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2. O E STADO B RASILEIRO E AS D ECISÕES V INCULANTES

2.3 B RASIL I MPÉRIO

Com o advento da Independência, em 1822, o país se inseriu em uma nova configuração de Estado, que já despontava na Europa com o pós-Revolução Francesa, também influenciada pela Constituição Americana de 1787 e, mais uma vez, adéqua o modelo europeu preconizado por Charles de Montesquieu para o período.

Os entraves e as disputas políticas encontradas no início do Brasil Império podem ser facilmente percebidos com a análise dos desdobramentos ocorridos desde a formalização de se reestruturar politicamente o país até a outorga da Carta Imperial.

Embora cheios do espírito revolucionário que eclodira na Europa quarenta anos antes, bem como pela independência estadunidense em 1776, os deputados constituintes tentaram trazer um liberalismo moderado que, ao mesmo tempo em que pregavam certas liberdades individuais e limitasse os poderes do Imperador, procuravam manter o sistema escravagista e as estruturas aristocráticas perpetuadas nos séculos anteriores.

Tanto é que as Ordenações continuaram em vigor mesmo após a independência, bem como os Assentos da Casa da Suplicação, conforme autorização do Decreto- Imperial de 20 de outubro de 1823, que dispunha sobre a legislação em vigor no Império Brasileiro.220

Posteriormente, mesmo com a outorga da Carta Política de 1824, as Ordenações Filipinas e os Assentos da Casa da Suplicação foram oficialmente recepcionados pelo direito brasileiro e passaram a integrar o ordenamento jurídico vigente à época, por força do Decreto-Legislativo nº 2.684, de 23 de outubro de 1875.221

O pensamento político deste período era conflitante: ideais libertários contrastavam com o conservadorismo, que ocorre quase como regra em todas as fases de transformações, como na Revolução Francesa. Apesar de tentar trazer os ideais europeus, a estrutura social brasileira, na sua maioria de indígenas e escravos, não encontrou totalmente o respaldo necessário para sua expansão.222

220 BRASIL. Decreto-Imperial de 20 de outubro de 1823. Fonte: Câmara dos Deputados. 221 BRASIL. Decreto-Legislativo nº 2.684, de 23 de outubro de 1875. Fonte: Planalto.

222 Neste sentido: “Proclamada a Independência, pelo Príncipe D. Pedro de Bragança, em 7 de setembro

de 1822, e reconhecido o novo Estado do Brasil pelos Estados Unidos da América e pelo Império da Áustria, a liderança política brasileira sentiu necessidade de buscar uma legitimação teórica para o novo

Tentavam inserir mudanças na sociedade, tais quais as defendidas pelos europeus e estadunidenses, sem que, todavia, as estruturas sofressem qualquer tipo de alteração que os tirasse da posição de poder. Inclusive, tanto a aristocracia como a condição de escravo eram ideais combatidos nos dois movimentos citados, uma vez que contrários aos princípios da liberdade e da igualdade defendidos por estes. No Brasil a ordem era: mudem, mas deixem como está.

As classes dominantes tentava manter intocáveis os seus privilégios com a manutenção tanto do sistema aristocrático, como do escravista ao mesmo tempo em que procuraram diminuir os poderes do Imperador subordinando o Executivo ao Legislativo, com a ideia de criar uma monarquia constitucional nos moldes montesquieuanos, o que sem sombra de dúvidas irritou Pedro I, que fechou a constituinte e nomeou um Conselho de Estado responsável pela confecção da Carta Política do Império.

O principal ponto que não agradou ao imperador D. Pedro I foi a ideia de subordinar o Poder Executivo ao Legislativo. Com essa tentativa de limitar seu poder, o Imperador recorreu à força a fechou a Constituinte, em novembro de 1823. [...] Após este triste episódio, D. Pedro I nomeou um Conselho de Estado, que se encarregou de redigir o texto constitucional, outorgado em 25 de março de 1824.223

A bem da verdade, se analisarmos a intenção dos deputados constituintes, perceberemos que eles ansiavam, do mesmo modo que a burguesia na França Absolutista, o poder que se concentrava nas mãos do Clero e da Nobreza. O absolutismo do imperador, de igual forma, se parece em muitos aspectos com o modelo que teve como último expoente Luís XVI.

A ação do imperador impediu os pretensos liberais de conseguir alcançar o poder. Mesmo que se reconheça o fato de a Constituição Imperial ter sido um grande avanço na história jurídica do país, não podemos nos esquecer do caráter absolutista e até certo ponto extremista deste Diploma.

