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CAPÍTULO I. O Advento da Reserva Museológica

1.4. O percurso para a criação dos Museus em Portugal

1.4.3. Da implantação da I República até ao Regime do Estado Novo

Um dos momentos relevantes para Portugal no âmbito da Museologia dá-se com a implementação da I República, a 5 de Outubro de 1910. Muito embora a estrutura museológica não registe grandes mudanças ao nível do seu conteúdo, o mesmo não se pode dizer do conceito de museu e do sentido de defesa do património. Os acontecimentos políticos e sociais que vão potenciar estas alterações prendem-se, por um lado com a exacerbação do discurso patriótico e nacionalista que procedia da humilhação do Ultimatum de 1890, e por outro, com a secularização do Estado, constatando-se a total separação do Estado e a Igreja em 1911, através do Decreto de 20 de Abril203.

Na opinião de Adérito Tavares, «a República apresentava-se como o único caminho para um verdadeiro ressurgimento do país, acentuando no seu ideário as vertentes nacionalista, colonialista e anticlerical»204. A nação deveria reerguer-se com vista à recuperação do

“esplendor de Portugal”.

No cumprimento das promessas do partido republicano constava a publicação de legislação direcionada à laicização da sociedade portuguesa. Com efeito, destaca-se uma medida relevante – um diploma legislativo - o Decreto nº1 de 26 de Maio de 1911, que irá dividir o país em três jurisdições: uma no Porto (representando o Norte), outra em Coimbra (desempenhando o Centro) e por fim outra em Lisboa (alusiva ao Sul), as quais eram administradas por um Conselho de Arte e Arqueologia respectivamente, em cada uma delas, a quem passavam a ficar subordinados os museus de cada zona, embora sob a superintendência da Direcção-Geral de Instrução Secundária, Superior e Especial205.

203 Vd. CUSTÓDIO, Jorge – Renascença Artística e Práticas de Conservação e Restauro Arquitectónico em

Portugal, Durante a I República: Fundamentos e Antecedentes. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012.

204 TAVARES, Adérito – A revolução republicana de 1910. In CARNEIRO, Roberto (coord.) – Memória de

Portugal: O milénio Português. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 492.

205 GOUVEIA, Henrique Coutinho – Acerca do conceito e evolução dos museus regionais portugueses desde

finais do século XIX ao regime do Estado Novo. In Bibliotecas arquivos e museus. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural, 1985, p. 163.

Na sequência desta nova lei foram criados diversos museus, num total de treze, entre o intervalo temporal que medeia 1912 e 1924, tendo estes sido classificados como «museus regionais». Os museus instituídos são: o Museu de Aveiro (1912), o Museu de Évora (1915), o Museu de Faro (1915), o Museu de Bragança (1915), o Museu de Viseu (1916), o Museu de Lamego (1917), o Museu de Leiria (1917), o Museu de Beja (1917), o Museu de Braga (1918), o Museu de Tomar (1919), o Museu de Abrantes (1921), o Museu de Chaves (1922), e por fim o Museu de Vila Real (1924)206.

O conceito de museu regional, cuja realidade temática se cingia na maior parte dos casos à arte, arqueologia e numismática, parecia para muitos intelectuais um conceito redutor, no início da segunda década do século XX 207. Porém em 1926, quando se dá a queda do regime

republicano o sistema museológico já se encontrava bem definido, assentando num discurso descentralizado e regionalista; privilegia-se a utilização de edifícios existentes em detrimento da edificação de novas estruturas arquitectónicas; face às restrições dos espaços expositivos os métodos de exposição temporários assumem protagonismo; o desenvolvimento deste sistema estava muito sujeito à burguesia e classes abastadas.

Com a entrada do período Pré-Estado Novo verifica-se uma continuidade ténue das políticas que vinham a ser adoptadas.

