• Nenhum resultado encontrado

3. O PLANEJAMENTO E OS PLANOS URBANÍSTICOS

3.2 O planejamento como instituto jurídico

Foram as Constituições do século XX que passaram a conter disposições sobre a ordem econômica83e, por vezes, a social84, já que tais matérias eram inconcebíveis nos textos constitucionais dos séculos anteriores.

Nesse sentido, para Celso Ribeiro Bastos, “os profundos abalos da ordem econômica, causados sobretudo por guerras e outras crises na economia, levaram as Constituições a trazerem dispositivos traçando as linhas mestras da estruturação econômica do Estado”.85

No mundo, dois sistemas disputavam o privilégio de organizar a vida econômica. O sistema socialista, calcado na propriedade coletiva dos meios de produção e o capitalista, fundado na propriedade privada e na livre concorrência. As economias socialistas desde logo adotaram o planejamento, com os diversos agentes econômicos e empresas estatais obedecendo a um plano único nacional traçado por um poder central (plano este centralizado e obrigatório para todos).

Essa ideia de impor metas fixas e meios racionais influenciou também os países capitalistas que, sem abandonarem a economia de livre iniciativa, adotaram, de forma branda, o planejamento, especialmente diante da necessidade de atingir certos objetivos econômicos e sociais. Para Betty Mindlin “tornou-se claro que o simples jogo das forças de mercado, com pequena intervenção do Estado, era incapaz de levar aos resultados desejados pela sociedade”.86

Por isso, a atividade de planejamento sofreu um impulso considerável nas últimas décadas, devido ao grau de intervenção da Administração Pública no tecido social, especialmente nas funções de apoio ao desenvolvimento econômico e social, de promoção da

83 Fábio Konder Comparato define ordem econômica como “o conjunto de atividades de produção e distribuição

de bens e serviços no mercado” (Ordem econômica na constituição brasileira de 1988. Revista de direito público. São Paulo: RT, ano 23, jan/mar, n. 93, 1990, p. 264).

84 A intervenção do Estado no domínio social ocorre por meio da prestação de serviço público e da atividade de

fomento, havendo estreita relação entre a intervenção do Estado no domínio social e os direitos sociais previstos constitucionalmente (Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 808-809).

85 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 719.

86 MINDLIN, Betty. O conceito de planejamento. Planejamento no Brasil. Org. Betty Mindlin, 5. ed. São Paulo:

justiça social e de prestação social, na qual o plano tornou-se um instrumento essencial da ação administrativa nos Estados com o modelo de Bem-Estar Social.

Nos dizeres de Fernando Alves Correia, com base nas lições de doutrinadores europeus, “o plano é, assim, um sinal evidente da transformação verificada no modo de ser das funções estaduais, no seguimento da passagem do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social”.87 O autor lusitano destaca que, apesar da diminuição da euforia planificadora, ninguém hoje contesta a necessidade de planificação das atividades do Estado. Para ele “uma pluralidade de factores aponta nessa direcção, designadamente a necessidade de: coordenar e programar a vasta gama de intervenções do Estado nos mais variados sectores sociais; estabelecer a cooperação entre os vários serviços administrativos, em consequência da crescente divisão de trabalho no âmbito da Administração Pública; utilizar racionalmente os meios e as capacidades - que são escassos – para a obtenção de um fim; e compatibilizar interesses diferenciados numa sociedade pluralista”.88

O planejamento, em si, não tem dimensão jurídica, não passando de propostas técnicas ou meramente administrativas enquanto não forem seus objetivos consubstanciados e materializados pelos planos.

Assim, para José Afonso da Silva, o planejamento “é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos”.89 O autor em questão ainda enfatiza que tal processo, no início, “não era juridicamente imposto, mas simples técnica, de que o administrado se serviria ou não”90, advindo daí alguns problemas, vez que “as transformações pretendidas, a fim de atingir os objetivos colimados, importavam constrangimentos aos administrados e aos seus bens, que colocavam o problema da constitucionalidade do planejamento e, especialmente, do plano que o documenta administrativa e juridicamente”.91

O ordenamento jurídico, paulatinamente, incorporou as noções bem desenvolvidas sobre o tema fornecidas pelas Ciências da Economia, da Administração e do Urbanismo, como registra Jacintho Arruda Câmara:

O planejamento, antes de conquistar status de regra jurídica, ganhou a adesão dos teóricos da Ciência da Administração e da Economia. Em especial no campo

87 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 348. 88 Ibid., p. 349.

89 SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, p. 89. 90 Ibid., p. 89.

urbanístico, a ação de planejar foi considerada indispensável ao crescimento racional e ordenado das cidades. Repetia-se, como regra inquestionável, a necessidade de planejamento urbano. Tal regra, todavia, tinha caráter exclusivamente metajurídico. Trata-se de uma proposição da Ciência da Administração, do urbanismo. Não era dotada de juridicidade – vale dizer, seu descumprimento não demandava a aplicação de sanções jurídicas. A adoção do planejamento urbano, concretizado geralmente num plano diretor (às vezes aprovado em lei, outras vezes por mera decisão administrativa), dependia exclusivamente de uma avaliação de natureza político-administrativa. Assim, diversos Municípios editaram plano diretor sem que houvesse, contudo, obrigatoriedade de fazê-lo ou, mesmo, a fixação de qualquer padrão que estabelecesse um conteúdo mínimo a ser atendido pela planificação. A existência de um plano diretor era exigência que se punha no campo da Ciência da Administração Urbana, que somente adquiria contornos jurídicos se e quando fosse encampada na regulamentação (legal ou infralegal) de um dado Município.92

É importante ressaltar mais uma vez que o processo de planejamento não mais fica condicionado à mera vontade do administrador, passando a ser um mecanismo jurídico. Hodiernamente, trata-se de uma imposição constitucional e legal, mediante a obrigação de elaborar o plano, que é a forma pela qual se materializa o respectivo processo.