Foi, outrossim, uma tentativa de copiar o parlamentarismo que já há algum tempo tinha obtido bons resultados na Europa, mas que no Brasil esbarrou nos modelos

regime que se implantava. Foi procurar em Jean-Jacques Rousseau e no mito do bom selvagem fundamentação para uma soberania de uma nação profundamente indígena. Eis aí o caráter político do famoso movimento indianista que se estenderá até meados do século XIX, quando poetas e prosadores procuram exaltar o elemento nativo colocando à altura dos heróis da epopeia inglesa, francesa, americana da época do romantismo”. (CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 247).

223 CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos

arcaicos e nos interesses prosaicos das elites agrárias dominantes, que queriam mudanças, desde que estas não os atingissem.

O que se viu, assim, foi a tentativa de transpassar ao Brasil o modelo europeu, com os devidos “ajustes” necessários não à realidade nacional, mas sim às vontades particulares, sobretudo de Pedro I.224

Ao mesmo tempo em que concedia-se alguns direitos individuais e políticos, inseria-se a figura do Poder Moderador do Imperador, que se colocava com ele acima de qualquer ato, dispositivo legal ou cidadão, estando acima até mesmo da própria Constituição, criando a figura do Estado-Leviatã de Thomas Hobbes, já que centrado na sua figura e no poder eclesiástico da religião oficial do Brasil, o catolicismo.

O Brasil se inseriu, à sua maneira, nesta nova concepção de divisão instrumental, constitucionalmente reconhecida para melhor garantia e segurança dos atos praticados pelo Estado. A Tripartição Clássica entre Executivo, Legislativo e Judiciário ganhou a inclusão de um quarto, que na realidade não estava no mesmo patamar que os demais. Este poder concentrava-se na figura do Imperador e concedia-lhe exceções à regra de harmonização e independência.

O Quarto Poder estava acima de toda e qualquer suspeita. Suas ações não se confundiam com as do Executivo e não se sujeitavam ao crivo do Judiciário, que ficava de mãos atadas. O Poder Moderador estava disposto na Constituição Imperial de 1824 em seu Art. 10, não trazendo quaisquer referências quanto à harmonia e a independência. Entre os Arts. 98 e 101 da Carta Constitucional de 1824 estão dispostas as atribuições conferidas ao Imperador, sendo que o Art. 98 resume muito bem o seu significado no Estado:

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.225

Cabia ao Poder Moderador, conforme se interpreta da segunda parte do supracitado dispositivo legal, velar sobre a independência e a harmonia dos demais

224 Neste sentido: “Durante o Império, pela Constituição de 1824, o Poder Executivo cabia ao Primeiro

Ministro; o Poder Legislativo, ao Senado e à Câmara dos Deputados; o Poder Judiciário, aos Juízes e Tribunais. Por fim, o imperador era assistido por um Conselho de Estado, detendo o poder moderador, que lhe dava possibilidade de interferir nos demais poderes”. (CICCO, Cláudio de; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2012, p. 247).

órgãos do Estado, ou seja, era ele o responsável, estando acima de todos, por manter os demais ao seu dispor. Thomas Hobbes aplaude a ideia.

Inclusive, o Poder Moderador ia além de qualquer outro, até porque suas atribuições não estavam restritas somente às questões burocráticas de funcionamento estatal, como nomear Ministros de Estado e Magistrados para ocupar suas respectivas funções no Executivo e Judiciário, como também nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos, numa clara manifestação de interferência nas questões pertinentes à Igreja Católica, tida como religião oficial do Império (Art. 5).

Não é demais afirmar que durante todo o Império, assim como durante toda a Colônia, o Judiciário via seus trabalhos atrelados à disposição dos demais, seja no tocante ao Governador-Geral, seja com relação ao Imperador, a força de sua matize como definidor do pensamento jurídico nacional estava minada pelas vontades daqueles que detinham o poder. Enfatiza Rosalina Corrêa de Araújo:

Esse quarto poder, conforme estabelecia a Carta política, pousava sobre os demais – Executivo, Legislativo e Judicial – através do poder de prerrogativa, que permitia do imperador sancionar resoluções, prorrogar e adiar sessões, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente os ministros, suspender os magistrados e conceder indulto e anistia.226

O Império, na realidade, contribuiu de forma significativa na produção jurídica, embora estivesse atrelado ao poder moderador e aos assentos que, como visto, foram repetidos no cenário brasileiro tal qual o concebido em Portugal, mas desta vez com leis próprias e fomentadas no próprio território brasileiro.

