• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1. A abordagem estruturalista na política industrial

1.1.1. As 3 Vertentes do Pensamento Desenvolvimentista

Em sua análise acerca do pensamento desenvolvimentista, Ricardo Bielschowsky (1988) afirma que a estratégia de superação do subdesenvolvimento, por meio de medidas estatais em prol do processo de industrialização, é a marca do "ciclo ideológico do desenvolvimentismo". Segundo o autor, o pensamento desenvolvimentista é concebido na

23

década de 1930, quando o processo de industrialização no Brasil é impulsionado pela crise cafeeira e também da economia internacional, sendo direcionado essencialmente para o abastecimento do mercado interno por bens de consumo, porém com pouca coordenação política. O desenvolvimentismo alcança seu auge apenas a partir de 1945, quando o Estado estimula uma nova onda de substituição de importações em aliança com o setor industrial brasileiro e o capital estrangeiro, valendo-se para tanto do uso de instrumentos de planejamento econômico e de elaboração de projetos para o crescimento industrial.

Entretanto Bielschowsky (1988) ressalta que, nesse processo de transição do centro dinâmico do País para uma economia industrial, o pensamento desenvolvimentista não é unânime, pois reflete um conflito de ideias e interesses entre o empresariado do setor produtivo e a burocracia estatal. Assim sendo, o autor caracteriza três vertentes principais do pensamento desenvolvimentista. A primeira é entendida como o desenvolvimentismo do setor privado, liderado por Roberto Simonsen e um grupo de empresários do setor industrial brasileiro. A segunda refere-se ao desenvolvimentismo do setor público não nacionalista, cuja figura mais representativa é Roberto Campos3 e sua argumentação reside na aliança entre o Estado, os setores produtivos e o capital estrangeiro. E a terceira vertente é caracterizada pelo desenvolvimentismo do setor público nacionalista, que é fundamentado no pensamento de Celso Furtado e Rômulo de Almeida, cuja argumentação atribui ao Estado a liderança para o desenvolvimento dos diversos setores produtivos.

A despeito de suas divergências, a análise realizada por Ricardo Bielschowsky (1988) acerca dessas três vertentes do pensamento desenvolvimentista permite identificar os seguintes elementos comuns, que são ancorados na abordagem estruturalista: i) a preconização do desenvolvimento econômico por meio do processo de industrialização; ii) o posicionamento favorável às medidas protecionistas e ao planejamento do Estado; iii) os estímulos estatais para o financiamento de investimentos nas atividades de expansão industrial e de desenvolvimento tecnológico; iv) a priorização do equilíbrio da balança comercial, com vistas a alcançar a estabilidade monetária e cambial; e v) a relevância do papel do Estado na promoção de medidas distributivas em atenção às necessidades sociais.

3

O economista Roberto Campos participou da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, de 1951-1953, que foi responsável por analisar os principais problemas estruturais do subdesenvolvimento brasileiro e resultou na criação do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE). Campos participou da elaboração do Plano de Metas, em 1956; foi vice presidente do BNDE em 1956 até 1957, quando então assume a presidência do banco, até 1959; ministro do Planejamento, em 1964-1967; e participou de importantes iniciativas a exemplo da criação do Banco Nacional de Habitação e do Banco Central do Brasil.

24

Ou seja, as diferenças observadas nas três vertentes residem essencialmente na extensão da presença do Estado, na abertura para o capital estrangeiro e na participação do setor privado na formulação de estratégias de desenvolvimento produtivo.

O desenvolvimentismo do setor privado zela essencialmente pelos interesses do empresariado industrial e do capital privado nacional, enquanto o principal agente responsável por investimento nas atividades produtivas. Sua argumentação está estruturada em torno das premissas de desenvolvimento difundidas pelo pensamento cepalino, caracterizadas pela posição antiliberal, favorável à industrialização planejada, e à aliança entre o Estado e o capital nacional. Porém, a atuação do Estado na economia é compreendida dentro de certas restrições, devendo essencialmente estar focada na adoção de medidas de proteção à incipiente indústria nacional e de formação de alianças pontuais com o capital internacional.

