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C ASA DA S UPLICAÇÃO E OS A SSENTOS NO D IREITO P ORTUGUÊS

2. O E STADO B RASILEIRO E AS D ECISÕES V INCULANTES

2.2 C ASA DA S UPLICAÇÃO E OS A SSENTOS NO D IREITO P ORTUGUÊS

O direito português tem, assim como os demais países de língua latina, seu tronco basilar no direito romano. As transformações sofridas ao longo da história e influenciadas pelo direito germânico, canônico e visigótico, deram às ordenações certo caráter de continuidade, adequando-se somente ao que fosse rigorosamente necessário.

Nem mesmo a influência moura que dominou a Península Ibérica por séculos desde o fim do Império Romano do Ocidente no século V até a queda do último bastião islâmico e de Constantinopla, no século XV foi capaz de modificar muitas estruturas já arraigadas na cultura jurídica portuguesa, oriunda da continuidade romana.

O direito português estava fundado em bases solidificadas desde muito antes, fazendo com que suas estruturas se estabilizassem na sociedade e que as alterações constantes nas ordenações fossem puramente para aprimoramento das mesmas, pelo menos na visão dos legisladores lusos.

Três grandes compilações formavam a estrutura jurídica portuguesa. O primeiro a ordenar uma codificação foi D. João I, que reinou de 1385 a 1433. A elaboração atravessou o reinado de D. Duarte, a regência de D. Leonor, sendo promulgadas pelo recém-coroado Afonso V, que, apesar de nada ter contribuído para a obra, deu-lhe nome: Ordenações Afonsinas, que vigoraram de 1446 a 1521, ano em

que D. Manoel promulgou a que levou seu nome: Ordenações Manuelinas, fruto da revisão das Afonsinas e da recompilação das leis extravagantes. Depois das Manuelinas, Duarte Nunes de Leão recompilou novas leis extravagantes, até 1569, publicação muito conhecida por Código Sebastiânico, apesar de não ter havido participação ativa de D. Sebastião. Uma nova revisão das Ordenações foi encomendada pelo rei Filipe II a grupo de juristas chefiado por Damião de Aguiar, que as apresentou e obteve aprovação, em 1595, somente impressa e entrada em vigor em 1605 com o nome de Ordenações Filipinas.210

Assim, a ideia primária dos pretores e das edicta advindas do direito romano também foram postas em prática no direito português. Tal instituto recebeu o nome de “Assentos” e pode ser considerado como um espelho do direito romano sendo para a doutrina brasileira a primeira forma histórica de Súmulas Vinculantes inseridas no país, já que neste período o Brasil ainda respondia ao direito consignado pela Coroa.

Seu objetivo no Direito Português, depois transportado ao Direito Brasileiro, consistia na unificação da jurisprudência em decisões tomadas por instância superior, para que, além de não haver decisões contraditórias, também as fontes do direito ficassem salvaguardadas.

Logo no Livro Primeiro, Título Primeiro, das Ordenações Afonsinas (1446) havia a determinação sobre as designações das funções judiciárias do Império. O Regedor, ao lado dos Desembargadores e do Governador da Casa da Justiça, eram os responsáveis pelo direito no reinado de Dom Afonso V (1438-1481).

É, contudo, nas Ordenações Manuelinas (1513), durante o reinado de Dom Manuel I (1495-1521), que enxugou as Ordenações Afonsinas e as esclareceu, tornando-as de entendimento mais simplificado, que surgem os assentos portugueses, a primeira forma propriamente dita de sumular as decisões dos juízes. O Livro Quinto, Título LVIII, § 1º, assim dispunha sobre a Casa do Regedor:

E assim havemos por bem, que quando os Desembargadores que forem no despacho d’algum feito, todos ou algum deles tiverem alguma dúvida em alguma nossa Ordenança do entendimento dela, vão com a dita dúvida ao Regedor, o qual na Mesa Grande com os Desembargadores que lhe bem parecer a determinará, e segundo o que for determinado se porá a sentença. E se na dita Mesa forem isso mesmo em dúvida, que ao Regedor pareça que é bem de no-lo fazer saber, para nós logo determinarmos, no-lo fará saber, para nós nisso provermos. E os que em outra maneira interpretarem nossas Ordenações, ou derem sentenças em algum feito, tendo algum deles dúvida no entendimento da dita Ordenança, sem irem ao Regedor

210 CARRILLO, Carlos Alberto. Memória da Justiça Brasileira. Salvador: Tribunal de Justiça, 1997, pp.

como dito, serão suspenso até nossa mercê. E a determinação que sobre o entendimento da dita Ordenação se tomar, mandará o Regedor escrever no livrinho para depois não vir em dúvida.211

Pela leitura da disposição acima transcrita, fica clara a vinculação das decisões nos assentos portugueses, de acordo com as determinações dos Desembargadores da Casa da Suplicação, responsáveis pelo direito, explica-se o que eram os assentos portugueses e qual a sua função no direito do Reino, incluindo suas Colônias.212

Os assentos, de acordo com as disposições legais, eram averbados no Livro da Relação e, a partir de então, passavam a surtir efeitos legais obrigatórios e vinculatórios, tendo com isso um duplo efeito: documental e operacional.