A importância da Casa da Suplicação e dos Assentos ultrapassa os limites da relação Colônia-Império, como comprova o Decreto nº 2.684, de 23 de outubro de 1875, que inseriu os assentos portugueses no ordenamento jurídico brasileiro, dando “força de lei no Império a assentos da Casa da Suplicação de Lisboa e competência ao Supremo Tribunal de Justiça para tomar outros.”227

Assim como no Império Romano o Edictum Perpetuum de Sálvio Juliano durante o governo do Imperador Adriano reuniu e codificou todas as edicta anteriores em um único volume, também esta lei teve como intuito vincular o Judiciário às decisões e determinações já existentes por força dos assentos.

226 ARAÚJO, Rosalina Corrêa de. O Estado e o Poder Judiciário no Brasil. Editora Lúmen Júris. Rio de

Janeiro: 2004, p. 27.

Art. 1º Os assentos tomados na Casa da Supplicação de Lisboa, depois da creação da do Rio de Janeiro até á época da Independencia, á excepção dos que estão derogados pela legislação posterior, têm força de lei em todo o Imperio.

As disposições desta lei não prejudicam os casos julgados contra ou conforme os ditos assentos.228

Além dele, o Decreto nº 6.142, de 10 de março de 1876, dispôs sobre a liberdade de interpretação da norma jurídica e da importância do debate para a composição do ordenamento brasileiro. Tanto é que “os assentos tomados não prejudicarão os casos julgados contra ou conforme a doutrina que estabelecerem”229.

Interessante notar que este decreto trata ainda sobre quem poderia propor os assentos ao Supremo Tribunal de Justiça, não cabendo somente a estes as deliberações sobre os assuntos passiveis de constarem nos assentos, conforme determina o Art. 4º do supracitado decreto imperial.

Art. 4º Serão tomados os assentos:

I. Por indicação de qualquer Ministro do Supremo Tribunal de Justiça. II. Por proposta de alguma das Relações do Imperio, ou de qualquer Juiz de primeira instancia.

III. A requerimento feito pelo Instituto da Ordem dos Advogados.230

Também o Art. 5º trata de como deverá ser realizado o requerimento, ao estipular que as decisões controvertidas devem ser encaminhadas com cópia das atas de julgamentos, sem as quais não seria possível tratar da possível criação de assentos.

Art. 5º As indicações, propostas e requerimentos serão acompanhados: I. De um relatorio circumstanciado dos julgamentos divergentes, que se especificarão, e das duvidas occorridas sobre a intelligencia da lei ou do direito em these.

II. De certidão verbo ad verbum dos julgamentos divergentes.

Estas certidões serão passadas ex-officio pelos funccionarios competentes, mediante requisição.231

Percebe-se, pois, já no decurso do século XIX, que a liberdade jurisprudencial não estava atrelada ao cumprimento estrito dos assentos. Mesmo possuindo força normativa, conforme verificado no decreto anterior, os assentos não prejudicarão a atuação dos magistrados nos casos anteriores.

228 BRASIL. Ob. Cit. 23 de outubro de 1875. Fonte: Planalto.

229 BRASIL. Decreto nº 6.142, de 10 de março de 1876. Fonte: Planalto. 230 BRASIL. Ob. Cit. 10 de março de 1876. Fonte: Planalto.

No Império, a maioria das disposições das Ordenações Filipinas persistiram, mesmo após a promulgação da Primeira Constituição Brasileira (1824). Uma mudança chegou a ser tentada, mas não foi concretizada:

[...] a competência para proferir assentos foi transferida para o Supremo Tribunal de Justiça, previsto no Art. 163 da Constituição Imperial. Muito diminuta foi à participação do novo Tribunal, como de resto, de todo o Poder Judiciário da época, mitigado pela criação do Poder Moderador, que centralizava, nas mãos do Imperador, quase todas as decisões políticas, incluindo aquelas relativas às questões legais.232

Não se pode também deixar de citar outro importante fator das heranças portuguesas no Brasil, iniciado ainda durante o período colonial e que prosseguiu por todo o Império e República, que é a questão da burocracia estatal atrelada aos interesses do poder dominante em cada um desses períodos.

