• Nenhum resultado encontrado

I MPACTOS NA O RGANIZAÇÃO DO E STADO E NA T RIPARTIÇÃO DAS F UNÇÕES

3. P APEL DAS S ÚMULAS V INCULANTES NO E STADO B RASILEIRO

3.5 I MPACTOS NA O RGANIZAÇÃO DO E STADO E NA T RIPARTIÇÃO DAS F UNÇÕES

Conforme abordado em inúmeras ocasiões, o Brasil se inseriu após a promulgação da Constituição Federal de 1988 em um Estado Democrático e Social de

332 Importante contribuição acerca do assunto nos traz Miguel Reale: “A jurisprudência, muitas vezes,

inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem completar o sistema objetivo do direito”. (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 25ª Edição, 2001, p. 159).

Direito. O que poderia ser um retrocesso frente à crescente expansão do neoliberalismo na década de 1980 foi o ponto de partida para a solidificação da democracia, algo que antes nunca ocorrera na história do país.

Assim, a organização do Estado priorizou os problemas sociais e as questões fundamentais para todo e qualquer cidadão brasileiro ou estrangeiro residentes em território nacional, havendo por bem elencar logo no início da Carta Constitucional os princípios que regem o Estado.334

Também tratou nas questões de organização como o Estado se constituiria, ou seja, qual o sistema utilizado para determinar as funções específicas de cada órgão no sistema brasileiro, conferindo-lhes a independência nas suas prerrogativas, mas, ao mesmo tempo, a harmonia335. Não podemos jamais esquecer, por isso, as funções típicas e atípicas dos Três Órgãos, bem como dos limites constitucionais para sua atividade no Estado, vez que primordiais à compreensão deste trabalho.336

Registra-se corrente doutrinária sustentando que o enunciado pretoriano obrigatório atrita com a desejável harmonia entre os Poderes. Assim, para Evandro Lins e Silva, “a Súmula com efeito vinculante absoluto para os juízes de primeira instância significa a introdução de um sucedâneo da lei em nosso sistema jurídico, produzindo a superposição ou conflito de atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário”; além disso, entende o autor que isso afronta outra garantia institucional, a saber, “a liberdade-poder de todos os magistrados de decidir os litígios segundo a lei, conforme o seu convencimento pessoal”. Também Luiz Flávio Gomes pensa que as

334 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

335 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto.

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

336 “Função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerias,

normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”, atributo que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce (normalmente pelo Poder Executivo e seus sujeitos auxiliares e, atipicamente, por órgãos de outros Poderes) na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante

comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder

Judiciário”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 29ª Edição, 2012, pp. 35-6).

Súmulas vinculantes “conflitam com o princípio da Separação dos Poderes (art. 2º e art. 60, § 4º, inciso III), visto que o Judiciário não pode ditar regras gerais e abstratas, com validade universal (non

exemplis sed legibus judicatum est), falta-lhe legitimação democrática para isso”.337

Se no exercício das funções atípicas não encontramos arbitrariedades, o mesmo não se pode dizer quando da análise das funções típicas, em que existe a possibilidade de abalo ao Pacto Federativo e ao princípio da independência e harmonia entre os órgãos do Estado Brasileiro, gerando insegurança jurídica aos processos já existentes e aos direitos garantidos na Constituição.

Então, quando o Judiciário e em especial o Supremo Tribunal Federal decide pelo ativismo judicial isso abre margem à ocorrência de fatos ainda mais gravosos sob o ponto de vista da independência e harmonia, pois colidentes diretamente com as atribuições designadas para cada órgão exercer em seu raio de abrangência.

O Supremo Tribunal Federal está atuando em áreas que não lhe são pertencentes, criando um ambiente instável e de insegurança jurídica. Na conjuntura atual, o Judiciário está se transformando em um superpoder, até mesmo porque sua atuação está se inserindo acima da própria lei, com o pretesto de ser mera interpretação da mesma.

Quando analisamos as alterações inseridas pela EC 45/04 na Reforma do Judiciário, percebe-se que a Constituição Federal passa a permitir que o Supremo Tribunal Federal atue no campo Legislativo por meio das Súmulas Vinculantes. É nítida que a nova configuração hermenêutica do texto constitucional permite e confere prerrogativas ao Judiciário que ultrapassam os limites do razoável e acabam por atingir, interferir e conferir função que pertence tipicamente ao Legislativo.