Amplamente sustentado por instituições representativas do setor industrial, a exemplo do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o desenvolvimentismo do setor privado tem como seus principais porta-vozes industriais como Roberto Simonsen, Euvaldo Lodi e Jorge Street4. O argumento utilizado aponta para o protagonismo do empresariado industrial na formação de uma estrutura industrial capaz de promover o desenvolvimento econômico brasileiro, à semelhança do ocorrido nas economias centrais. Conforme colocado por Bielschowsky (1988), “essa pequena elite empresarial é vivenciada, o que se pode denominar, sem risco, de uma experiência pioneira em planejamento econômico” (p.79).

De acordo com o pensamento desenvolvimentista do setor privado, a industrialização é a principal forma de superação da pobreza e de condução da sociedade brasileira rumo ao nível de desenvolvimento já alcançado pelos países centrais. Para tanto, reitera a importância de implementar um processo de reestruturação da economia do País e

4

Roberto Simonsen foi vice presidente do Centro Industrial de São Paulo, em 1928; presidente da Confederação Industrial do Brasil, em 1935-1936; membro provisório do Conselho Federal do Comércio Exterior, em 1937; presidente da Federação das Indústrias do Estado em São Paulo, entre 1937-1945; e membro do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, em 1944. Jorge Street foi presidente do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de São Paulo, em 1926-1929; fez parte da diretoria do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP), em 1928-1931; diretor geral do Departamento Nacional de Indústria e Comércio, em 1931-1934; e diretor geral do Departamento Estadual do Trabalho em São Paulo, em 1934. Euvaldo Lodi foi deputado classista da Câmara, entre 1934 e 1937; e presidente da Confederação Nacional da Indústria, entre 1938-1954; além de integrar o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a presidência da CEPAL e da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro.

25

de formular um plano de industrialização integrada, voltado para a instalação de indústrias de base e de bens de capital, com o objetivo de suprir demandas da indústria de transformação e de bens de consumo. Todavia, sinaliza que o êxito desse projeto de industrialização depende de um forte apoio estatal, uma vez que os mecanismos de uma economia liberal não são favoráveis para que ocorra a formação espontânea de uma indústria de base e de bens de capital no Brasil. Decorre daí um posicionamento favorável à intervenção limitada do Estado na economia, seja para auxiliar no processo de planejamento econômico, proteger a indústria nascente, investir em segmentos industriais considerados estratégicos pelo próprio Estado, ou ainda realizar empreendimentos em setores industriais nos quais a iniciativa privada não se mostra presente.

O pensamento desenvolvimentista do setor privado defende também que as iniciativas em prol do crescimento industrial podem ser harmonizadas com os interesses agrícolas e do capital estrangeiro, desde que coordenadas em torno de um amplo planejamento econômico e de um projeto de desenvolvimento do País. Essa colocação fica explícita no parecer de Roberto Simonsen apresentado ao Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, no qual o industrial argumenta em favor da planificação de uma nova estrutura econômica para o País, que fosse ampla o suficiente para acomodar aos interesses dos diversos setores produtivos, e inclusive proporcionar meios para satisfazer as necessidades da população.

De fato, em um país como o nosso, serão as indústrias mais intimamente ligadas às atividades extrativas e agropecuárias as que usufruirão as mais favoráveis condições de estabilidade e desenvolvimento. Dependerá ainda essa industrialização da intensificação do aperfeiçoamento dos transportes e dos processos de distribuição e comércio. A planificação do fortalecimento econômico nacional deve, assim abranger por igual o trato dos problemas industriais, agrícolas e comerciais, como o dos sociais e econômicos, de ordem geral. (SIMONSEN, 1944, p. 4)

Portanto, o segmento industrial brasileiro se mostra favorável à participação do capital estrangeiro na economia brasileira. Porém, defendem que sua entrada no País deva ser regulada, obedecendo a critérios de prioridade e orientando esses investimentos para setores essenciais da produção industrial que não estejam suficientemente atendidos pela indústria nacional. Outra concessão feita ao capital estrangeiro refere-se aos segmentos industriais em que há uso intensivo de tecnologia ou em que há grande dependência por importação de equipamentos e know-how, visando assim aumentar a produtividade da indústria nacional.

26

A extensão da intervenção do Estado na economia é o ponto central de divergência entre o desenvolvimentismo do setor privado e aquele do setor público. De acordo com a vertente desenvolvimentista do setor público não nacionalista, a intervenção do Estado na economia deve também passar pelo exercício de um papel de regulação e controle do mercado nacional, com o objetivo de evitar a formação de monopólios e oligopólios, assim como assegurar a qualidade dos serviços públicos prestados por concessionárias privadas. Já para a vertente nacionalista do setor público, a intervenção estatal deve ser ainda mais ampla, subordinando a atuação do capital privado às prioridades de governo e, principalmente, atuando em prol da estatização da economia do País e dos empreendimentos do setor produtivo.