Vale observar que a averbação dos assentos no Livro da Relação, à época das Ordenações Filipinas, configurava e formalizava a força obrigatória desses arestos, operando, na verdade, com dupla finalidade: de um lado, uma função documental, para a perpétua memória do que fora acordado como sendo a melhor inteligência a ser dada a certo dispositivo das Ordenações; e, de outro, uma função

operacional, facilitando aos profissionais do foro a pesquisa e a utilização desses assentos para solução dos casos subsumidos em seu enunciado.213

De igual modo que as edicta pretorianas, os assentos portugueses engessaram o sistema jurídico da época e propiciaram não a unicidade do direito, mas sim a discrepância no mesmo, já que cada Regedor, cada Desembargador, possuía o seu entendimento sobre os casos que chegavam ao seu conhecimento, algo comum para o Judiciário, em nome da liberdade decisória do juiz.

Outro ponto de encontro entre as edicta romanas e os assentos portugueses está no fato de que os magistrados estavam presos à uma decisão imposta, que além de unificar o direito unificava também o entendimento jurídico e os casos, por mais complexos e diferentes entre si que pudessem ser.

211 PORTUGAL. Ordenações Manuelinas de 1513. Compilado por COIMBRA, Arménio Alves

Fernandes; SANTOS, Pedro Manuel Amaro; RODRIGUES, Joaquim Pereira; CASTRO, Manuel Fraga; WYNANTS, Hugues. Universidade de Coimbra. Acesso em 24/12/2013.

212 Neste sentido: “Os assentos consistiam em proposições gerais e abstratas, cuja natureza era de

verdadeiras normas jurídicas em sentido material, já que tinham força obrigatória geral, nos termos do art. 2º do Código Civil português, suscetíveis de revogação somente por leis posteriores e de declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional”. (DEMO, Roberto Luiz Luchi. O Resgate da Súmula Pelo Supremo Tribunal Federal. R. CEJ, Brasília, n. 24, p. 80-86, jan./mar. 2004. Disponível em <http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/588/768>. Acesso em 25/12/2013).

E para além da petrificação do direito, a atuação livre dos magistrados ficava restrita, sobretudo durante a vigência do governo pombalino, que se caracterizou pelo autoritarismo em suas decisões de comando.

Esse direito jurisprudencial ou costume Judiciário não se firmou sem fortes resistências, como se deu em Portugal. No século XVIII, no período autoritário do governo do Marquês de Pombal, a função hermenêutica do juiz era condenada. Os assentos da Casa da Suplicação, tomados em Mesa Grande, dependiam da vontade do monarca, o que se fez em largo período da história de Portugal.214

Soma-se a isso, assim como o acontecido durante o Império Romano, também no Reino de Portugal a produção legislativa encontrava obstáculos, sobretudo pelo fato de muitas leis colidirem entre si no ordenamento jurídico vigente, da mesma forma que as edicta colidiam umas com as outras, o que demonstra e comprova a instabilidade desse sistema em que aquele que julga é o responsável também pela elaboração do próprio direito, acabando com a isonomia.

As ordenações não ficaram de fora, de modo que os assentos portugueses foram atingidos e acabavam por colocar em dúvida o alcance real da vinculação decisória dos julgadores do reino.

A dinâmica legislativa característica da época teve como efeito que, a breve prazo, as Ordenações Manuelinas se vissem complementadas por diversos diplomas avulsos. Havia, também, uma multiplicidade de interpretações vinculativas dos assentos da Casa da Suplicação e era necessário sistematizar os diplomas avulsos, convindo fazer uma colectânea dessa legislação avulsa.215

O instituto dos assentos foi firmado pela Casa da Suplicação, sendo esta um Tribunal Superior do reino com duplo grau de jurisdição. Dividida em duas seções, cada uma possuía competências diferentes perante os julgamentos. A primeira, chamada de Casa do Cível, era responsável pela apreciação de petições, além da decisão de perdões e comutação de penas. Já a segunda casa era responsável pela apreciação dos recursos que a Casa do Cível não tinha competência para julgar.

De acordo com as Ordenações Filipinas, a Casa da Suplicação estava constituída com um regedor, um chanceler, desembargadores dos agravos, corregedores do crime e corregedores do cível da Corte, juízes dos feitos da Coroa e Fazenda, ouvidores das

214 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 21. 215 PEREIRA, José Gerardo Barbosa. Sociedade, Elites e Poder em Pernambuco no Século XVII. Tese

apelações crime, procurador dos feitos da Coroa, procurador dos feitos da Fazenda, juiz da Chancelaria e um procurador da Justiça, além de outros cargos administrativos.216

A Casa da Suplicação foi, assim, durante muito tempo, a segunda instância dos tribunais portugueses, nos quais recorriam sempre que necessário, julgando não somente os processos pertinentes à Coroa, como da mesma forma os das Colônias ultramarinas, constituindo-se como a última instância judiciária portuguesa.

