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As dimensões da permanência nas universidades brasileiras pós-ações afirmativas

3 RETROSPECTIVA E PANORAMA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

3.3 AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL

3.3.4 As dimensões da permanência nas universidades brasileiras pós-ações afirmativas

Mesmo ainda não sendo acessível a todos, a educação superior brasileira vive um período de expansão do setor público – em consequência da ampliação das redes das universidades federais e das instituições de educação profissional e tecnológica– e igualmente de reforma, ensaiando sua democratização, graças ao Reuni. Nesta seção, serão discutidos conceitos importantes para o momento vivido atualmente pelas instituições de educação superior, pela pressão que sofrem dos movimentos sociais e sociedade civil, para a inclusão de estudantes de origem popular. Esta demanda fez emergir uma nova preocupação na agenda das universidades: a permanência dos estudantes na educação superior.

A implantação do sistema de cotas para o ingresso nas universidades não deve ser o único mecanismo para a superação das desigualdades raciais no Brasil, seja na educação ou em qualquer outra área. Para além das cotas, é necessário criar condições para que os estudantes permaneçam e concluam com êxito sua formação, materializando a equidade no ensino superior. Para isso, é necessária a adoção de políticas públicas efetivas e articuladas que assegurem a expansão das vagas, a inclusão e a permanência de estudantes pertencentes aos grupos excluídos. As diferenças não serão erradicadas pela igualdade de direitos, mas pela promoção de direitos negados a grupos marginalizados da sociedade.

Segundo Weisskopf (2004), um indicador de sucesso ou fracasso de uma política de ações afirmativas no ensino superior é a relação entre o número de estudantes, pertencentes aos grupos priorizados pela política, que concluem com sucesso sua formação. Para esse autor, os seguintes fatores são decisivos para o sucesso de uma política de ações afirmativas: definição dos grupos beneficiários, nível de seletividade do processo de admissão e a extensão do suporte institucional aos beneficiários admitidos pela política.

Observa-se que a dimensão material tem sido priorizada nos programas de governo para permanência dos estudantes nas universidades públicas. Foi instituído pela Portaria Normativa MEC n. 39/2007 e regulamentado pelo Decreto n. 7.234/2010, o PNAES que tem como objetivo democratizar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública. Pretende-se, com o Plano, reduzir as taxas de retenção52 e evasão53 por meio de assistência a estudantes de graduação presencial, com ações nas áreas de alimentação, transporte, moradia estudantil, assistência à saúde, creche, apoio pedagógico, entre outras. Segundo o Ministério da Educação, somente em 2010 foram beneficiados mais de 734 mil estudantes, com mais de 300 milhões de reais investidos no Programa (BRASIL, 2011). A Figura 6, a seguir, demonstra a evolução dos recursos investidos e benefícios do PNAES.

Figura 6 – Recursos investidos e número de benefícios do PNAES, no período de 2008 a 2010, Brasil

Fonte: BRASIL, 2011.

Entretanto, considera-se que a permanência no espaço universitário extrapola a ajuda financeira destinada aos estudantes de origem popular, existindo outra dimensão além daquela material. Santos (2009, p. 68) conceitua a permanência como “[...] ato de durar no tempo que deve possibilitar não só a constância do indivíduo, como também a possibilidade de transformação e existência”. Para essa autora, a permanência na universidade possui a dimensão material – que se refere às condições concretas e financeiras que permitem a sua sobrevivência na universidade; e a dimensão simbólica – relacionada ao pertencimento do estudante a um grupo que o reconhece como membro. Essa compreensão tem apoio em Dias Sobrinho, (2005b) que afirma ser imprescindível que a educação superior produza conhecimentos e formação com um grande sentido de pertinência social, sem abdicar de suas

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Taxa de Retenção – indica o percentual de estudantes que, apesar de esgotado o prazo máximo de integralização curricular, não concluiu o curso e que ainda estão matriculados na universidade (BRASIL, 1997).

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competências críticas, desenvolvendo a capacidade de resposta às demandas e às carências da sociedade. A pertinência requer autonomia para priorizar o que é necessário e solicitado pela sociedade às instituições.

Para compreender o pertencimento no ensino superior é imprescindível refletir sobre a produção de sentido dentro da universidade e de como se estabelecem as relações e a comunicação entre atores com habilidades, capacidades e necessidades diferentes em um espaço constituído para a elite. “A produção de sentidos emerge das trocas com o ‘outro’, consigo mesmo e com tudo o mais que nos rodeia” (MENEGON, 2006, p. 62, grifo da autora). A permanência deve ser pensada também através de incentivo de práticas que estimulem a vivência deste espaço desconhecido para a maioria dos indivíduos, com novos valores, regras e linguagens, compreendendo que a vivência acadêmica extrapola o universo da sala de aula e das atividades obrigatórias. Assim, novas práticas precisam ser desenvolvidas para que os novos estudantes desenvolvam estratégias para dar conta das exigências que a experiência universitária exige deles.

Mas é importante sublinhar que, independente do estrato social de origem, os recém- ingressos na educação superior desconhecem o mundo universitário e enfrentam um período inicial de estranhamento e adaptação. O estranhamento é natural, pois o universo da educação superior é muito diferente daquele da educação básica, e ocorre em função do novo estudante não dominar os códigos que regem a vida acadêmica.