Quanto à vertente desenvolvimentista do setor privado não nacionalista, convém destacar que Roberto Campos em diversas ocasiões se manifesta contrário à elevada intervenção do Estado no setor produtivo e à tendência de estatização da economia, conforme preconizado por pensadores nacionalistas. Embora tenha uma posição favorável a uma maior participação do Estado no planejamento da economia e dos setores produtivos, Campos alerta para os riscos que uma excessiva estatização da economia e intervenção governamental nos empreendimentos produtivos possam provocar. Por um lado, aponta para o risco de afugentar o capital estrangeiro investido no País. Por outro lado, entende que a excessiva estatização da economia e intervenção governamental em empreendimentos do setor produtivo pode desmobilizar o empresariado industrial nacional. Em ambos os casos, adverte sobre os limites de investimento estatal, o que atrasaria o processo de industrialização.

` No que se refere ao planejamento para o desenvolvimento econômico do País, é atribuído ao Estado a responsabilidade de liderar e coordenar o processo de formulação de políticas para o desenvolvimento da atividade industrial. Considerando a trajetória histórica de formação do País, Campos coloca que o crescimento brasileiro se daria apenas por meio de um crescimento planejado, no qual o Estado deve se atentar para os principais entraves estruturais para a superação do subdesenvolvimento. Todavia, a participação de representantes da iniciativa privada é considerada indispensável, de modo a articular interesses comuns e assegurar uma convergência de esforços públicos e privados.

27

Ainda nesse contexto, a atividade industrial é percebida como estratégia, seja para o abastecimento das necessidades do mercado interno; o aumento da competitividade dos produtos nacionais no mercado internacional; a modernização tecnológica da agricultura; e até mesmo por sua capacidade de absorver a mão de obra excedente dispensada do setor agrícola. Ou seja, a atividade industrial não é entendida como concorrente à produção agroexportadora, o que sinaliza uma compreensão de que o desenvolvimento pode ocorrer tanto por meio da industrialização, como também da modernização produtiva do setor agrícola. Observa-se assim que o pensamento desenvolvimentista do setor público busca harmonizar os interesses tradicionais do setor agrícola, com as demandas por crescimento da produção industrial. Os relatórios da Comissão Mista Brasil – Estados Unidos corroboram essa argumentação, ao evidenciar uma tentativa de convergir interesses de ambos os setores produtivos.

Em vista de que o vigor do crescimento industrial e urbano, assim como a suavização das transformações estruturais dele resultantes, dependem grandemente do desempenho do setor agrícola, como supridor de alimentos, matérias-primas e mão de obra para cidades e indústrias e principal fornecedor de divisas, parece de importância ressaltar que também na agricultura se registra, gradualmente, a emergência de nova mentalidade. (“Relatório da Comissão Mista Brasil-Estados,” 1951, em Memórias do Desenvolvimento, p. 292)

A partir dessa convergência de esforços, uma nova característica é introduzida à estratégia de planejamento econômico: o planejamento seccional ou setorial. Diferentemente da tradicional abordagem de planejamento integral, amplamente defendida por pensadores cepalistas como Celso Furtado e Raul Prebisch, o planejamento seccional é compreendido por Roberto Campos como um instrumento não concorrente e complementar às estratégias contidas nos grandes planos de desenvolvimento nacional. Para Campos, a vantagem do planejamento seccional reside em sua execução facilitada e de baixo custo, o que dispensaria uma elevada intervenção do Estado nos setores produtivos. Ademais, valendo-se do planejamento setorial, a necessidade de resolução emergencial de grandes problemas em escala nacional é substituída por uma intervenção pontual e mais eficaz. Essa nova tendência de estratificação setorial do planejamento passa a compor o conjunto de instrumentos utilizados pelo estruturalismo, caracterizando-o cada vez mais pela especialização técnica dos projetos e, principalmente, facilitando a definição de mecanismos para o monitoramento de resultados.