Antes mesmo de tomar formalmente o poder em 1932, Salazar já tinha vinculado a sua autoria a uma trama reconstrutiva que se estendera sobre território nacional. A intenção era, obviamente, esconjorar a “desordem” instituída, o “caos” económico e social e a “perda” de uma entidade agluitinadora. Um programa restaurador foi então fixado e as operações de reconstituição começaram a dar corpo à ideia208.

Face ao despesismo em que muitos dos monumentos históricos se encontravam nesta época era imperioso a tomada de medidas que revertessem este flagelo e que corroborassem os

206 Ibidem, p. 165.

207 O pedagogo Álvaro Viana de Lemos é uma das figuras que defende uma multiplicidade de funções para o

Museu Regional.

princípios aclamados de valorização do património cultural e ajudassem «a sedimentar uma memória colectiva»209. A resposta é dada a 30 de Abril de 1929 através da criação da Direcção-

Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, ao abrigo do Decreto nº16791. Esta instituição estatal, gerida sob a tutela do Ministério das Obras Públicas, irá ter um importante papel ao nível da componente ideológica, da conservação, restauro e preservação do património nacional210. A concepção de museu vai-se moldar à nova realidade sem que haja uma revolução

deste domínio. A grande mudança ocorre com a promulgação do Decreto-Lei n.º 20985, de 7 de Março de 1932211. Trata-se do primeiro documento em Portugal dedicado à problemática da

museologia, tendo ficado conhecido por “Carta Orgânica dos Museus”212. Apesar da “Carta

Orgânica dos Museus” de certa forma não ser muito inovadora, já que seguia a estrutura legislativa semelhante à do Regime Republicano, demarca-se pela atribuição de um estatuto para museu regional, embora seja omisso na definição deste tipo de museus e no conteúdo dos mesmos. Esta legislação determina a extinção dos três Conselhos de Arte e Arqueologia (Porto, Coimbra e Lisboa). Acompanhando o fenómeno do corporativismo da época, o Estado impele para a sociedade civil a responsabilidade da salvaguarda do património, incitando à formação de uma “rede de elementos corporativos”, devendo para tal serem criadas Comissões Municipais de Arte e Arqueologia, nas localidades interessadas no seu legado cultural213. É

constituída uma rede de museus que ainda hoje vigora214. O decreto estabelece três categorias

de museus: Nacionais, Regionais e Municipais, reconhecendo a existência de três Museus Nacionais (Museu de Arte Antiga, Museu de Arte Contemporânea e Museu dos Coches, todos eles localizados em Lisboa); seis museus de carácter de museu regional, aos quais lhe atribui enquadramento legal e financeiro a saber: Museu Regional de Bragança; Museu de Lamego;

209 Ibidem.

210 Vd. NETO, Maria João Quintas Lopes Baptista – A Direcção Geral dos Edifícios Nacionais e a Intervenção

no Património Arquitectónico em Portugal (1929-1960). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,

1995. 2 Volumes. Tese de Doutoramento em História da Arte.

211 PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 20985, de 7 de Março de 1932. In Diário do Governo. I Série, N.º 56.

212 Esta denominação foi atribuída pelo Dr. João Couto. Vd. GOUVEIA, Henrique Coutinho – Acerca do conceito

e evolução dos museus regionais portugueses desde finais do século XIX ao regime do Estado Novo. In Bibliotecas

arquivos e museus. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural, 1985, p. 172.

213 O território fica pulverizado de comissões, tratando-se de uma medida que vai ainda mais longe na noção de

descentralização, iniciada pelos Republicanos em 1911.

Museu de Aveiro; Museu Grão Vasco em Viseu; Museu Machado de Castro em Coimbra, e o Museu Regional de Évora. Quanto aos Museus Municipais, estes não foram especificados. As directrizes da “Carta Orgânica dos Museus” vão suscitar um novo ímpeto na discussão do estado da museologia em Portugal.

