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2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS

2.1 Aspectos gerais do federalismo

A repartição de competências compõe uma das características do federalismo, de modo que, para o seu estudo, torna-se necessário apresentar os aspectos comuns desta forma de Estado.

O termo federalismo provém do latim foedus, que significa pacto ou aliança de estados.35 Em essência, um arranjo federal é uma parceria estabelecida e regulada por um pacto, o que prevê um tipo especial de divisão de poder entre os entes.

O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização político territorial do poder, surgido no século XVIII com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos de 1787.36A sua instituição é favorecida pela presença de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, sendo elas de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, socioeconômico (desigualdades regionais), nas quais se torna necessária a instituição de uma forma compartilhada de organização político territorial do poder que, ao mesmo tempo, mantenha a integridade territorial do país.

Falar em federalismo é falar em forma de Estado. O federalismo é uma das formas de Estado existentes no constitucionalismo, na qual se objetiva distribuir o poder, preservando a autonomia dos entes políticos que compõem a federação.37 Pode-se afirmar que no federalismo convivem num mesmo território uma ordem jurídica global e outras ordens jurídicas parciais, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências.

A federação essencialmente busca conjugar as vantagens da autonomia política com outras decorrentes da existência do poder central. Desse modo, a autonomia das

35 Para Michel Temer, é da união, da aliança, do pacto entre os Estados que surge a Federação (Cf. TEMER,

Michel. Elementos de direito constitucional, 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 59).

36 As bases dos federalismo moderno encontram-se na compilação dos artigos publicados por Alexander

Hamilton, James Madison e John Jay no jornal Daily Advertiser, recebendo o nome de The Federalist Paper.

37 A forma de Estado é “o modo do exercício do poder político em função do território” (SILVA, José Afonso

da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, .p. 98). Acrescente-se que sob a ótica da forma geográfica de distribuição interna do exercício do poder político, Pedro Estevam Alves Pinto Serrano, com base na doutrina nacional sobre o assunto, esclarece que não há um modelo único de Estado unitário a ser servilmente recebido, indicando alguns tipos de Estado, a saber: Estado Unitário, Estado Unitário Descentralizado, Estado Constitucionalmente Descentralizado, Estado Regional e Estado Federal (Cf. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Região Metropolitana e seu regime constitucional. São Paulo: Editora Verbatim, 2009, p. 26).

unidades federadas e a consequente descentralização político-administrativa são as características mais marcantes do Estado Federal.

As instituições clássicas e paradigmáticas do federalismo que serviram de base para a organização do Estado Federal foram o modelo norte-americano e o alemão.

A propósito, os estados que formaram o sistema de federalismo norte- americano mantiveram poderes sólidos em suas mãos, só entregando ao poder central o expressamente enumerado no texto constitucional por eles redigido. Assim, os americanos buscaram assegurar que o Governo Federal não se tornasse forte o suficiente a ponto de eliminar a autonomia dos Estados-membros. A divisão entre o poder central e o poder local, estabelecida no sistema federal norte-americano, recebeu o nome de “federalismo dual”.38

Outro modelo de estado federal que também influenciou vários ordenamentos foi o federalismo alemão, instituído pela constituição de Weimar, de 1919, e institucionalizado pela Lei Fundamental de 1948. Nele instituiu-se as bases do federalismo cooperativo onde a inter-relação das instâncias de poder, bem como a colaboração delas tornaram-se um mecanismo marcante. Em tal arranjo busca-se o desenvolvimento de mecanismos de aproximação, cooperação, auxílio e ajuda dos governos (central e locais).39

É importante ressaltar que no federalismo cada ordem de poder detém a capacidade de autogoverno, com raio de atuação nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro. No entanto, a nota distintiva do federalismo reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – chamados, em alguns sistemas, de Estados, Províncias, Cantões etc.. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial.

Assim, do ponto de vista jurídico, a autonomia pode ser conceituada como uma área de competência limitada pelo Direito. Ou seja, as entidades com autonomia gozam de ampla margem de atuação (com órgãos governamentais próprios que independem do poder central) dentro das competências que lhes são fixadas pela Constituição Federal.

Celso Ribeiro Bastos formula cuidadosa manifestação sobre o conceito de autonomia, afirmando ser esta:

38 Cf. REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 96. Há de se acrescentar que, a partir da década de trinta, a política do

New Deal forçou o desenvolvimento de mecanismos cooperativos nos Estados Unidos, com maior penetração do

governo federal no domínio da saúde e do bem-estar social.

