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4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO

4.2 Planos urbanísticos e competência do governo central em perspectiva comparada

um assunto ainda pouco consolidado no direito urbanístico, como é o caso dos planos urbanísticos de competência da União.

Embora as sociedades e os ordenamentos jurídicos de cada país sejam diferentes, há possibilidade de uma comparação válida com o ordenamento brasileiro, pois os países considerados adotam economias de mercado com regulação estatal e todos consideram os planos protagonistas do sistema de gestão territorial.

No sistema continental europeu, as legislações urbanísticas de alguns países são tradicionalmente estruturadas em um sistema de planos urbanísticos, como é o caso da

Ley de Régimen del Suelo y Ordenación Urbana (Espanha); Code de l’Urbanisme et de l’Habitation (França); Bundesbaugesetz (Alemanha); Lei de Bases da Política de

Ordenamento do Território e Urbanismo (Portugal).

Assim, tais legislações estabelecem a coexistência de planos de maior abrangência territorial, que fixam diretrizes a serem acatadas pelos planos de menor abrangência territorial, que são mais detalhados e minuciosos. Os planos são tipificados em lei e os governos locais não podem criar outros, distintos.

Os planos de maior amplitude são os nacionais, regionais ou setoriais, que contêm diretrizes para a elaboração de outros planos mais específicos, sem que suas regras sejam diretamente oponíveis aos particulares. Nos dizeres de Carlos Magno Miqueri da Costa “há uma hierarquia das normas dos planos, e as mesmas têm que ser articuladas para que se evitem conflitos que levem à dúvida sobre a prevalência de uma ou de outras”.142

Muito embora as administrações locais possuam competências e personalidade jurídica de direito público (descentralização), há de se ressaltar que a maioria destes países são Estados Unitários.

Em Portugal, por exemplo, foram delimitadas diretrizes gerais do sistema de planejamento territorial (Lei 48/98 – Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo), com a previsão de um programa nacional para a política de ordenamento do território e desenvolvimento urbano e de planos setoriais, especiais, regionais, intermunicipais e municipais (Decreto-Lei 380/99 – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial).

142 COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito urbanístico comparado: planejamento urbano – das

Há em Portugal um complexo planificatório sistêmico do qual emanam normatizações urbanísticas reunidas em arranjos orquestrados por objetivos comuns. No que se refere aos planos de competência do governo central pode-se afirmar que o programa nacional da política de ordenamento do território tem a responsabilidade de definir diretrizes de “organização espacial que terá em conta o sistema urbano, as redes, as infra-estruturas e os equipamentos de interesse nacional, bem como as áreas de interesse nacional em termos agrícolas, ambientais e patrimoniais”. Os planos setoriais “programam ou concretizam”, em âmbito nacional, “as políticas de desenvolvimento econômico e social com incidência espacial”, sendo consideradas como tais as decisões sobre a localização e a realização de grandes empreendimentos públicos com incidência territorial. Os planos especiais “estabelecem um meio supletivo de intervenção do Governo apto à prossecução de objetivos de interesse nacional, com repercussão espacial”. Já os planos regionais “estabelecem as orientações para o ordenamento do território regional e definem as redes regionais de infra- estruturas e transportes, constituindo o quadro de referência para a elaboração dos planos municipais de ordenamento do território”. 143

Todos os planos vinculam os entes de direito público que os elaboraram e os aprovaram, bem como aos demais que, no mínimo, estão obrigados a observá-los, sob pena de nulidade de planos ou atos que sejam incompatíveis ou que violem qualquer instrumento de gestão territorial em vigor.

Contudo, conforme aduz Carlos Magno Miqueri da Costa, “o fenômeno da vinculação direta e imediata dos particulares apenas é afeta aos planos municipais e aos especiais, pois em seu bojo são encontradas as normatizações que regem os direitos e as obrigações dos cidadãos e pessoas jurídicas de direito privado proprietários de imóveis – no que se refere ao ordenamento territorial”.144

Há aparentemente uma distinção na Espanha e na França entre o planejamento territorial (competência mais afeta aos Municípios e às comunas) e o setorial (tarefa do governo central, estado, regiões ou departamentos), muito embora tais países possuam leis de abrangência nacional que tratam da organização espacial com nítido propósito de atingir harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento espacial.

143 Ibid., p. 72-73. 144 Ibid., p. 81.

Um país que possui uma organização administrativa semelhante à nossa e que vem pondo em prática, há mais de três décadas, um sistema de ordenamento territorial bem estruturado é a República Federal da Alemanha.145

A Alemanha possui sua lei federal de ordenamento territorial desde 1965. Em 1975, a União e os estados definiram, pela primeira vez, em conjunto, um programa federal de ordenamento do território. De acordo com a legislação alemã, entende-se por ordenamento do território a coordenação e a orientação dos diferentes tipos de planejamento setorial e dos investimentos governamentais.