Para Paivandi (2012), aprender na universidade possui um sentido muito diferente daquele da educação básica. Nesta última, predomina a lógica de acumulação de conteúdos diferentes e desconectados, uma abordagem passiva dos estudantes em relação à aprendizagem, ancorada na memorização e objetivando obtenção de sucessos em seus exames. Nesta fase, o aprendizado estaria associado ao prazer de outras pessoas – pais e professores. Já na universidade, a abordagem deve fomentar a educação intelectual, estimulando a prática do espírito crítico e desenvolvimento mais personalizado, sendo desejável que o estudante tenha uma participação ativa: ele precisa aprender a exprimir e defender sua opinião, escrever, explorar, questionar, comentar e duvidar.

Além disso, Paivandi (2012) afirma que o recém-chegado deverá se aproximar do campo semântico de um determinado domínio, aprender a linguagem científica, identificar, selecionar, sintetizar, estabelecer relações e problematizar as informações recebidas. Declara também que o estudante deve, igualmente, atribuir um sentido à sua aprendizagem, fato diretamente relacionado com o seu projeto pessoal, intelectual e profissional. Cabe a ele estabelecer conexões entre os saberes acadêmicos, seus conhecimentos anteriores e a sua

própria história de vida; ou seja, é imprescindível apropriar-se de uma nova linguagem (PAIVANDI, 2012). Essa apropriação assume um papel determinante no processo de produção de sentidos e na permanência deste novo estudante.

Coulon (2008) define a afiliação como um processo de aprender a ler a universidade e aprender a ser um membro dela. Para esse autor, ser membro é possuir um mesmo repertório de temas, modo de falar, que só faz sentido para o grupo ao qual o sujeito pertence. Afiliação tem um sentido muito próximo ao do pertencimento. Ser membro não é, simplesmente, fazer parte de uma associação/organização, ser membro é compartilhar a mesma linguagem de um grupo e adotar uma “atitude natural” frente às exigências e tarefas de um dado ambiente. Este conceito de afiliação é muito pertinente para o momento que atravessa a educação superior brasileira, tanto do ponto de vista individual e institucional, quanto político, pois, procura descrever os processos e etapas que os estudantes universitários percorrem em sua trajetória acadêmica.

Aprender o ofício de estudante é a primeira tarefa que o estudante deve realizar quando entra na universidade (COULON, 2008). É necessário aprender a se tornar um membro deste novo grupo, para não ser eliminado ou se autoeliminar. O autor afirma que o primeiro ano é decisivo para a afiliação. Para Coulon (2008) o ingresso de estudantes no ensino superior é caracterizado por três fases distintas: a primeira fase é a do estranhamento, onde o estudante se depara com um universo novo, bem diferente do que estava acostumado no ensino médio. A segunda fase é a da aprendizagem, caracterizada pelas adaptações e acomodações progressivas. Por fim é o tempo da afiliação, onde o aluno já internalizou as regras e normas e aprendeu o novo ofício de estudante universitário, cumprindo as regras e prazos definidos pela instituição. A afiliação deve ser realizada tanto no âmbito intelectual como no institucional. A afiliação intelectual é compreendida como o atendimento das exigências acadêmicas em termos de conteúdos e métodos de exposição do conhecimento. A afiliação institucional é definida por Coulon (2008) como o cumprimento de rotinas e prazos no ambiente acadêmico, corresponde ao aprendizado das regras e práticas diárias da universidade, significa aprender a jogar o jogo, o que possibilita ao estudante definir táticas para não ser eliminado do ensino superior.

O conceito de afiliação, proposto por Coulon (2008), procura descrever os processos e etapas que os estudantes universitários percorrem em sua trajetória acadêmica sendo útil para compreender os mecanismos que levam um estudante ao fracasso. Para esse autor, fracassam os estudantes que não se afiliam. Hoje, o fracasso na vida acadêmica está associado ao

desperdício do dinheiro público, pois as universidades são mantidas pelo Estado brasileiro de maneira direta (universidades públicas) ou indireta (universidades privadas).

A convergência dos conceitos de afiliação e de aprendizado no ambiente universitário defendida por Paivandi (2012) sugere que a permanência de estudantes nas universidades vai além da ajuda financeira destinada aos estudantes de origem popular. Esta dimensão não material da permanência está ainda para ser contemplada no planejamento estratégico e pedagógico das universidades. Apreender a linguagem acadêmica é muito mais do que utilizar os conceitos e estilos sistematizados nas diversas áreas do conhecimento, significa aprender a jogar o jogo da vida universitária, conhecer suas rotinas, regras e práticas para sobreviver no ensino superior.

As instituições de ensino superior podem desenvolver ações com o objetivo de favorecer a convivência entre sujeitos heterogêneos e diminuir o tempo de estranhamento e a eventual evasão de estudantes nas universidades, espaço desconhecido para a maioria, com novos valores, regras e linguagens. Ações de divulgação do funcionamento das bibliotecas, do serviço médico, dos setores administrativos e acadêmico podem ser incluídas na agenda destas instituições, assim como a oferta generalizada de cursos de proficiência em língua estrangeira e de interpretação e elaboração de textos científicos.

As políticas de ações afirmativas têm como principal desafio a superação das relações de opressão que se estabeleceram, e foram reproduzidas, ao longo dos anos, através dos mitos e expressões depreciativas e preconceituosas que adentraram a estrutura de grande parte da sociedade brasileira.

O aumento da participação de sujeitos pertencentes aos segmentos excluídos e discriminados traz para o interior da universidade as lutas e conflitos de valores e as diversas vozes da sociedade brasileira. Elaborar políticas institucionais que promovam a discussão dessas desigualdades e, principalmente, a integração desses novos sujeitos da educação, contribui para legitimar a instituição universitária como espaço de produção de conhecimento necessário para a sociedade brasileira superar suas históricas desigualdades.