguedad

hasta finales del Siglo XIX. 2ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1997, pp. 109-110.

127 A Revolução Francesa (1789-1799) foi um período conturbado da história da nação francesa, que teve

repercussões um pouco por toda a Europa. A revolução pôs fim a uma sociedade hierarquizada e desigual, e a uma visão do mundo baseada numa ordem teológica e política. Os antigos ideais foram substituídos pelos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, dando ao povo legitimidade, e a possibilidade de ter um papel interveniente. Vd. SCHUBERT, Karsten - The Curator’s Egg: The Evolution of the Museum Concept from the French Revolution

Esta fabulosa transferência de propriedade, corolário de uma perda brutal de destino não tinha precedente e iria colocar de igual modo, problemas sem precedentes. Os responsáveis por esta façanha metamorfosearam o ocorrido empregando palavras-chave como herança, património ou conservação128. Não se esqueça que o valor primário do tesouro é económico.

Integradas entre os bens patrimoniais sob o efeito da nacionalização as antiguidades são transformadas em valores de troca e possessões materiais, que de acordo com Françoise Choay, sob pena de prejuízo financeiro, há que preservar e manter129.

Neste cenário existia a ávida necessidade de legislar tendo como desígnio o interesse colectivo acerca do destino dos mais variados objectos convertidos em património da nação. Assim, em 1790 é criada a Comission des Monuments, resultante da consciencialização por parte da Assemblée Nationale (Assembleia Constituinte de 1789), da necessidade do Estado conservar os bens “nacionais”, uma vez que esta preocupação reflectia a importância de demonstrar à nação que o governo se interessava pela própria história do país130. Esta comissão

constituída por eruditos e artistas tinha como propósito a preservação e inventariação das obras de arte e monumentos nacionalizados.

Com base na legislação francesa o património, os monumentos históricos foram divididos em duas categorias: móvel e imóvel. Apesar do carácter heterogéneo dos bens estes «são protegidos e provisoriamente colocados fora do circuito, seja pelo seu reagrupamento em “depósitos” protegidos, seja pela colocação de selos, nomeadamente nos casos dos

128 «Conservar é lutar contra o tempo. Procurar subtrair alguma coisa aos efeitos normais da destruição, da perda

ou do esquecimento. É também tentar opor-se, tentativa evidentemente sempre coroada de fracasso, àquilo que é a própria essencia do tempo, o irreversível. Neste sentido muito lato, a conservação pode aplicar-se em primeiro lugar aos objectos materiais, mas também ao saber, á língua, à cultura, à própria vida. Pode inscrever-se em representações do mundo, práticas e instituições muito diferentes. O que dá a tudo isto uma certa unidade, embora do exterior e de forma abstracta, é essa dimensão de luta contra os efeitos e a essência do tempo, e também a sombra de fracasso final que paira sobre tal luta» (GUILLAUME, Marc – A política do património. Porto: Campo de Letras, 2003, p. 45).

129 CHOAY, Françoise – A Alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 87.

130 De acordo com J. Amado Mendes, a partir de finais do século XVII e ao longo do século XIX, os Estados

recorriam aso museus para manifestar o seu poder, tendo em conta que neste período dá-se a exacerbação dos nacionalismos, ao mesmo tempo que ocorre o reforço do conceito Estado-Nação, que advoga aos governos o dever de assegurar a educação e o bem-estar dos cidadãos (MENDES, J. Amado - Estudos do Património: Museus e

edifícios»131, muito embora nos anos seguintes se registasse uma onda de vandalismo

revolucionário132, tendo como um dos fiéis opositores o Abade Grégoire.

Os primeiros depósitos foram:

[…] transferidos do seu depósito provisório para o depósito definitivo aberto ao público, que consagra então a recente denominação de museum ou museu. Este tem por função servir na instrução da nação. Reunindo obras de arte, mas também, conforme ao espírito enciclopedista, objectos das artes aplicadas e máquinas, os museus ensinarão o civismo, a história, bem como os conhecimentos artísticos e técnicos. Esta pedagogia é, logo à partida, concebida à escala nacional. Desde 1970 que Bréquigny, presidente da Comissão para a criação de depósitos, prevê uma repartição homogénea dos museus pelo conjunto do território francês, antecipando o grande projecto europeu de Napoleão. Os acontecimentos políticos, a penúria financeira, a inexperiência e a imaturidade em matéria museológica impedirão a realização dessas ambições. […] Só Paris é a excepção. O Louvre é o local simbólico para onde são dirigidas e reunidas a maior parte das riquezas artísticas durante a Revolução. A história da sua abertura, ou melhor, aberturas ilustra o conjunto de conflitos doutrinais e ideológicos, bem como as dificuldades técnicas e financeiras, com que se confronta então o projecto museológico133.