Nesse sentido, a nossa ordem jurídica contempla o Estado planejador, cujas ações devem ser orientadas pelo planejamento. Esta é a razão pela qual a Constituição Federal de 1988 indica vários dispositivos sobre planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, sobre o planejamento do uso e ocupação do solo urbano pelos municípios, sobre planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e orçamento anual, planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, além de disposições específicas sobre o plano diretor municipal.

Além disso, cumpre destacar que o artigo 174, caput, declara que o planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, sendo que o § 1º do mesmo dispositivo inclui o planejamento entre os instrumentos de atuação do Estado no domínio econômico.

92 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano diretor (art. 39 a 42). DALLARI, Adilson Abreu; e FERRAZ, Sérgio

Ou seja, o plano é imperativo para o setor público. Já no que tange ao setor privado, regido pelo princípio da livre iniciativa, o plano, em regra, é indicativo, pois o particular, no exercício da atividade econômica, poderá, ou não, aderir às diretrizes nele traçadas, o qual, por sua vez, serve-se de mecanismos indiretos para atrair os particulares ao processo de planejamento.93

José Afonso da Silva, escrevendo sobre a índole jurídica do plano e a sua repercussão para o setor privado enfatizou:

(...), se é certo que o plano indicativo não obriga o setor privado, é também certo, como uma nota de sua índole jurídica: (1º) que a liberdade de atuação do empresariado privado fica, em termos globais, condicionada à atuação governamental planejada; (2º) que o setor privado não pode atuar deliberadamente contra os objetivos do plano; (3º) que, naquelas hipóteses em que a atividade depende de autorização ou licença, a Administração poderá ter em conta os objetivos, previsões e requisitos estabelecidos, para outorgar, ou não, a autorização ou licença, pois, em tais casos, sua concessão ou denegação se converte em matéria regrada.94

O tratamento à problemática do planejamento e do plano é sintetizado por Marcos Geraldo Batistela, ao preconizar que:

Temos, portanto, que o planejamento constitui uma atividade ou método voltado ao conhecimento, a interpretação e a transformação de uma realidade a partir da disposição coordenada dos meios disponíveis para a consecução de determinados fins, e o plano é o documento, os registros dos fins pretendidos e dos meios a serem utilizados. Enquanto instituto jurídico, o plano está presente em vários ramos do direito público, especialmente no direito financeiro, no direito urbanístico e no direito econômico.95

93 Além desses dois tipos de planos, Lúcia Valle Figueiredo indica a existência dos planos incitativos. Nesse

sentido, a autora destaca que os planos indicativos são aqueles em que o governo apenas assinala em alguma direção, sem qualquer compromisso, sem pretender o engajamento da iniciativa privada. De outra parte, ela afirma que os planos incitativos são aqueles em que o governo não somente sinaliza, mas pretende também o engajamento da iniciativa privada para atingir seus fins, o que pode ocorrer através da concessão de incentivos, acesso privilegiado a financiamentos e outras medidas que tragam a colaboração da iniciativa privada (Cf. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento, p. 12-3. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: set. 2011).

94 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93.

É necessário ressaltar, no entanto, que o planejamento urbano, embora inserido como espécie de planejamento econômico, possui algumas características peculiares incluídas pelo ordenamento jurídico com base na Constituição de 1988, possibilitando uma intervenção mais acentuada do Estado na esfera jurídica privada. Desse modo, através dele não ocorre a intervenção no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio mais restrito da propriedade, na qual a ordem jurídica constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atividade urbanística (art. 182, § 1º).

Há de se destacar que a finalidade da atuação do Estado decorrente do planejamento urbano deve ser unicamente a ordenação do território de um Município destinada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, pois caso se pretenda, por meio de normas urbanísticas, a regulação de mercado ou atividade econômica, a intervenção não mais terá por característica a obrigatoriedade, uma vez que se verifica o desvio de finalidade. É o que ocorre, por exemplo, quando a pretexto de ordenar seu território, um Município, por intermédio de sua lei de zoneamento, restringe ou proíbe a realização de uma atividade econômica em determinada área da cidade, de maneira que, ao final, comprometa a livre-iniciativa.96

Nota-se, ainda, que no planejamento urbano não se verifica com nitidez a distinção do plano em imperativo e indicativo.

O que se verifica, em regra, “é que os planos urbanísticos podem ser gerais ou especiais (particularizados ou pormenorizados), e aqueles são menos vinculantes em relação aos particularizados, porque são de caráter mais normativo e dependentes de instrumentos ulteriores de concreção, enquanto os outros vinculam mais concretamente a atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.97

Nesse passo, os planos urbanísticos são dotados da mesma eficácia jurídica, variando apenas o seu círculo de destinatários, como adiante será analisado.