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3 RETROSPECTIVA E PANORAMA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

3.1 A ORIGEM DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Em consequência dos avanços das conquistas dos direitos humanos nas sociedades, surge o princípio de equidade19 diretamente relacionado ao reconhecimento dos direitos das minorias e ao respeito à diversidade. Segundo Skrentny (1996) o conceito de equidade surgiu na Inglaterra para amenizar a dureza do sistema de leis comuns (common laws). Escorel (2009) afirma que a equidade introduz o conceito de diferença no espaço público, local instituído ao longo da história pelo princípio da igualdade e o reconhecimento da diferença provocou um conflito com os princípios jurídicos clássicos que construíram o conceito da cidadania20 como indiferenciada e comum. Para essa autora, as sociedades pós-Segunda Guerra, do Primeiro Mundo, construíram o modelo Estado Social – conhecido como de Bem- Estar Social – que concretizou a noção de universalidade da cidadania e de responsabilidade social do Estado. A ideia de equidade substituiu, na contemporaneidade, o conceito de igualdade21 (ESCOREL, 2009). Atualmente, o padrão almejado para a sociedade é o padrão equânime (SPOSATI, 1999).

A concepção de ações afirmativas é proveniente do conceito de equidade e fundamenta-se nos princípios de igualdade e proporcionalidade (SKRENTNY, 1996). A teoria da justiça distributiva fundamenta-se na possibilidade de fornecer tratamento igual para

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A equidade leva em consideração que as pessoas são diferentes e tem necessidades diversas. Este conceito estabelece um parâmetro de distribuição heterogêneo de bens e serviços (ESCOREL, 2009).

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A cidadania é uma construção lenta da garantia dos direitos (civis, legais, políticos e sociais) pela população e atualmente é um valor coletivo (CARVALHO, 1992). Marshall (1967) procurou conciliar o conceito de igualdade formal com as desigualdades provocadas pelo sistema de classes sociais.

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Igualdade significa uma distribuição homogênea, distribui bens e serviços na mesma quantidade para todos (ESCOREL, 2009).

iguais e desigual para desiguais. Ela objetiva resolver as questões de desigualdades verificadas na contemporaneidade. John Rawls é um dos grandes defensores desta teoria, e sustenta que uma decisão é ética se conduz a uma distribuição equitativa das oportunidades, bens e serviços, sendo necessário definir um método justo para sua repartição (ESCOREL, 2009).

O conceito de igualdade regula a sociedade democrática contemporânea e transformou-se em uma exigência moral no tratamento entre todos os cidadãos. As sociedades democráticas reconhecem que cada indivíduo possui um conjunto de direitos que precisam ser respeitados. Segundo D´Adesky (2003), a dificuldade das sociedades democráticas em concretizar a igualdade nos seus sistemas jurídicos e sociais revela a importância da noção de igualdade de oportunidades. A percepção de que as oportunidades de um indivíduo dependem, também, do pertencimento social e comunitário, fomentou a adoção de medidas em benefício de grupos em desvantagens nas sociedades. Para este autor, em decorrência da compreensão de que a igualdade concreta se realiza através de ações que levem em consideração as especificidades dos membros pertencentes aos grupos minoritários, foi possível a adoção de programas de ações afirmativas. Dessa maneira, o princípio da igualdade deu lugar à noção de equidade e conferiu à justiça social uma concepção baseada na igualdade de oportunidade, fomentando a adoção de políticas públicas que objetivam compensar e/ou reduzir as desvantagens construídas por motivos raciais, étnicos, religiosos, etc.

Os programas de ações afirmativas fundamentam-se nos princípios de igualdade e proporcionalidade e objetivam garantir a equidade, diminuindo ou abrandando as desigualdades sociais que determinam e diferenciam as oportunidades de acesso de determinados grupos à educação, trabalho (RAWLS, 1997). O conceito de ação afirmativa representa a ideia de compensar, no presente, determinados segmentos sociais pelos obstáculos que seus membros enfrentam, por motivo da discriminação e marginalização no passado. Para Coêlho (2004), as ações afirmativas têm como objetivos a concretização da equidade e oferta de oportunidades iguais e meios para o desenvolvimento social, fio condutor de toda a sociedade democrática, além da neutralização dos efeitos das discriminações historicamente construídas nas sociedades. Para Sen (2000) o desenvolvimento é percebido como um processo de eliminação de privações que limitam escolhas e oportunidades dos indivíduos, uma perspectiva diferente da relacionada ao aumento do Produto Nacional Bruto (PNB). Anhaia (2013) afirma que a tentativa de prover ações de redistribuição de oportunidades não é livre de controvérsias.

Para o jurista Joaquim Barbosa Gomes, as ações afirmativas correspondem a um conjunto de políticas públicas e privadas, de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, que visam combater a discriminação racial, de gênero e de origem nacional em todas as esferas da vida pública. Elas têm por finalidade efetivar a igualdade de acesso à educação e ao emprego e representam uma mudança de postura, concepção e estratégia do Estado, da universidade e do mercado de trabalho (GOMES, 2001).