(...) a margem de discrição de que uma pessoa goza para decidir sobre seus negócios, mas sempre limitada essa margem pelo próprio direito. Daí porque se falar que os Estados-Membros são autônomos, ou que os municípios são autônomos; ambos atuam dentro de um quadro ou de uma moldura jurídica definida pela Constituição Federal. Autonomia, pois, não é uma amplitude incondicionada ou ilimitada de atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre certas matérias, respeitados, sempre, princípios fixados na Constituição.40

A descentralização político-administrativa, por sua vez, é um fator importante de identificação de um Estado como federal ou não.41 Em essência, significa a transferência de competências de um centro de poder para outro, que passa a ser o detentor delas, cabendo ressaltar que “a transferência de competências políticas importa em atribuir ao novo centro a possibilidade de estabelecer normas jurídicas sobre determinados pontos, ou seja, o novo ente passa a ter capacidade legislativa, sem desprezar, é claro, a capacidade administrativa, ou seja, a capacidade material”.42

Nesse sentido, a autonomia e a descentralização política permitem que o Estado tenha vários centros de poder dotados de capacidade legislativa e administrativa, ou seja, com competência política. Os estados-membros não apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também lhes é reconhecido elaborá-las. Em regra, isso resulta em que se perceba no Estado Federal diversas esferas de poder normativo sobre um mesmo território.

Por certo, a federação acarreta repartição delicada de competências entre as unidades federativas, o que implica proibição de usurpação de atividades conferidas a outros entes. Destaca-se que se perfaz imprescindível o estabelecimento de uma Constituição rígida, que estabeleça um critério mais complexo de modificação das normas constitucionais, para a manutenção de um Estado Federal.

Corroborando tal assertiva, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior expressam-se no seguinte sentido:

40 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 474. 41 A simples distribuição de competências não é o bastante para configurar um Estado federativo; podem

perfeitamente existir Estados unitários descentralizados, desde que não possuam autonomia e ajam por delegação do órgão central, bem como Estados Constitucionalmente Descentralizados, cujo ponto de diferença encontra-se na possibilidade do poder central alterar a descentralização política apenas por alterações na Carta Magna. (Cf. SERRANO, Pedro Alves Pinto. Região metropolitana e seu regime constitucional, p. 26-27).

42 DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. Competência constitucional em matéria de urbanismo. Direito

urbanístico e ambiental/ Coordenadores: Adilson Abreu Dallari e Daniela Campos Libório Di Sarno. Belo

A repartição de competências entre as vontades do Estado, como caracterizador da descentralização política, não vem, contudo, despida de qualquer formalidade. Ela deve ter sede constitucional, tornando-se parte de sua essência. Não se pode pensar em uma divisão de competências que não esteja estampada no texto constitucional, já que, como visto, nesse ponto reside a tônica mais original do Estado Federal. Fixada em legislação ordinária, a alteração seria de fácil operacionalidade, tornando o pacto federativo totalmente flácido, quebrando, portanto, o ajuste sobre o qual se assenta a idéia federalista (...). 43

A autonomia figura como critério de coexistência na federação e limite de competência, no sentido de que a cada ente federado confere-se uma medida de atuação determinada pela Constituição Federal, impedindo, assim, que cada um deles em sua concreta atividade ultrapasse tal limite. Como consequência natural dessa característica há a necessidade de assegurar que essa partilha de competências não seja subvertida no funcionamento normal das coisas. Em outras palavras, é preciso que o disposto na Constituição não se revele, na prática, letra morta, de modo que os conflitos que venham existir entre os Estados-membros ou entre qualquer deles com a União possam ser resolvidos para a manutenção da paz e da integridade do Estado como um todo.

É necessária, então, a existência de um Tribunal constitucional que controle a repartição de competências, mantendo o pacto federativo.

A propósito, é inconcebível manter um pacto federativo com todas as implicações dele decorrentes, sem um órgão incumbido de solucionar dúvidas, isto é, dizer os limites de atuação de cada ente. Assim, deve esse órgão interpretar a Constituição, definindo, entre outras coisas o que é de competência de cada um.

Além disso, o Estado Federal deve conter um dispositivo de segurança, necessário à sua sobrevivência. Este dispositivo se constitui, na realidade, numa forma de mantença do federalismo diante de graves ameaças. Trata-se da intervenção federal. Pela intervenção federal, a União intervém em um ou alguns Estados onde se verifiquem graves violações dos princípios federativos.

No Estado Federal convivem num mesmo território uma ordem jurídica global e outras ordens jurídicas parciais. Certamente, a vontade destas deve influir na vontade daquela, vontade que se expressa, sobretudo, por meio de leis, razão pela qual os Estados-

43 ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev.

membros participam da formação da União através do Senado Federal, com representação paritária, em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros.

Mais uma característica do Estado Federal é a possibilidade que cada ente deve ter de se auto-organizar por meio de Constituição própria, na qual seus assuntos locais possam ser tratados. Isso porque, a exemplo da União, cada uma das unidades federativas dispõem de aparato organizacional próprio. As vontades parciais detêm uma forte presença junto à vida dos cidadãos, na realização das funções de polícia, de prestação de ensino, de prestação de serviços à saúde, e um sem-número de outras atividades, e é com essas máquinas administrativas que o cidadão deve lidar.