É fato que a regra não permite que os órgãos interfiram nas funções dos demais, muito menos pratiquem atos típicos que não sejam aqueles determinados pela Constituição. Entretanto, a extrapolação desse limite do razoável para a esfera de suas funções típicas não pode ser encarado dentro da normalidade dos acontecimentos.

Dessa forma, em razão de vários fatores, como a própria inércia do Poder Legislativo, tal como a construção do texto constitucional vigente ao qual se deu feição nitidamente socializante e, ainda, não se pode descurar da influência de outros mecanismos, como a pressão midiática, por meio da opinião pública, a fim de que haja a implementação de políticas públicas por parte do Poder Judiciário – ainda que este não tenha competência para tanto e nem mesmo legitimidade democrática, já que seus membros são escolhidos por critérios técnicos, e não por mecanismo eletivos, como no caso dos

representantes eleitos por voto popular para o exercício de cargos do Executivo e Legislativo – de forma a se estimular a politização do Judiciário.338

A inércia ou mesmo a operacionalidade falha de um dos órgãos no exercício de suas funções não permite pressupor que outro órgão possa ultrajá-lo de suas funções e tomar para si a prerrogativa de desempenhar seus cargos. Isto vale tanto para o Judiciário em legislar tipicamente, como para o Executivo tomar para si essa mesma possibilidade, conforme já ocorrido tantas outras vezes por meio dos Decretos-Leis, que hoje ganharam a roupagem das Medidas Provisórias.

É perigoso e ao mesmo tempo inseguro este tipo de pensamento, pois a instabilidade constitucional seria latente mediante a insurgência de um órgão sobre os demais. Estaremos diante de práticas que atingem diretamente a democracia brasileira.

Os impactos no Estado estão sendo sentidos e quem sofre é a sociedade. A atual configuração não caracteriza o sistema de freios e contrapesos, mas sim um sistema que não faz diferença alguma na manutenção da Tripartição das Funções. Verificamos, pois, a existência de superpoderes que mais se preocupam com as questões de como se sobrepor e enfraquecer os demais do que com seus deveres na sociedade.

Verificamos que, diferentemente das súmulas sem efeito vinculante, que se caracterizam como institutos jurídicos de orientação sobre o posicionamento dos tribunais, as Súmulas Vinculantes, por sua vez, têm efeitos erga omnes e recaem sobre tudo e todos, além de serem exclusivas do Supremo Tribunal Federal.

A diferenciação entre estes dois institutos foi também tratada pelos juristas brasileiros quando do questionamento sobre a possibilidade de criação das Súmulas Vinculantes e suas afirmações em audiências públicas e em entrevistas constitui importante fonte para identificarmos os motivos de as Súmulas Vinculantes não estarem de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.

Inicialmente é bom lembrarmos que, quando da instituição das Súmulas na Corte Suprema na década de 1960, o intuito foi definir em pequenos enunciados o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre temas repetidos nos julgamentos, sem que tais verbetes vinculassem as decisões das instâncias inferiores ou da administração pública direta e indireta, além do Legislativo. Conforme o Ministro Evandro Lins e Silva:

Para os não iniciados, para o público em geral, diremos: Súmula foi a expressão de que se valeu Victor Nunes Leal, nos idos de 1963, para definir, em pequenos enunciados, o que o Supremo Tribunal Federal, onde era um dos seus maiores ministros, vinha decidindo de modo reiterado acerca de temas que se repetiam amiudadamente em seus julgamentos. Era uma medida, de natureza regimental, que se destinava, primordialmente, a descongestionar os trabalhos do tribunal, simplificando e tornando mais célere a ação de seus juízes. Ao mesmo tempo, a Súmula servia de informação a todos os magistrados do País e aos advogados, dando a conhecer a orientação da Corte Suprema nas questões mais frequentes. Houve críticas e resistências à sua implantação sob o temor de que ela provocasse a estagnação da jurisprudência ou que pretendesse atuar com força de lei. Seu criador, Victor Nunes, saiu a campo e, em conferências proferidas na época, explicou e deixou bem claro que a Súmula não tinha caráter impositivo ou obrigatório. Ela era matéria puramente regimental e podia ser alterada a qualquer momento, por sugestão dos ministros ou das partes, através de agravo contra o despacho de arquivamento do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento [...] A Súmula é um valioso instrumento, que pode ser invocado pelos advogados como elemento de persuasão, mas não vincula nem mesmo os juízes de primeiro grau. Único sobrevivente dos ministros presentes à sessão de sua criação, reivindico o conhecimento da sua origem, da sua razão de ser, da sua finalidade e das suas limitações.339

A súmula tinha o pressuposto de servir como orientação geral à sociedade e ao Estado, sem trazer consigo o efeito de obrigatoriedade, seja para os juízes de primeiro grau ou para as demais esferas do Judiciário.