As principais justificativas para adoção de políticas de ações afirmativas são: reparação, justiça distributiva e diversidade (FERES JÚNIOR, 2005). Percebe-se a perspectiva de reparação pela necessidade de ressarcir os danos causados, tanto pelo poder público, quanto por pessoas físicas ou jurídicas, a determinados grupos sociais. Sob a perspectiva de justiça distributiva, as políticas de ações afirmativas tentam promover uma igualdade proporcional, na distribuição de direitos, privilégios e ônus entre sujeitos, através de práticas que favorecem uma maior participação de determinados grupos (negros e mulheres, por exemplo) em posições estratégicas no mercado de trabalho e na educação, com o objetivo de reduzir ou eliminar as desigualdades sociais relacionadas com a divisão do poder e da riqueza (GOMES, 2001; MENEZES, 2001). Além da promoção da justiça, as ações afirmativas fortalecem o senso de autovalor e modelos para as minorias e asseguram a diversidade e a pluralidade social. Segundo Piovesan (2005) as ações afirmativas valorizam o direito à igualdade, ancorada no respeito à diferença e à diversidade e materializam o direito formal definido pela declaração dos Direitos Humanos.

As ideias que permeiam o conceito de ações afirmativas circulam no mundo há muito tempo. Essas políticas foram adotadas em países caracterizados pelo multiculturalismo em sua composição populacional, onde grupos minoritários apresentam uma longa história de exclusão social. A Índia foi o primeiro país a adotar políticas de ações afirmativas, embora não tenha utilizado explicitamente essa denominação. As práticas de discriminação positiva ou ações afirmativas são construídas, gradualmente, em cada país e estão diretamente relacionadas com a construção política e socioeconômica da nação. É perceptível a importância do poder Judiciário dos países que adotam políticas de ações afirmativas na definição do formato, implementação e interpretação da constitucionalidade das diversas práticas em cada país.

As sociedades contemporâneas democráticas caracterizam-se pela diversidade em sua composição populacional, fato que favorece a identificação de diversos grupos como candidatos elegíveis para uma política de ações afirmativas. Observa-se que essas políticas são normalmente destinadas a membros de um grupo identitário, em situação de desvantagem

e subrepresentados nos estratos econômicos mais elevados da sociedade (WEISSKOPF, 2004). Seus membros são reconhecidos através de características físicas ou culturais, involuntárias, determinadas pelo nascimento e normalmente inalteráveis como “raça”22, casta, tribo, etnicidade e gênero.

A proposição de programas de ações afirmativas é balizada em pesquisas realizadas com o objetivo de investigar a condição social de um determinado grupo da população, diagnosticando a desigualdade socioeconômica e/ou cultural desta parcela para se estabelecer uma proposta que atenda às suas necessidades de inclusão em todos os aspectos relevantes ao exercício da cidadania, como o trabalho digno e a educação formal de qualidade. Weisskopf (2004) afirma que o recorte étnico-racial não é concorrente do critério de desigualdade socioeconômica e pode promover a superação dos obstáculos que impediram a mobilidade social desses grupos, estigmatizados e discriminados negativamente, possibilitando uma redistribuição equitativa dos recursos sociais.

O termo “ações afirmativas” começou a ganhar visibilidade nos anos sessenta, do século XX, graças a sua ampla utilização nas políticas públicas adotadas nos EUA com o objetivo de promover, para a população negra, a igualdade de oportunidade no emprego e na educação, através do estabelecimento de metas e estratégias com o objetivo de provocar o aumento do número de negros nas instituições públicas ou privadas. Segundo D’Adesky a experiência norte-americana de affirmative action tornou-se modelo para as democracias ocidentais, embora essas políticas não se limitaram aos países ocidentais.

A seguir descrevemos, de forma sucinta, as principais características das políticas de ações afirmativas nos EUA, país com uma longa e violenta história de discriminação e segregação racial legalizada. Os EUA e o Brasil possuem algumas semelhanças históricas na gênese da formação de suas sociedades: ambos foram colonizados por países que subjugaram os povos indígenas, posteriormente escravizaram os africanos e no final do século XIX e início do século XX receberam imigrantes europeus, para atender às demandas de industrialização. Apesar das diferenças políticas, econômicas, culturais, e dos sistemas raciais entre esses dois países, analisar as motivações, formatos e consequências da adoção de ações afirmativas nos EUA pode contribuir para a compreensão da implantação dessas práticas no Brasil, pois os objetivos, acertos e oposições à adoção das políticas norte-americanas podem

22 Neste contexto, o termo “raça” não tem vinculação com nenhum conceito biológico científico nem genético.

ser estendidos ao nosso país, resguardando as especificidades das relações raciais23 em cada uma dessas culturas.

3.2 IMPLANTAÇÃO, FORMATO E CONSEQUÊNCIAS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS