• Nenhum resultado encontrado

S ÚMULAS V INCULANTES E OS P RINCÍPIOS C ONSTITUCIONAIS

3. P APEL DAS S ÚMULAS V INCULANTES NO E STADO B RASILEIRO

3.3 S ÚMULAS V INCULANTES E OS P RINCÍPIOS C ONSTITUCIONAIS

O regramento basilar do sistema jurídico brasileiro consiste na hierarquização legal. A norma inferior busca sua validade na imediatamente superior, tendo todas por dever a observância da Constituição Federal, regendo atualmente a Carta Política de 1988, não havendo nada acima dela (somente a Norma Hipotética Fundamental, segundo a visão teórica kelseniana).

As Súmulas Vinculantes não estão inseridas na categoria de leis, ou caso contrário seriam produzidas pelo Legislativo, não pelo Judiciário, não estando encaixadas em nenhuma das hipóteses de hierarquização das leis. Em outras palavras, significa afirmar que pela leitura do texto constitucional, as Súmulas Vinculantes são

309 BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 setembro de 1942. Fonte: Planalto.

Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os

meios interpretativos dessas mesmas leis. Não se trata de interpretação extensiva da norma constitucional, mas pura e simplesmente de hermenêutica.

Contudo, não se pode olvidar que as Súmulas, sejam elas vinculantes, impeditivas de recursos ou simplesmente de orientação, devem respeitar ao regramento para sua fomentação e validade, obedecendo critérios objetivos constantes das leis e subjetivos, através do livre convencimento do magistrado.

Ao se inserir a Súmula com efeito vinculante no orbe jurídico brasileiro, acabou- se por criar não uma jurisprudência de respaldo às decisões ou para orientação geral, mas sim uma forma obrigatória de regramento em que a observância acarreta inclusive a cassação da decisão judicial ou a declaração de nulidade do ato administrativo.

Não se trata, aqui, de reforma decisória de órgão colegiado, como ocorrem com os acórdãos provenientes da análise oriunda do duplo grau de jurisdição, mas sim de uma cassação da decisão judicial, como se esta nunca houvesse existido e, portanto, não produzindo os mínimos efeitos legais.

Extirpar-se-á desde logo o princípio constitucional do livre convencimento do juiz, que fica atrelado não às possibilidades legais existentes para julgamento do caso e sim pela impossibilidade geral de decisão trazida pela súmula vinculante, que impede qualquer movimento do julgador que não seja aquele estritamente designado na súmula.

Aliás, o duplo grau de jurisdição é outro princípio constitucional que deixará de existir quando o caso colidir com Súmula Vinculante, já que nem ao mesmo chegaria ao conhecimento dos tribunais a matéria, ficando parado logo na primeira instância e nunca é demais afirmar que tal princípio encontra respaldo nas garantias e direitos fundamentias dos cidadãos310, não podendo ser negado por um decisão com força normativa do Supremo Tribunal Federal.

Outro ponto primordial surge nesta análise, referente à questão da coisa julgada, em que corre-se o risco desta deixar de existir. Explica-se: ao se conferir a faculdade de retratação às Súmulas Vinculantes, como as demais decisões do Supremo Tribunal Federal, tal fato poderá atingir a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, baluartes da segurança jurídica que as Súmulas Vinculantes teoricamente visam proteger.

310 BRASIL. Ob. Cit. 5 de outubro de 1988. Fonte: Planalto.

Art.5º [...] [...]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Se nem mesmo a lei pode prejudicar tais atos, considerados cláusulas pétreas pela Constituição Federal de 1988, uma decisão judicial não pode, de igual maneira, produzir efeitos e prejudicar tais disposições. É um retrocesso legal afirmar que as súmulas vinculantes não podem causar esse efeito.

As Súmulas Vinculantes hoje se apresentam como “verdadeiras normas de um único artigo”, sendo que suas disposições possuem força obrigatória, embora não possuam tal poder, fazendo com que todo o Judiciário fique engessado e adstrito às determinações sumulares, além de compromoter também o Legislativo e a Administração Pública direta e indireta na sua função atípica de julgamento, função esta constitucionalmente prevista na esfera administrativa.

É difícil imaginar como as Súmulas Vinculantes podem condensar toda a realidade jurídica em disposições de poucas linhas. Nem mesmo uma Lei Complementar, que tem por intuito justamente completar o entendimento de determinada lei e/ou disposição legal consegue em tão pouco espaço fazê-lo, uma simples súmula não terá o êxito que seus partidários afirmam possuir.

Estamos diante de uma inferência perigosa que as Súmulas Vinculantes causam no aparato legal do Estado Brasileiro, isto porque sua existência ultrapassa a esfera da relação entre as partes em um caso concreto e atinge diretamente garantias fundamentais de terceiros, que veem seus direitos sendo mitigados sem nem ao menos terem ingressado no Judiciário, isto é, a segurança jurídica constitucional é relevada à segundo plano em nome da vinculação das decisões do STF, com força normativa.

Qual segurança jurídica um precedente deste pode produzir? Nenhuma. Essa é a resposta cabível. O instituto das Súmulas Vinculantes viola princípios estabelecidos pelo Poder Constituinte Originário e tendo sido inserido por meio de Emenda Constitucional deveria ter a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, que por evidência não o fará ou a Corte Suprema perderia sua nova “função típica” de legislar.

A corroborar com o acima explanado, o Ministro Celso de Mello, apud Encarnacion Alfonso Lor, declara que a súmula vinculante é “uma norma de decisão, ou seja, tem poder normativo”311. Com isso, percebe-se que as normas de decisão se enquadram em uma das espécies do gênero de norma, sem possuir força de Lei justamente por não ser uma norma jurídica.

Entretanto, há ainda quem acredite que as Súmulas Vinculantes, em caso de embate com a Lei, devem prevalecer no entendimento e na consecução do caso jurídico concreto. É o que assevera Wagner Giglio, apud Rodolfo de Camargo Mancuso, quando afirma que elas “atingem um status superior ao da Lei, pois no entrechoque entre lei e súmula prevalece esta sobre aquela”.312

Este posicionamento não somente demonstra uma afronta aos princípios constitucionais como também coloca em risco a já citada segurança jurídica, necessária para toda e qualquer ideia de direito positivo vigente no Brasil. Não é, contudo, uma visão isolada, mas sim adotada por boa parte da doutrina quando defendem a utilização das Súmulas Vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.

Além dessa defesa desmedida, tais doutrinadores ainda afirmam que não há usurpação de funções quando a Corte Suprema edita suas Súmulas Vinculantes, posto que esta atividade se encontra respaldada na Carta Magna. Contudo, a mera análise do instituto e do ato sumular se colocam como atividade puramente legislativa, ainda que autorizado pela Constituição, motivo pelo qual pugnamos pela inconstitucionalidade e vedação geral desta prática.

Os argumentos utilizados são fracos e não demonstram de maneira clara como as Súmulas Vinculantes podem ser úteis ao Estado Democrático e Social de Direito Brasileiro, isto porque as próprias teses contrariam-se e se afrontam, mostrando que a necessidade de existir uma pretensa “supremacia” do Judiciário sobre o Executivo e o Legislativo deve ser justificada de qualquer forma pelos operadores do direito, como se fosse uma questão de “justiça histórica”.

Oportuno lembrar que a igualdade e certeza devem ser garantidas no momento da elaboração das leis, e, sobretudo, no momento de sua aplicação. Na sistemática anterior à súmula vinculante, as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade difuso valiam apenas para um único caso. A decisão do Supremo Tribunal, órgão máximo da jurisdição constitucional, era desprovida de força para se impor sobre os outros juízes e tribunais, ou seja, a mesma norma poderia ser considerada constitucional por alguns e inconstitucional para outros, propiciando forte insegurança jurídica.313

Pergunta-se: é razão para a criação de uma Súmula com força normativa e que vincule todo o Judiciário, bem como a Administração Direta e Indireta? Não se trata

312 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, 2010, p. 365.

313 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira

(Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 135.

simplesmente sobre a possibilidade decisória do julgador, mas sim do ativismo judicial, ao permitir que o Supremo Tribunal Federal possa “legislar” quando sua função é julgar e guardar a Constituição Federal. Se há o risco de uma mesma lei ser considerada constitucional por uns e inconstitucional por outros, cabe aos legitimados proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e esta decisão, que só poderá ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal, terá efeito sobre a lei ou o motivo da controvérsia, não tendo qualquer necessidade de súmulas vinculantes.

Em resumo, as decisões do Supremo Tribunal Federal devem recair sobre os casos concretos que lhe chegam por sua competência originaria ou por meio de recursos, sem que os mesmos sejam “pré-julgados” por súmulas vinculantes. Ainda que a decisão verse sobre determinada lei, devemos lembrar que a consonância para tanto deve ser encontrada na Constituição Federal, que possui inúmeras garantias ignoradas pelas súmulas vinculantes.

A defesa ao instituto, porém, permanece sendo realizada e alguns afirmam que as súmulas vinculantes chegaram para suprir a necessidade de aplicação isonômica do direito aos jurisdicionados, bem como em impedir divergências interpretativas. Em outras palavras, as súmulas vinculantes garantem que cada jurisdicionado terá a correta aplicação interpretativa da norma constitucional ao seu caso. No entanto, se contradizem ao afirmarem que muitos processos possuem as mesmas questões de direito e não acrescentam nada ao debate das questões jurídicas.

Para além disso, impede sublinhar o elevado número de processos submetidos a julgamento no STF. Na maioria das vezes, envolvem as mesmas questões de direito, exigindo um esforço repetitivo e burocrático, sem acrescentar ao debate novas questões jurídicas. Assim, com a adoção da súmula vinculante se pretende conter e resolver os litígios de massa que respeitem ao mesmo problema constitucional.314

Resolver litígios de massa não é, de maneira alguma, garantir que cada jurisdicionado tenha a aplicação isonômica da interpretação jurídico-constitucional, mas sim que todos os casos são iguais quando colidentes com Súmula Vinculante.

São muitos os princípios constitucionais envolvidos nessa discussão. Afirmar de modo simplório que as Súmulas Vinculantes não atingem princípios basilares do direito fundamental de todo cidadão, tais como o acesso ao Judiciário, o julgamento isonômico,

314 BOLCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinicius. Ob. Cit. In Vladmir Oliveira da Silveira

(Org.). Revista de Direito Brasileira. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Ano 3, vol. 5, maio-ago/2013, p. 135.

o livre convencimento do juiz, dentre outros já explanados acima, e relevar o fato de que se está criando um superpoder, com atribuições além daquelas constitucionalmente permitidas, é extremamente perigoso e atentatório.

É um absurdo pensar que uma súmula que não passa de entendimento do STF possa estar e ficar acima da Lei, ou melhor, de toda e qualquer Lei. Seria, pois, colocar o sistema jurídico brasileiro subjugado ao Judiciário, especificamente à Suprema Corte, numa afronta à Constituição e à sociedade brasileira, que detém o Poder Soberano.

Não cabe ao Supremo Tribunal Federal intervir na sociedade através das súmulas vinculantes como se estas fossem leis, quando transformam o fato social em fato jurídico pela ordem legalmente instituída. As decisões judiciais (e isto deve ficar bem claro), não são leis gerais, de modo que a força das sentenças fica restrita às partes, o que denota uma clara supressão de instância.

