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3 RETROSPECTIVA E PANORAMA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

3.2 IMPLANTAÇÃO, FORMATO E CONSEQUÊNCIAS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NOS EUA

Os Estados Unidos da América (EUA) criaram um sistema formal de segregação racial com leis antimiscigenação e práticas de discriminação residencial conhecido como sistema Jim Crow24. A segregação foi a base da ideologia de dominação racial nos Estados Unidos da América até antes da reforma dos direitos civis. Villas-Bôas (2003) afirma que a sociedade norte-americana foi um cenário propício para as ações afirmativas em função da valorização do princípio democrático da igualdade de oportunidades e pela histórica segregação racial no país.

As ações afirmativas norte-americanas surgiram após a Segunda Guerra Mundial no momento em que os Estados se colocaram como interventores na organização socioeconômica da sociedade e priorizaram recursos para programas assistenciais e compensatórios, com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais e raciais (MARTINS, 1996). Segundo Moehlecke (2000), as políticas de ações afirmativas surgem no momento em que se estabelece um relativo consenso em torno da necessidade de uma postura mais ativa para combater a discriminação racial norte americana e ampliar a oferta de oportunidades para os excluídos. Essa autora elenca os seguintes fatores como fomentadores da adoção de políticas de ações afirmativas nos EUA: crescimento econômico após a Segunda Guerra Mundial e o aumento das tensões raciais; organização do movimento negro denunciando e pressionando internacionalmente; a Guerra Fria e a ameaça comunista com uma severa crítica ao modelo capitalista democrático americano em relação a incapacidade de inclusão da população negra.

Em meados dos anos 60, a percepção de que leis antidiscriminatórias eram insuficientes para combater os efeitos da histórica discriminação na sociedade norte- americana, possibilitou a adoção de políticas de ação afirmativa nos EUA com o objetivo de amenizar e prevenir futuras discriminações (HERINGER, 2001).

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“Relações que existem entre indivíduos conscientes de diferenças raciais” (PARK, 2000 apud TELLES, 2004, p. 17).

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Termo utilizado nos EUA para identificar uma pessoa negra. O termo “Jim Crow” era refrão de uma música popular sobre o negro “Whell about and turn about and jump Jim Crow” (MOEHLECKE, 2000).

Segundo Peria (2004), a política federal de ações afirmativas dos Estados Unidos foi articulada, nos anos sessenta e setenta, na administração do presidente Lyndon Johnson, pelas Cortes e agências administrativas de direitos civis, através da utilização de discursos e práticas administrativas que proibiam a discriminação e promoviam a igualdade de oportunidade para as minorias – negros, mexicanos-americanos, latino-americanos e mulheres – no mercado de trabalho, na educação, e em outras instituições públicas e privadas. O objetivo inicial das ações afirmativas norte-americanas foi o de proteger a população negra, porém, a Ordem Executiva de n. 11246 ampliou oficialmente a proteção para grupos minoritários da sociedade americana (SOARES, 2007). As ações afirmativas norte- americanas são implementadas como políticas de seleção preferencial, onde os candidatos auto identificados como pertencentes às minorias, competem com candidatos não elegíveis à discriminação positiva.

A associação da política de ações afirmativas americanas a metas numéricas e percentuais mínimos de contratação de grupos minoritários e posteriormente ao sistema de cotas ocorreu a partir do governo do presidente Richard Nixon, com a reelaboração do Plano Philadelphia (MOEHLECKE, 2000). Segundo Peria (2004), foram estabelecidas metas numéricas e cronogramas flexíveis25 para a inclusão de mulheres e minorias nas empresas contratadas pelo governo federal, baseadas na proporção entre a quantidade populacional da minoria nas cidades e o contingente desse mesmo grupo no mercado de trabalho. Haper e Reskin (2005) fazem uma crítica ao sistema de cotas afirmando que ele pode favorecer pessoas que não necessitariam desta priorização. Para esses autores, a política de cotas não alcançaria os objetivos esperados nos casos dos indivíduos com menor desvantagem em cada grupo.