As correntes ideológicas do regime do Estado Novo no âmbito da estratégia político- cultural têm por base uma política descentralizadora, direcionada a acentuar a diversidade, em termos etnográficos, apesar de apelar à unidade215. Destaca-se neste contexto a figura de

António Ferro216, director do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), em 1933, apesar da

sua “campanha de modernidade” como denomina Fernando Guedes217. Recorde-se que o

defensor de uma Política do Espírito havia entrevistado Salazar em Dezembro de 1932, com o intento de esclarecer a opinião pública sobre aspectos ignorados ou não abordados sobre o antigo Ministro das Finanças e à data Chefe de Estado, incluindo o “problema da arte, das ciências e das letras”218.

215 Vd. MELO, Daniel – A cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus Novus, 2010; MELO, Daniel –

Salazarismo e cultura popular. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2001.

216 Veja-se as palavras introdutórias do livro de Orlando Raimundo, “António Ferro: O inventor do Salazarismo”,

que afirma que «não se pode entender o Estado Novo em toda a sua dimensão e profundidade, e muito menos a singularidade do regime autoritário português, sem conhecer António Ferro» (RAIMUNDO, Orlando – António

Ferro: O inventor do Salazarismo. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015. Vd. ACCIAIUOLI, Margarida – António Ferro: A vertigem da palavra, Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo. Lisboa: Editora Bizâncio,

2013.

217 GUEDES, Fernando – Estudos sobre artes plásticas: Os anos 40 em Portugal e outros estudos. Lisboa:

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 15.

218 Com a denominação de Política do Espírito, salientamos algumas passagens da entrevista que alude à

problemática supracitada: [Ferro] «Todos os grandes chefes, grandes condutores de povos assim o fizeram. Desde os Médicis a Mossolini, desde Francisco I a Napoleão, as artes e as letras sempre foram consideradas como instrumentos indispensaveis à elevação dum povo e ao esplendor duma epoca. É que a arte, a literatura e a ciencia, constituem a grande fachada duma nacionalidade, o que se vê lá de fora… Portugal – triste é dizê-lo – essa Política do Espirito, que já foi seguida por alguns reis e por alguns estadistas portugueses, tem sido abandonada lamentavelmente pelos poderes publicos neste ultimos cinquenta anos». (….). [Salazar]: «- Está na verdade, na triste verdade. É um problema que sentimos, igualmente, a necessidade de atacar de frente, porque os meios, só se elevam, só se iluminam, como o senhor disse no seu elogio “Política do Espírito”, através das artes e das ciencias. Mas não se esqueça que só agora as circunstâncias do País nos permitem começar a pensar nesses problemas. Não se esqueça do atraso em que nos encontravamos no capítulo de certas necessidades fundamentais que estavam mesmo antes do culto da arte, se bem que a beleza seja alimento indispensável ao espitito. Como queria que eu encomendasse para os palacios nacionais uma estátua ou um quadro, se nalguns chovia como na rua, quando tomei conta do Ministério das Finanças? Os problemas têm que ser seriados e resolvidos pela sua ordem. É ridículo

Uma das principais iniciativas do Secretariado da Propaganda Nacional foi a realização da Exposição do Mundo Português que teve lugar em Lisboa, em 1940219. Esta exposição foi

cogitada inicialmente para ser de âmbito internacional, porém teve de ser reformulada face ao eclodir da 2ª Grande Guerra Mundial220. O ano em questão não foi eleito ao acaso, já que se

comemoravam os 800 anos da independência do Estado Português (1140), e os 300 anos da restauração da independência, finalizados os 60 anos de ocupação espanhola (1640). Muito embora esta exposição tivesse influências das Grandes Exposições, ela iria diferir por se tratar de uma exposição histórica, pretendendo de uma forma deliberada efectuar uma exaltação do passado e ainda por renunciar ao carácter internacional221.

A Exposição do Mundo Português, realizada na zona de Belém, em Lisboa, estava organizada em três grandes secções: a de História, a de Etnografia e a Colonial. A secção histórica ocupava uma zona de notoriedade abarcando oito pavilhões, apesar de ser pouco inovadora, tanto em termos arquitectónicos como no método expositivo selecionado. Em contrapartida a secção de etnográfica e a secção colonial, alcançaram uma concepção mais reformadora. A secção etnográfica, composta por uma multiplicidade de recintos foi organizada, tendo como principal objectivo a promoção da unidade nacional por meio da diversidade cultural. Esta secção acabaria por funcionar como laboratório experimental sobre as directrizes a seguir sobre o conceito de museu regional em Portugal.