A norma geral que, a certas condições determinadas de modo abstrato, vincula certas consequências determinadas de modo abstrato tem de ser individualizada e concretizada para entrar em contato com a vida social, para ser aplicada à realidade. Para esse fim, tem-se de, num caso concreto, averiguar se as condições, determinadas in abstracto na norma geral, estão presentes in concreto, para que a sanção, determinada in abstracto na norma geral, possa ser ordenada e executada in concreto.315

Segundo a Constituição Federal de 1988, é função do Judiciário realizar a transição do fato abstrato para a realidade concreta por meio do processo judicial. Essa é sua função típica, que se inicia ao receber o processo e se finda com a decisão judicial, sem vícios e sem vinculações a outras decisões e ainda que os casos pareçam similares, jamais serão idênticos.

Não obstante, a segurança jurídica é um princípio basilar contido não apenas no Brasil, mas em todos os países inseridos no Estado Democrático de Direito, seja no sistema codificado ou consuetudinário e a Constituição Federal prevê este instituto em diversas passagens, mas basicamente procura assegurar que a lei não impacte contrariamente ao sistema, atuando harmonicamente na sociedade, regulando-a.

Temos que nos recordar sempre, com isso, que no direito positivo o que oferece segurança ao sistema normativo é o fato de a lei estar vigente no tempo e somente outra lei no mesmo patamar ou superior poderá retirar sua eficácia do ordenamento jurídico.

Há um sentido filosófico e um sentido sociológico de positivação. No primeiro, positivação designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer

um direito por força de um ato de vontade. Segue daí a tese segundo a qual todo e qualquer direito é um fruto de atos dessa natureza, ou seja, o direito é um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas. [...] No sentido sociológico, positivação é um fenômeno que naquele século [XIX] será representado pela crescente importância da lei votada pelos parlamentos como fonte do direito.316

Não obstante, devemos nos atentar ao fato de que as súmulas vinculantes não se encaixam neste tipo de raciocínio. O motivo? Pura e simplesmente porque esta máxima aplicar-se-á somente no caso das leis e assim devemos entender toda a atividade típica do Legislativo. O Judiciário não elabora leis, mas julga conforme suas disposições.

Dotar as súmulas vinculantes de efeitos normativos é não apenas conferir ao Judiciário a prerrogativa de legislar (tipicamente) como também interferir na separação das funções, sendo não apenas inconstitucional, mas prejudicial ao sistema jurídico.

Além do Estado, temos também que os cidadãos ficam compelidos à observância das súmulas vinculantes, o que ultrapassa os limites das decisões entre as partes litigantes e atinge terceiros, suprimindo até mesmo direitos fundamentais como o devido processo legal e o acesso ao Judiciário, acabando com a segurança jurídica.

Segurança jurídica pode significar duas coisas: 1. Segurança através do direito, e portanto segurança face ao roubo, homicídio, furto, incumprimento do contrato; 2. Segurança do próprio direito, garantia da sua cognoscibilidade, aplicabilidade, efetividade. Apenas existe segurança através do direito, quando o próprio direito é seguro.317

A segurança jurídica no Estado de Direito tem dois significados, podendo ser aquela advinda do direito, ou seja, o bem tutelado pelo direito positivado ou, de outra feita, que o direito é cognoscitivo, de modo a garantir que o próprio direito é seguro, pois não é possível que a eficácia jurídica seja colocada em jogo.

Quando se impede o acesso ao Judiciário, não por força de lei, mas de decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, há clara violação de direitos tidos como fundamentais e não falamos apenas do direito de petição, mas até mesmo de extinguir direitos, o que cabe à lei. A decisão, seja ela advinda de órgão colegiado ou unitário, não pode atingir direito de terceiro, sobretudo quando se impede a análise da especificidade de cada caso, garantindo a segurança jurídica na aplicação da lei.

316 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão,

Dominação. São Paulo: Editora Atlas, 4ª Edição, 2003, p. 74.