Esta característica não foi perceptível somente nas instâncias do Executivo e Legislativo ao longo do Império, como foram encontradas no Judiciário, atuando na manutenção da classe dominante e em busca dos interesses do Imperador, pautados em leis que já denotavam o absolutismo português repassado ao Império pelo poder moderador, tendo como finalidade a manutenção do status quo.

Mais que um estamento burocrático, a magistratura simbolizava uma expressão significativa do poder do Estado, ungido para interpretar e aplicar a legalidade estatal, garantir a segurança do sistema e resolver os conflitos de interesses das elites dominantes. Contata-se, pois, o procedimento profissional e político dos magistrados enquanto atores privilegiados da elite imperial, sua relação com o poder político, com a sociedade civil e sua contribuição na formação das instituições nacionais.233

O Judiciário se mostrou mais como cargos políticos do que de magistrados capazes para o julgamento imparcial. Seu papel no surgimento do Estado brasileiro após a Independência em 1822 continuou a mesma que se iniciou ainda na Colônia, de modo a favorecer os principais atores do cenário político.

O apadrinhamento foi determinante para o sucesso desse modelo pautado nos interesses e nas formas de administrá-lo de acordo com os aliados. Os magistrados praticavam a atividade judicial e ao mesmo tempo política, o que significava que não separavam suas funções de julgar das de administrar.

232 LOR, Encarnacion Alfonso. Ob. Cit. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 31. 233 WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. Cit. Rio de Janeiro: Editora Forense, 7ª Edição, 2014, p. 96.

Na prática, o poder judicial estava identificado com o poder político, embora, institucionalmente, suas funções fossem distintas. O governo central utilizava-se dos mecanismos de nomeação e remoção de juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a justiça fosse partidária, e o cargo, utilizado para futuros processos eleitorais (fraudes e desvios) ou mesmo para recompensar amigos e políticos aliados. Assim, o juiz deixava de apreciar conflitos de sua competência (impessoalidade, neutralidade) para entrar numa prática antijudiciária, em que só contava o atendimento ao partido aliado e aos chefes no interior.234

O Absolutismo atrelava todas estas instâncias à vontade soberana do Imperador, como se evidencia na célebre frase de Luis XIV: “O Estado Sou Eu”. Tal afirmação não é errônea quando analisada as circunstâncias em que foi pronunciada.

Somado ao fato de que os juízes julgavam de acordo com os interesses maiores dos grupos dominantes, claro é que o poder moderador e aquele externado pelo próprio imperador, atrelavam os juízes, participantes ativos dentro desse sistema.

Interessante notar que a figura do poder moderador, oficialmente extinto com a Proclamação da República em 1889 e a consequente promulgação da Constituição Republicana de 1891 não o tirou do cenário político nacional, sobretudo porque as oligarquias, como classe dominante, continuaram a desempenhar o seu papel de controle das instituições. Aqueles que antes dominavam o Império passaram a dominar também a República.

Essa estrutura que teoricamente buscou suas bases na estruturação de Estado Francês e Estadunidense esteve inserida numa mudança iniciada também no advento desses dois grandes acontecimentos do mundo ocidental, que é a transformação de mentalidade quanto ao conceito de "nação", ocorrido em fins do Século XIX.

De acordo com essa nova denominação, não mais se atrelava o Estado ao seu governante, como ocorrido no próprio Brasil quando da fuga da Família Real, mas sim ao povo, sendo este o responsável pela formação da nação e pela constituição do Estado.

A equação nação = Estado = povo e, especialmente, povo soberano, vinculou indubitavelmente a nação ao território, pois a estrutura e a definição dos Estados eram agora essencialmente territoriais. Implicava também uma multiplicidade de Estados-nações assim constituídos, e de fato isso era uma consequência da autodeterminação popular. A Declaração francesa dos Direitos em 1795 assim propôs: "Cada povo é independente e soberano, qualquer que seja o número de

indivíduos que o compõem e a extensão do território que ocupa. Essa soberania é inalienável".235

Esta mudança é importante para a compreensão do ocorrido no Brasil durante o período colonial, mas também para compreender o que ocorreu durante todo o Império, em que a figura do Poder Moderador centrada no Imperador se tornou a base da nação, ou seja, apesar de tratar na Constituição Imperial de 1824 dos institutos da Revolução Francesa e da Tripartição Clássica das Funções de Montesquieu, não era no povo que se centrava o Estado, mas sim no Imperador, situação que não se modifica completamente com o advento da República, após a sua proclamação.