Na sequência desta exposição são criados três museus: o Museu de Arte Popular de Lisboa, o Museu de Etnografia e História da Província do Douro Litoral, no Porto, e o Museu José Malhoa nas Caldas da Rainha.

mandar vestir um casaco a um homem que não tem camisa…» (FERRO, António – Salazar: O homem e a sua obra. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1933,pp. 86-88.).

219 Vd. ACCIAIUOLI, Margarida – Exposições do Estado Novo: 1934 – 1949. Lisboa: Livros Horizonte, 1998,

pp. 11-37.; PEREIRA, Paulo – Arte Portuguesa: História Essencial. Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2011, pp. 806-813; Vd. FRANÇA, José-Augusto – A arte em Portugal no século XX -1911-1961. 4ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 2009, pp. 135-157.; Vd. SOARES, Luís; BAIÃO, Joana; OLIVEIRA, Leonor - Fontes para a história dos museus de arte em Portugal: Um projeto, muitos projetos… MIDAS, Museus e Estudos

Interdisciplinares. Nº 2 (2013). [Consulta: 28.08.2015]. Http://midas.revues.org/272

220 Esta exposição terá sido idealizada por Oliveira Salazar dois anos antes, portanto em 1938. 221 O único país estrangeiro que participou foi o Brasil.

As diversas actividades museológicas desencadeadas para celebrar as Comemorações dos Centenários que ocorreram em praticamente todo o território deram um grande ímpeto ao panorama museológico nacional, apesar de uma certa idealização do mundo rural, já que tal como defende Henrique Gouveia, se assiste nessa época à defesa de um movimento de criação de museus regionais de etnografia, englobando a componente de história, o que parece culminar um processo gradual de afirmação desta ciência no sector museológico, que tinham por base uma acção dedicada à preservação e revivescência da cultura tradicional222.

Neste período convém realçar a construção da Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian223, entre 1959-1969. Este complexo cultural demarca-se, na opinião de Ana

Tostões224, porque «pela primeira vez, de raiz, se assistia à definição de um programa

museológico concreto destinado a reunir em Lisboa as obras de arte» de Calouste Gulbenkian. As estruturas expositivas, o tipo de narração, o modo de comunicação com o público e não menos importante a imagem arquitectónica do museu simbolizaram um dado novo no cenário museológico português.

Destaca-se ainda nesta fase a criação da Associação Portuguesa de Museologia (APOM). Segundo António Nabais:

[…] a APOM a partir de 1965, data da sua fundação, apresentou-se como um grande fórum museológico, onde os profissionais de museologia podiam reflectir e debater as diferentes temáticas da museologia e da museografia. Foi neste ambiente de estudo e de reflexão sobre as

222 GOUVEIA, Henrique Coutinho – Acerca do conceito e evolução dos museus regionais portugueses desde

finais do século XIX ao regime do Estado Novo. In Bibliotecas arquivos e museus. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural, 1985, pp. 174-175.

223 Evidencia-se a figura de Calouste Gulbenkian - o colecionador, cuja vasta e valiosíssima colecção era composta

de obras de excepcional qualidade. Vd. PERDIGÃO, José de Azeredo – Calouste Gulbenkian: Coleccionador. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.

224 TOSTÕES, Ana – O museu como programa na arquitectura contemporânea. Espaço de prazer, lugar de

memória. RdM [monografías], Museus y museología en Portugal: Una ruta ibérica para el futuro. Madrid: Associación Española de Museólogos. 0I (2000), p. 130.

questões museológicas, que F. Bragança Gil também ajudou a construir um novo conceito de museu, novas práticas museológicas e novos museus225.