Apesar das constantes mudanças de nomenclatura ao longo dos séculos, por influência do Direito Romano, esta passou a ser chamada de Casa da Suplicação por força das Ordenações Filipinas, que trouxe inúmeras outras determinações e funções.

A Europa passava por grandes transformações em fins do século XVIII e início do XIX devido às Guerras Napoleônicas. Em 1808, com a intensificação dos conflitos entre Inglaterra e França, a armada de Napoleão bateu às portas dos domínios portugueses e, após muita deliberação da Família Real, a fuga foi planejada para sua Colônia de Além-Mar, com a ajuda da Inglaterra.

A transferência, conforme já dissemos, não foi somente da Família Real, mas de todas as suas instituições, sejam econômicas, culturais ou jurídicas. Ainda com o poder absolutista concentrado nas mãos de Dom João VI, o Estado Português não se resumia à porção de terra deixada para trás. Estando a Família Real na Colônia, ali estaria o reino.

Com o transplante ultramarino da Família Real e do Estado Português propriamente dito, a Colônia Brasileira foi elevada à Reino, de modo que as instituições antes basilares da soberania de Portugal na Europa foram adequadas á realidade nacional, sem perder o toque deixado pelas Ordenações Filipinas, também vigentes no Brasil por ser este uma continuidade de Portugal.

Um fato importante deve ser mencionado. A Casa da Suplicação era a última instância do meio jurídico português e encontrava-se sediada no Reino, sendo responsável também pelo julgamento em segundo grau das colônias, como era o caso do Brasil, Goa, Moçambique e Angola.

Tanto na Metrópole como nos territórios dominados haviam-se constituído Tribunais de Relação, que passaram a ser a segunda instância judiciária do Reino,

216 PORTUGAL. Ordenações Filipinas de 1603. Compilado por SALGUEIRO, Ângela dos Anjos

Aguiar; SANTOS, Lídia Maria Machado Sacramento dos; CAMPONÊS, Jorge Filipe Bandeiras de Oliveira; ALMEIDA, Maria Amélia Dias Figueiredo de; MAMEDE, Pedro Miguel Fernandes; COSTA, Sandra Patrícia Bernardo; DIAS, Sara Marisa da Graça. Universidade de Coimbra. Acesso em 24/12/2013.

enquanto a Casa da Suplicação passou a ser encarada como a instância máxima, assim como o Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira é visto.

A Casa da Suplicação tornou-se a Corte Suprema para Portugal e para as Colônias, com a instituição dos Tribunais de Relação como cortes de 2ª instância (foram sendo criadas as Relações do Porto, para Portugal, da Bahia, para o Brasil, e de Goa, para a Índia). Assim, a Casa da Suplicação passou a ser o intérprete máximo do direito português, constituindo suas decisões assentos que deveriam ser acolhidos pelas instâncias inferiores como jurisprudência vinculante.217

Sem a Casa da Suplicação, novas prerrogativas foram outorgados às instituições já previstas no cenário brasileiro, que antes ficavam em segundo plano por estarem abaixo das determinações vindas da Coroa. Mas agora, com a Família Real e a própria Coroa instalada no território colonial, novas formas surgiram.

É o caso, por exemplo, da Casa da Relação, com sede na cidade do Rio de Janeiro e que possuía atribuições semelhantes àquelas outrora existentes na Casa da Suplicação Portuguesa.

[...] a competência para proferir assentos foi outorgada à Casa da Relação do Rio de Janeiro, denominação pela qual era conhecido, pelos lusitanos, o Tribunal Superior. Quando proferidos e registrados os assentos, cópias deles eram remetidas aos chanceleres dos tribunais inferiores, devendo ser respeitados como leis. Isso não impedia, contudo, a interposição de recursos contra os julgados neles baseados.218

As Casas de Relações eram tribunais locais, sendo que a localizada no Rio de Janeiro tornou-se a responsável pelo direcionamento antes pertencente à Casa da Suplicação. A escolha desta cidade explica-se pelo fato de, a exemplo de Lisboa ser a sede do Império, o Rio de Janeiro foi elevado a tal posto quando da vinda da Família Real ao país. Com isso, por força do Alvará de 10 de maio de 1808219, o então príncipe regente eleva a Casa de Relação do Rio de Janeiro ao posto de Casa da Suplicação, com todas as suas atribuições definidas por lei.

Assim, embora previsível, os assentos portugueses no ordenamento jurídico brasileiro tiveram que conviver com algo que estava acima de seu alcance, algo criado para salvaguardar o próprio Imperador, que foi a figura do Poder Moderador. Mesmo

217 MARTINS FILHO, Ives Granda da Silva. Solução Histórica da Estrutura Judiciária Brasileira. Revista

Jurídica Virtual, Brasília, v. 1, n. 5, set. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_05/evol_historica.htm>. Acesso em 24/12/2013.

218 LOR, Encarnacion Alfonso. Súmula Vinculante e Repercussão Geral: novos institutos de direito

processual constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 30.

existindo os assentos que vinculavam as decisões, no final, cabia ao Imperador, sempre, a última palavra.