A sua finalidade, em momento algum, vinculava as instâncias do Judiciário ou possuía efeitos nos demais Órgãos e na Administração Pública direta e indireta. Tanto é verdade que essas súmulas continuam sendo editadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelos demais tribunais de todo o país, não havendo qualquer relação de vinculação decisória nestes enunciados, que servem tão somente como referenciais.

Quando voltamos os olhares às Súmulas Vinculantes, o mesmo Ministro Evandro Lins e Silva se mostra inteiramente contrário às mesmas, vez que estaríamos diante de uma limitação nas atribuições dos julgadores e se criaria a figura do “juiz legislador”, conforme foi preconizado por Pedro Lessa.

Que são as ‘súmulas vinculantes’ senão uma repetição dessa força obrigatória que se quer dar às decisões sumuladas pelos tribunais superiores? [...] Nunca se imaginou a possibilidade de conferir à Súmula o poder vinculante ou de cumprimento obrigatório, imutável para o próprio tribunal que a edita ou para as instâncias inferiores. Do contrário teríamos a revivescência dos Assentos do Superior Tribunal de Justiça, na esteira dos Assentos das Casas da Suplicação,

339 SILVA, Evandro Lins e. Crime de Hermenêutica e Súmulas Vinculantes. Revista Consulex nº 5 de

considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, desde a fundação da República. Súmula ‘vinculante’ seria um novo nome para os velhos Assentos. O grande Ministro Pedro Lessa já estigmatizara a figura do ‘juiz legislador’, não prevista ‘pelos que organizaram e limitaram os nossos poderes políticos’.340

Uma súmula de cumprimento obrigatório pelos tribunais e sem possibilidade de interpretações de acordo com as peculiaridades de cada caso carrega o caráter de imutabilidade da decisão e se torna prejudicial ao direito que nunca terá um desenvolvimento nas questões sumuladas por impedimentos obrigatórios delas próprias.

A falta ou mesmo a dificuldade de mudanças no entendimento petrificado das súmulas vinculantes atinge a Tripartição das Funções e impacta diretamente nos meandros da sociedade.

Neste mesmo diapasão, o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, quando da audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), se manifestou de maneira contrária ao instituto das súmulas vinculantes, haja vista que o perigo de completo engessamento do Judiciário e de qualquer possibilidade de mudança, que desde já estaria impedida.

Anunciada como um remédio aparentemente milagroso, ao qual se atribui o condão de limpar a pauta dos tribunais e acabar com a morosidade, a súmula vinculante tem tantos efeitos colaterais que acredito ser uma temeridade a sua implantação. A medida instalaria a ditadura do Supremo no Brasil. Criar a possibilidade da súmula vinculante vai efetivamente matar nos tribunais brasileiros aquilo que eles têm de melhor, que é o frescor, a possibilidade da modificação, do pensamento lateral e criativo em relação às questões, que são mutáveis. Com a implantação da súmula vinculante o Supremo fica com muito poder e é uma coisa que engessa um pouco a jurisprudência. A grande virtude, qualidade da jurisprudência, é exatamente a sua variedade, a sua mobilidade, a sua possibilidade de se transformar. Se durante o Plano Collor o Supremo tivesse sumulado a sua posição, não teríamos a liberação das poupanças. O Plano teria sido engessado e teria sido cumprido, porque naquele momento o STF foi com uma posição em que houve uma hesitação. Os juízes de primeira instância foram liberando as poupanças e ganhando respeitabilidade.341

Interessante notar a questão da ditadura do Supremo no Brasil, uma vez que o órgão máximo do Judiciário acabaria por engessar todo o sistema atingindo diretamente o próprio ordenamento jurídico, que seria colocado em segundo plano quando já

340 SILVA, Evandro Lins e. Ob. Cit. Revista Consultor Jurídico, edição de 10.01.2001.

341 BASTOS, Márcio Thomaz. Súmula vinculante instalaria ditadura no Judiciário. Jornal Hora do Povo,

fev. 2004. Disponível em: <ktp://www.horadopovo.com.br/2004/ fevereiro/1 3-02-O4Ipag3d .htm>. Acesso em: 07/01/2014.