O superintendente Geral dos Edifícios do Rei, o Conde D’Angivillier, foi um dos defensores da criação de um museu na Grande Galeria do Louvre. A Assembleia Constituinte acaba por decretar uma lei em 1791, para a instalação de um museu134 no Palais du Louvre,

131 CHOAY, Françoise – A Alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 88.

132 Vd. RÉAU, Louis; FLEURY, Michel - Histoire du vandalisme: Les monuments détruits de l'art français. Paris:

Robert Laffont, 2013.

133 CHOAY, Françoise – A Alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 88 – 89.

134 De acordo com os estatutos do ICOM, revistos e aprovados na 21 ª Conferência Geral, em Viena, na Áustria,

em 2007: Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos ao serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao público, que adquire, conserva, estuda, comunica e expõe o património tangível e intangível da humanidade e do seu ambiente para fins de estudo, educação e fruição. (INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS Website. [Consulta: 29.01.2014]. Http://icom.museum/the-vision/museum- definition/ ).

servindo de repositório dos bens culturais, evitando a sua destruição. O Musée Central des Arts abre portas no ano de 1793135.

O Louvre representou um ponto de viragem na história da Museologia136. «A Revolução

Francesa providenciou as condições para a emergência de um novo programa para os museus137. Deu-se o surgimento de uma nova “verdade” e racionalidade, da qual resultou uma

moderna funcionalidade para uma nova instituição – o museu público138»139. É o primeiro

grande museu público no sentido moderno140; o museu é encarado como um instrumento do

Estado ao serviço da educação / instrução do povo. «Este novo programa museológico incrementou uma significativa transformação e restruturação das práticas de coleccionismo levadas a cabo na Renascença»141.

135 Sobre o Musée des Monuments Français, de Alexandre Lenoir veja-se: CHOAY, Françoise – A Alegoria do

património. Lisboa: Edições 70, 2006, p. 89-91.

136 Vd. HERNANDEZ-HERNANDEZ, Francisca – Manual de Museología. Madrid: Editorial Síntesis, 1994.;

assim como BELDA NAVARRO, Cristóbal; MARÍN TORRES, María Teresa (edi.) - La Museología y la Historia

del Arte. Murcia: Universidad de Murcia-Fundación CajaMurcia, 2006.

137 A par dos ideais Republicanos pode-se abordar o conceito de disciplinary society, desenvolvido por Michael

Foucault para descrever as tecnologias disciplinares de poder para examinar, classificar e controlar o tempo, espaço, corpos e coisas, durante os séculos dezassete e dezoito. As disciplinas/métodos que dividiam e controlavam o tempo, espaço e movimento, empregues apenas por alguns membros da sociedade (exemplo do clero e do exército), passam a ser fórmulas gerais de dominação e controlo. A disciplina como técnica de poder opera através da observação hierárquica, julgamento normalizado e examinação (HOOPER-GREENHILL, Eilean - The museum in the disciplinary society. In PEARCE, Susan M. (edit.) - Museum studies in material culture. Leicester: Leicester University Press, 1989, pp. 61 e 63). Estes princípios foram transpostos para o domínio da nova instituição criada - o museu público.

138Ibidem, p. 63.

139 GOMES, Maria Fernando; VIEIRA, Eduarda - As Reservas Visitáveis do Musée des Arts et Métiers em Paris.

ECR - Estudos de Conservação e Restauro. Nº 5 (2014), p. 130. [Consulta: 31.05.2014].

Http://revistas.rcaap.pt/ecr/article/view/3748.

140 O British Museum criado em 1753 constitui o primeiro museu público e independente, tendo por base colecções

particulares e sendo da total responsabilidade do Estado. Era um museu aberto ao “público”, mas não estava aberto a qualquer pessoa, destinava-se a uma elite; verificavam-se diversos condicionalismos, como a abertura apenas a certos dias, a cobrança de entrada, entre outras normas.