Para Maria Sotero “o objetivo do ordenamento territorial no país é racionalizar o processo de alocação de recursos, tanto públicos como privados, e a distribuição dos equipamentos de uso coletivo”. Acrescenta ainda a autora que “o ordenamento do território destina-se também a orientar e promover o desenvolvimento de áreas com características especiais, como as áreas de fronteira e as regiões atrasadas em relação ao padrão médio de desenvolvimento nacional”.146

O ordenamento territorial estabelece objetivos materiais concretos, que têm caráter vinculante para o planejamento das demais instâncias de governo do país (os planos elaborados por tais instâncias não podem se contrapor ao que estabelece a referida lei), servindo de parâmetro, por exemplo, para a elaboração dos planos municipais e setoriais, assim como para todas as medidas adotadas pelo setor público que tenham impacto na organização do espaço. Desse modo, antes de o governo iniciar a execução de obras federais, como, por exemplo, estradas de ferro e auto-estradas, canais, gasodutos, oleodutos e usinas nucleares, é necessário que fique demonstrada sua compatibilidade com a lei de ordenamento espacial estadual e dos demais planos setoriais já existentes nos estados.147

Na Alemanha, a União e os Estados-membros são obrigados a trocar entre si todas as informações que estejam relacionadas ao ordenamento territorial e ao planejamento econômico. Assim, os Estados elaboram seus planos e programas em consonância com o que determina a União. Ao estabelecerem suas metas de ordenamento territorial, os Municípios e os Distritos devem adaptar-se ao que estabelecem as leis de ordenamento territorial de seus respectivos Estados.

145 A estrutura administrativa da República Federal Alemã é composta pela União, os Estados-membros

(Länders), os Municípios e uma instância intermediária entre os Estados e os Municípios, chamada Landkreis, ou distrito, sem similar no Brasil.

146 DUARTE, Ana Teresa Sotero. O ordenamento territorial como base para uma nova política de

desenvolvimento regional para o semi-árido, p. 11.

A prática institucional do urbanismo brasileiro não encontra paralelo em nenhum dos países adrede analisados. Hodiernamente, ainda não possuímos um plano nacional de ordenação territorial e nem planos regionais, nos moldes instituídos pelo sistema continental europeu. Isso cria no Brasil um vácuo legislativo que os estados e os municípios não conseguem suprir com seus respectivos planos.

De uma forma ou de outra, a realidade da planificação urbanística verificada no Brasil demonstra ser incompatível a exigência de vinculação obrigatória entre os diversos degraus da planificação, não estando a aprovação de um plano de “nível inferior” vinculado à aprovação prévia ou concomitante à um plano de “nível superior” como ocorre na Alemanha.

A despeito disso, é plenamente ínsito ao ordenamento jurídico brasileiro a visão de conjunto e de integração das normas dos planos elaborados pelas diversas unidades federativas e tão bem implementadas no sistema jurídico alemão.

Há uma tendência de se operar no Brasil com planos setoriais fragmentados, em nítida demonstração de falta de entreleçamento das políticas de desenvolvimento econômico e social com as de ordenação espacial. A vinculação das obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento148à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (Resolução Recomendada n. 34, de 1º de março de 2007, expedida pelo Conselho das Cidades)149foi um dos primeiros passos na mudança desse cenário.

Isto não supre a necessidade da elaboração de um plano nacional e de planos regionais de ordenamento territorial. A Espanha, nesse sentido, possui tanto leis de abrangência nacional (que tratam da organização espacial com o nítido propósito de atingir harmonização entre políticas de desenvolvimento e planejamento espacial), como um Plano Nacional de Infraestruturas, que define programas e ações pertinentes às infraestruturas de

148 PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – consiste em um pacote de medidas do Governo Federal

que visa acelerar o crescimento econômico, aumentar a empregabilidade, melhorar as condições de vida da população, incentivar o investimento privado, aumentar o investimento público em infraestrutura, remover obstáculos (burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos) ao crescimento. Tal programa prevê, em nível nacional, a concessão de créditos para aplicação em saneamento e habitação popular, ampliação dos limites de crédito do setor público para saneamento ambiental e habitação, criação de um fundo de investimento em infraestrutura, desoneração tributária de obras de infraestrutura, elevação da harmonia e cooperação dos entes federativos no que concerne ao exercício das competências ambientais, etc. O programa em questão encontra-se estruturado da seguinte forma: PAC Energia, PAC Minha Casa Minha Vida, PAC Cidade Melhor, PAC Água e Luz para Todos e PAC Transportes. Disponível em: <htpp://www.brasil.gov.br/pac>. Acesso em: jun. 2011.

149 “Propõe orientações e diretrizes para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e a implementação do

Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, de forma a alcançar seus objetivos e promover crescimento com inclusão territorial, estimulando a ação federativa e compartilhada entre o Governo Federal, Governos Estaduais, Distrito Federal e Governos Municipais. Disponível em:<http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Resolucoes/ResolucaoRecomend

maior magnitude e de responsabilidade do Estado que não se descolam das orientações traçadas pelos planos de ordenação territorial.150

Já no Brasil, por exemplo, a elaboração e implementação do Plano Decenal de Energia não dialoga com os planos urbanísticos dos estados, das regiões e dos municípios que sofrerão os impactos das obras nele previstas.151Problemas sociais e econômicos incomensuráveis são gerados pela ausência de um plano nacional e de planos regionais que vinculem investimentos e incentivos do governo federal às diretrizes e metas de ordenação do território.152

Assim, há nítida omissão na legislação brasileira, que é a falta de normas que estabeleçam um sistema de ordenação territorial articulado com políticas setoriais de desenvolvimento econômico e social. A exigência constitucional da elaboração de tais planos tem clara inspiração no sistema continental europeu. Tal imposição constitucional deve ser concretizada no ordenamento jurídico, através da edição e implantação de leis de instituição dos planos urbanísticos em referência.