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2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS

2.2 O sistema federal brasileiro

O Brasil não tem acentuadas tradições federalistas. Tivemos um período monárquico em que, formalmente, vigorava o Estado unitário44 e, após a proclamação da República, floresceu o federalismo dualista, inspirado na Constituição norte-americana de 1787, caracterizada por uma maior expressão da autonomia dos Estados-membros.

As Constituições Federais posteriores à de 1891 promoveram a concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento dos estados. Nesse sentido, necessária a transcrição do entendimento de Raul Machado Horta:

As Constituições Federais posteriores à de 1891, mantendo a Federação em norma intangível da Lei Fundamental, foram progressivamente organizando a centralização do poder na União, que se tornou absorvente e insaciável, com a mutilação dos poderes estaduais, em processo de esvaziamento de substância e de conteúdo. A partir da Constituição Federal de 1934, a União intervencionista na legislação social, econômica e financeira passou a oferecer profundo contraste com

44 Ao contrário do que alguns sugerem o Estado organizado no período imperial, embora formalmente unitário,

caracterizou-se pela concessão de certa autonomia às províncias. Isto ocorreu especialmente no período regencial, após a abdicação de D. Pedro I, quando se verificou o protagonismo regional dos chefes e caudilhos locais, permitindo-se, inclusive, a eleição de presidentes de províncias e a organização de algumas funções públicas nestas localidades, como a policial, num cenário de revoltas regionais por autonomia. Os atos que se sucederam ao denominado Golpe da Maioridade, que ocorreu em 1840, permitiram o revigoramento dos dispositivos da Constituição de 1824 através do Poder Moderador, num forte sabor centralizador, abolindo algumas das inovações regenciais. Contudo, a transição para um sistema político mais centralizado não ocorreu sem conflitos. Em 1842, oligarquias regionais, como as de Minas e São Paulo, lideraram a Revolução Liberal, pegando em armas contra o governo imperial. Na combativa província de Pernambuco, durante a Revolução Praieira de 1848, os rebeldes contaram com a adesão popular, havendo até a defesa da reforma agrária, o que em muito assustou os grupos conservadores, que, talvez, pela primeira vez, fazem menção à “ameaça socialista” que pairava sobre o Brasil.(Cf. Del PRIORE, MARY e VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, p. 177-179).

os Estados-membros empobrecidos nas fontes da legislação e do poder. Os Estados se retraíam no definhamento de suas atribuições e a União se expandia no gigantismo de suas competências. O federalismo dualista da Primeira República acabou sendo substituído pelo Federalismo centrípeto de períodos posteriores, que depositava na União Federal o centro das decisões e do comando legislativo, político, econômico, financeiro, tributário e administrativo da Nação. 45

Há de se registrar, por oportuno, que a Constituição Federal de 1934 foi a que estruturou as bases do federalismo cooperativo, estimulando a ação conjunta da União e dos Estados-membros na solução de problemas sociais e econômicos.

Após um breve período em que a Carta de 1937 subjugou os Estados- membros à condição de meros entes territoriais descentralizados, a Constituição Federal de 1946 veio restabelecer e fortalecer as regras do federalismo cooperativo, com a fixação de políticas de desenvolvimento regionais.46 Nela, também, houve a consagração da autonomia dos Municípios.

A Constituição de 1967 e sua Emenda de 1969 mantiveram a concepção de federalismo cooperativo, a concentração de poderes nas mãos da União e o enfraquecimento dos Estados-membros e dos Municípios.

A Constituição Federal de 1988 não interrompeu a política de desenvolvimento regional do federalismo cooperativo. Contemplou na União a competência para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (art. 21, IX), bem como introduziu o tratamento reservado às “Regiões” (art. 43).

A atual Constituição prevê expressamente a repartição de competências, entre outros, nos arts. 21, 22, 23, 24, 25, 30 e de rendas nos arts. 153, 154, 155 e 156, mantendo assim a autonomia dos entes descentralizados.

Há de se registrar que o princípio federativo é característica marcante do Estado brasileiro, a ponto de ser subtraído da possibilidade de ser alterado até mesmo por emenda constitucional, ante o disposto no inciso I, do § 4º, do art. 60 da Constituição Federal,

45 HORTA, Raul Machado. Estrutura da Federação. Direito constitucional: teoria geral do Estado. Coleção

doutrinas essenciais, v. 2. Clèmerson Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 691-692.

46 O primeiro momento dessa tendência de desenvolvimento regional pode ser localizado na previsão contida no

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de 1946, que impunha ao Governo Federal a obrigação de traçar e executar um plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do Rio São Francisco e seus afluentes que, por certo, foi o embrião de outros órgãos regionais de desenvolvimento.

que consagra as vedações materiais perpétuas do nosso ordenamento constitucional ao exercício do poder de reforma.