141 GOMES, Maria Fernando; VIEIRA, Eduarda - As Reservas Visitáveis do Musée des Arts et Métiers em Paris.

ECR - Estudos de Conservação e Restauro. Nº 5 (2014), p. 130. [Consulta: 31.05.2014].

Nas origens, o sistema expositivo dos museus dos finais do século XVII e do século XVIII assemelha-se ainda ao do dos gabinetes de curiosidades. As pinturas ordenadas segundo temas, materiais e formatos revestiam a totalidade das paredes das divisões, enquanto que os objectos tridimensionais eram exibidos ao centro das salas sobre amplas mesas142,143.

O método comparativo de De Piles era o favorito dos artistas, já os académicos tinham preferência pelo método de exposição histórico e cronológico. É neste contexto que se acaba por dar a total secularização do museu, e, por conseguinte, a secularização das obras de arte, as quais ganham um novo estatuto e função, no seio do espaço museológico.

O museu assumia então um papel enciclopédico, recolector e acumulativo. Recorde-se que nesta fase a totalidade dos objectos que compunham a colecção se achava exposta. A metodologia deste processo baseia-se no desenvolvimento da compreensão do visitante através da exploração dos objectos dispostos em simultâneo; anseia-se que ele consiga apreender os conhecimentos por meio do factor descoberta144. Com o surgimento do conceito de museu como

um instrumento para a educação democrática das “massas” ou do cidadão, criou-se uma divisão entre assuntos do conhecimento, entre produtores e consumidores do conhecimento, especialistas e leigos. No museu público os assuntos relacionados com a produção são localizados em zonas escondidas do museu, enquanto os temas de consumo são localizados em espaços públicos145. Uma das consequências do novo programa museológico para além da

reformulação do processo expositivo146 consistiu na criação de uma fronteira entre o domínio

público e privado no museu. Nesta linha surge o “repositório” - a reserva. A área de reserva é concebida como uma zona privada, fechada, por oposição à de exposição, aberta, pública. O

142 HOOPER-GREENHILL, Eilean - The museum in the disciplinary society. In PEARCE, Susan M. (edit.) -

Museum studies in material culture. Leicester: Leicester University Press, 1989, p. 69.

143 GOMES, Maria Fernando; VIEIRA, Eduarda - As Reservas Visitáveis do Musée des Arts et Métiers em Paris.

ECR - Estudos de Conservação e Restauro. Nº 5 (2014), p. 131. [Consulta: 31.05.2014].

Http://revistas.rcaap.pt/ecr/article/view/3748

144 MAXIMEA, Heather – Exhibition galleries. In LORD, Barry; LORD, Gail Dexter, dirt. - The Manuel of

Museum Exhibitions. Walnut Creek: Altamira Press, 2002, p. 149.

145. HOOPER-GREENHILL, Eilean - The museum in the disciplinary society. In PEARCE, Susan M. (edit.) -

Museum studies in material culture. Leicester: Leicester University Press, 1989, p. 71.

146 O método organizativo de exibição das obras foi sofrendo sucessivas mutações, ajustando-se às correntes de

pensamento; as classificações transitaram da separação entre os trabalhos dos artistas vivos dos não vivos, a parâmetros cronológicos, à divisão segundo escolas de artistas, de acordo com a localização geográfica e histórica.

antagonismo entre estes dois espaços suscitou novas práticas de conservação preventiva a par da evolução do conceito de reserva, mencionada primeiramente como armazém, depósito ou arrecadação147,148.

O “Musée Français” desencadeou a criação de novas funções e disciplinas, bem como estruturas organizacionais, que perduraram até à actualidade. Para além das supracitadas salientam-se a introdução do conceito de exposição temporária, havendo uma diferenciação entre o espaço expositivo da colecção permanente e o da exposição transitória; a autonomização das questões da conservação e do restauro, assumindo-se como profissões e disciplinas imprescindíveis para a preservação das colecções, a constituição de um quadro de pessoal afeto ao museu, constituído pelo director, secretário e conservadores especialistas nas diferentes tipologias das colecções (pintura, escultura, desenho e gravura), a necessidade de contratação de guardas e vigilantes para se assegurar a vigilância de bens e pessoas no interior do museu, e ainda o conceito de documentação das obras, pelo que é editado um catálogo fundamentado das colecções, tendo este sido precedido de um inventário detalhado de todos os objectos, tendo sido elaborados pequenos guias para os visitantes.