28

Conforme colocado por Bielschowsky (1988), essa nova filosofia de planejar cada setor da economia em separado, considerando suas nuances técnicas e produtivas, constitui uma das principais contribuições do pensamento desenvolvimentista não nacionalista à abordagem estruturalista, visto que essa formatação de planejamento deriva de uma prática internacional introduzida ao Brasil por meio da Comissão Mista. Incorpora-se, assim, à abordagem estruturalista o discurso de uma industrialização que deve também ser planejada por setores, e não apenas sob uma perspectiva integral, tendo em vista a urgência por superar pontos de estrangulamento evidenciados pelo modelo de industrialização por substituição de importações.

Por fim, no que se refere à diferença entre a vertente do setor público não nacionalista e aquela nacionalista, uma das principais divergências constatadas diz respeito à participação do capital estrangeiro na economia do setor produtivo. Por um lado, o pensamento desenvolvimentista não nacionalista é favorável ao estabelecimento de alianças com o capital estrangeiro, como uma forma de superação do atraso tecnológico da indústria brasileira, como também de complementação de recursos para investimento na expansão da estrutura produtiva nacional. Já o desenvolvimentismo do setor público nacionalista posiciona-se contrário à participação do capital estrangeiro na economia, inclusive no que se refere à transferência de tecnologia e know-how para modernização dos processos produtivos, sem que antes seja definida uma política disciplinadora capaz de regular a entrada desse capital no País.

A segunda divergência constatada entre as vertentes do setor público não nacionalista e nacionalista remete à aliança com o capital privado nacional. A vertente não nacionalista é favorável a uma estreita aliança público-privada, na qual o segmento industrial tem uma participação privilegiada nos processos de formulação do planejamento econômico e da política industrial. Nesse sentido, são definidos limites para a atuação do Estado em setores produtivos, nos quais a iniciativa privada pode atuar com maior eficiência e sem comprometer questões estratégicas de segurança nacional. Conforme análise feita por Bielschowsky (1988), acerca do pensamento de Roberto Campos:

...a insuficiência de capitais, de know-how e de capacidade para importar faziam com que os interesses da nação envolvessem uma política de atração de capitais externos. A participação do Estado em empreendimentos produtivos deveria ser tolerada, mas apenas naqueles projetos indispensáveis, em relação aos quais, momentaneamente, não houvesse interesse privado nacional ou estrangeiro em

29

investir. E mesmo o capital nacional deveria evitar certos ramos de investimento. (p.122)

Já a vertente nacionalista do setor público defende uma ampla participação do Estado na coordenação econômica do País e na definição de estratégias para o setor produtivo. Valendo-se dos grandes planos para o desenvolvimento nacional, o Estado deve prover diretrizes para o investimento da iniciativa privada e também direcionar os projetos seccionais. Ademais, a atuação direta do Estado nos investimentos produtivos é compreendida como necessária para regular e controlar a atuação do capital privado.

A partir do exposto, torna-se evidente que os defensores do pensamento nacional- desenvolvimentista do setor público atribuem ao Estado o papel protagonista na condução da economia e do setor produtivo. Argumenta-se ainda que os segmentos industriais considerados estratégicos para o desenvolvimento econômico e a segurança nacional devem ser estatizados, por considerar que os interesses de acumulação privada de capital não devem se sobrepor à estratégia de desenvolvimento nacional. Ademais da defesa de uma maior intervenção do Estado na economia, é importante destacar outras duas características do pensamento desenvolvimentista do setor público nacionalista: i) a subordinação da política monetária à política de desenvolvimento econômico, sob a justificativa de que essa seria a principal maneira de viabilizar o desenvolvimento das forças produtivas do País; e ii) a inclinação à adoção de políticas sociais destinadas a amenizar os problemas decorrentes do desemprego, da pobreza e da pouca qualificação (educacional e profissional) da população brasileira.

Com o falecimento de Roberto Simonsen em 1947, o pensamento desenvolvimentista do setor privado perde seu principal articulador e dá espaço para que economistas cepalinos prossigam com a defesa da estratégia de planejamento da economia e proteção da indústria nacional, porém sob uma ótica nacional-desenvolvimentista do setor público. Assim sendo, a partir de meados da década de 1940, as propostas formuladas por Celso Furtado e Raul Prebisch ganham força política e passam a influenciar diretamente a atuação do Estado. A argumentação nacional-desenvolvimentista produzida pela CEPAL não apenas traz sustentação teórica ao modelo de industrialização por substituição de importações e ao planejamento centralizado da economia; mas também fundamenta as medidas protecionistas da indústria brasileira, bem como orienta a atuação do Estado para a diversificação da estrutura produtiva do País.

30