A participação dos Estados-membros na ordem jurídica global (União) também pode ser vista no Estado brasileiro (art. 46). Os Estados possuem representantes no Senado, que é o responsável por manter o equilíbrio federativo. É possível dizer que também lhes é assegurada a autonomia política e administrativa, com a possibilidade de elaboração de uma Constituição própria pautada nos princípios constitucionais da União (art. 25).

Cabe mencionar que o entendimento adotado nesse trabalho é de que o sistema constitucional brasileiro trata os Municípios como entes federativos, muito embora eles não possuam representantes no Congresso Nacional.47

Partindo desse ponto de vista, tem-se que em nosso ordenamento a representação no Senado funciona mais como norma garantidora da unidade nacional do que como elemento caracterizador do ente federado.48

Nessa linha, a Constituição Federal de 1988, mantendo os Estados e o Distrito Federal na formação da Federação, contemplou os Municípios na composição da República Federativa (arts. 1º e 18), introduzindo-os na estrutura constitucional da organização político-administrativa do Estado Federal Brasileiro.

Além disso, a autonomia municipal está assegurada nos arts. 18, 29 e 30 da Constituição Federal, como poder de gerir seus próprios negócios dentro do círculo nela prefixado, que compreende as capacidades de: a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria; b) autogoverno pela eletividade do prefeito e dos vereadores; c) normatividade própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de legislar sobre áreas que lhe são reservadas; d) auto-administração, administração própria, para organizar, manter e prestar serviços de interesse local.

Na República brasileira existe um órgão constitucional que exerce o controle de constitucionalidade (Supremo Tribunal Federal), ao qual compete a guarda da Constituição e a garantia do pacto federativo (at. 101 e 102). Além disso, a Constituição

47 A doutrina se divide sobre o status federativo dos Municípios. Uns entendem que os Municípios, a partir da

Constituição de 1988, foram elevados à categoria de entes federativos, destacando-se, nesse sentido, BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de direito constitucional, p. 487; Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional 11. ed. Malheiros Editores, 2001, p. 312; HORTA, Raul Machado. Tendências atuais da federação brasileira. Direito

constitucional: teoria geral do Estado. Coleção doutrinas essenciais; v. 3. Clèmerson Merlin Clève, Luís

Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 233-234; ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 269. José Afonso da Silva, por outro lado, afirma que o Município integra a Federação, mas não é parte essencial desta (Curso de direito

constitucional positivo, p. 474-475). No mesmo sentido, José Nilo de Castro nega a qualidade de ente federativo

aos Municípios (Direito municipal positivo. 4. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 53-60).

Federal prevê um sistema de defesa da Constituição estadual contra ofensas de leis e demais atos dos poderes municipais, que compreende o controle por via de exceção, segundo o critério difuso, e o controle por via de ação direta, segundo o critério concentrado (de competência do Tribunal de Justiça).

A Constituição prevê ainda a hipótese de intervenção nos casos em que o pacto federativo for ameaçado (arts. 34 e 36), restando protegidas, assim, tanto a autonomia estadual como a autonomia municipal.

A forma como se procedeu a divisão de competências e de rendas entre as ordens federais no país é motivo de preocupação de parte da doutrina.

Nessa linha, Carlos Eduardo Dieder Reverbal aponta algumas incongruências do federalismo da Constituição de 1988. Para ele, “se observarmos nosso texto constitucional, abstraindo o nominalismo ainda existente, chegaremos à conclusão de estarmos mais próximos a um Estado Unitário Centralizado, ou quem sabe a um Estado Unitário com pouca Descentralização ao poder local, do que a forma federativa de Estado”. Diz ainda o autor que o federalismo brasileiro reserva aos Estados-membros o que não lhes for vedado, residindo o problema exatamente neste ponto. No seu entender, o rol de competências da União é tão extenso (arts. 21, 22, 153), e a ampliação das competências dos Municípios é de considerável extensão (arts. 30 e 156) que praticamente nada resta, sobra, remanesce, ou fica de resíduo ao Estado. Ademais, no âmbito da legislação concorrente (artigo 24 e seus parágrafos), o referido autor destaca que a União não fica restrita apenas ao estabelecimento de normas gerais, sendo tal mecanismo federativo utilizado mais no sentido de ampliar a competência da União, do que estabelecer normas gerais para posterior aplicação das normas especiais pelos Estados-membros.49

A despeito dessas críticas, é correto afirmar, sob o ponto de vista jurídico, que o Estado brasileiro expressa um modo de ser do Estado em que se divisa uma organização descentralizada, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central, regional e locais, consagrada na Constituição Federal, em que os estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão.

No Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, com jurisdição nacional, é o órgão encarregado de dirimir os conflitos federativos.