Para Silva (1994), as ações afirmativas americanas se desenvolveram sob quatro vertentes: a conscientização da sociedade americana sobre a necessidade de inclusão social da população negra; o estabelecimento de apoio financeiro do Governo Federal aos estados, municípios, instituições educacionais e empresas privadas objetivando a promoção social da população negra; o estabelecimento de percentuais proporcionais representativos da população negra no acesso ao trabalho, escolas e universidades; e a quarta, foi a concessão de financiamento para empresários negros e outras minorias, visando construir uma classe média composta por estes grupos.

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O Gabinete de Fiscalização de Contratos com o Governo Federal (OFCC) foi órgão responsável por estabelecer metas e cronogramas na contratação de negros e mulheres no serviço público. A EEOC (Equal Employment Opportunity Comission) se responsabilizou pelo setor privado.

Soares (2007) afirma que a implementação das ações afirmativas americanas voltadas para o mercado de trabalho ocorreu de maneira distinta das ações destinadas à educação. Aquelas voltadas ao mercado de trabalho surgiram através de decretos do poder executivo, motivados por políticas presidenciais e foram concretizadas por estatutos federais, regras judiciais e decisões administrativas que dependeram de práticas de neutralização racial (HARPER; RESKIN, 2005). Foi elaborado o Quadro B.126, disponibilizado no Apêndice B que reúne, de forma cronológica, os principais decretos e leis norte-americanos – para a implantação de ações afirmativas no mercado de trabalho.

As ações afirmativas americanas voltadas para educação resultam das iniciativas das instituições de ensino superior, ancoradas na consciência racial (SOARES, 2007). Foram executadas a partir de programas preferenciais elaborados e adotados por entidades educacionais públicas e privadas que buscaram ajustar-se à política antidiscriminatória patrocinada pelo governo federal, além do receio de serem denunciadas como discriminatórias. Outras práticas, como a observância de normas que proíbem a discriminação e a vigilância por órgãos governamentais e entidades de promoção dos direitos de minorias, foram também identificadas (GOMES, 2001).

A trajetória da implantação das ações afirmativas, nos EUA, foi marcada por avanços e retrocessos na conquista da legalidade e legitimidade de suas práticas, em função do caráter polêmico e não consensual deste tema. Segundo Heringer(2001), as políticas de ações afirmativas norte-americanas foram gradualmente expandidas e implementadas de maneira sistemática a partir da década de 60 até meados da década de 80. Durante os anos setenta e oitenta, a política de ações afirmativas americana foi moldada por divergentes decisões de tribunais federais e da Suprema Corte; a partir da década de 1990, a insatisfação por parte da sociedade em relação à adoção de ações afirmativas aumenta e plebiscitos estaduais e decisões de tribunais superiores repercutiram esta tendência limitando essas políticas no país. Heringer(2001) afirma que as críticas e oposições às políticas de ações afirmativas cresceram, nos anos 80, no período de recessão econômica e crescimento do desemprego e insegurança na sociedade americana. Em 1996, o estado da Califórnia aprovou o referendum que proibiu o tratamento preferencial para qualquer grupo ou indivíduo em função da raça, sexo, cor, etnia ou origem nacional. Neste período, alguns estados americanos eliminaram as ações afirmativas para ingresso de minorias raciais e étnicas nas universidades públicas. Seus opositores perceberam a política de ações afirmativas como um sistema contrário à

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meritocracia, um mecanismo excludente da população branca do mercado de trabalho e da educação, fomentando a adoção do - sistema de cotas que estabeleceu tratamento preferencial para as minorias o que feriu a garantia constitucional de igualdade de oportunidade para todos (PERIA, 2004).

Harper e Reskin (2005) afirmam que as políticas americanas de ações afirmativas voltadas para educação propiciaram um aumento significativo de estudantes negros em escolas seletivas e universidades, porém ainda é alta a subrepresentação de estudantes negros e hispânicos nessas instituições. Além disso, esses autores identificaram um aumento na retenção e evasão de estudantes beneficiados, em função da desigual trajetória escolar desses alunos. Para esses autores, as políticas de ações afirmativas colidiram com os valorizados princípios de igualdade de oportunidade e da meritocracia daquele país.

Além da Índia e Estados Unidos, vários países da Europa Ocidental, África do Sul, Malásia, Nigéria, Israel, Peru e Argentina e, mais recentemente, o Brasil adotaram políticas de ações afirmativas (PIOVESAN, 2005). Essas sociedades têm se empenhado para reverter o quadro de subrepresentação de minorias e grupos étnicos através da discriminação positiva.