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2. A DISCRIMINAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS

2.3 Repartição de competências constitucionais

Não havendo hierarquia entre os entes federativos e para garantir-lhes autonomia, as Constituições procedem a uma repartição de competências, permitindo que mais de uma ordem jurídica incida sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas.50

A repartição de competências entre as esferas do federalismo consiste na atribuição a cada ordenamento, pela Constituição Federal, de uma matéria que lhe seja própria com o objetivo de evitar conflitos e desperdício de esforços e recursos. Desse modo, o problema que envolve o tema gira em torno de se compreender que competência cabe à União, o que é entregue aos Estados-membros e que parte é destinada aos Municípios.

A repartição de competências depende da natureza e do tipo histórico da federação. Pode-se afirmar que os Estados assumem a forma federal, tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Dessa forma, um território amplo como o brasileiro é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes.

No direito comparado, como adrede observado, as formulações constitucionais em torno da repartição de competências podem ser associadas a dois modelos básicos – o modelo clássico, vindo da Constituição norte-americana de 1787 e o modelo cooperativo, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial:

O modelo clássico conferiu à União poderes enumerados e reservou aos Estados- membros os poderes não especificados.

O chamado modelo moderno responde às contingências da crescente complexidade da vida social, exigindo ação dirigente e unificada do Estado, em especial para enfrentar crises sociais e guerras. Isso favoreceu uma dilatação dos poderes da União com nova técnica de repartição de competências, em que se discriminam

50 “(...) la competencia es la medida de la potestad que corresponde a cada órgano, siendo siempre una

determinación normativa. A traves de la norma de competencia se determina en qué medida la actividad de un órgano há de ser considerada como actividad del ente administrativo; por ello la distribución de competências entre los varios órganos de un ente constituye una operación básica de la organizacion. La competencia se determina, em consecuencia analiticamente, por las normas (no todos los órganos pueden lo mismo, porque entonces no se justificaria su pluralidad), siendo irrenunciable su ejercicio por el órgano que la tenga atribuída como propia (...)”(GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho

administrativo I. 8. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 541). Numa abordagem original sobre o conceito de

competência, Fernanda Dias Menezes de Almeida faz uma comparação com o Direito Privado, afirmando que a competência constitucional equivale à capacidade civil, ou seja, constitui-se no poder de praticar atos jurídicos (Cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 34).

competências legislativas exclusivas do poder central e também uma competência comum ou concorrente, mista, a ser explorada tanto pela União como pelos Estados-membros.51

Outra classificação dos modelos de repartição de competências cogita sobre as modalidades de repartição horizontal e de repartição vertical, conforme formulação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as quais são abordadas por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco do seguinte modo:

Na repartição horizontal não se admite concorrência de competências entre os entes federados. Esse modelo apresenta três soluções possíveis para o desafio da distribuição de poderes entre as órbitas do Estado Federal. Uma delas efetua a enumeração exaustiva da competência de cada esfera da Federação; outra, discrimina a competência da União deixando aos Estados-membros os poderes reservados (ou não enumerados); a última, discrimina os poderes dos Estados- membros, deixando o que restar para a União.

Na repartição vertical de competências realiza-se a distribuição da mesma matéria entre a União e os Estados-membros. Essa técnica, no que tange às competências legislativas, deixa para a União os temas gerais, os princípios de certos institutos, permitindo aos Estados-membros afeiçoar a legislação às suas peculiaridades locais. A técnica da legislação concorrente estabelece um verdadeiro condomínio legislativo entre União e Estados-membros. 52

Mais recentemente, contudo, pode-se identificar um modelo que caminha para a previsão de competências enumeradas também para outras entidades federativas. Ademais, tem-se a criação de uma área comum, na qual tanto pode atuar a União como os demais organismos federativos, conforme magistério de André Ramos Tavares:

Nesse campo, identifica-se uma orientação geral para estruturar a repartição de competências. Trata-se do denominado “princípio da preponderância do interesse”. Esse princípio significa, sucintamente, que à União cabe tratar das matérias de interesse geral, nacional, amplo. Aos Estados, daquelas que suscitam um interesse

51 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 800.

menor, mais regional. Por fim, aos Municípios cabe tratar das matérias de interesses restritos, especialmente locais, circunscritos a sua órbita menor.

Evidentemente que todos os interesses terão repercussão em cada uma das três esferas citadas. É por isso que se fala em “predominância” e não em “exclusividade”. Difícil ou impossível será a tarefa de sustentar uma matéria como sendo exclusivamente de âmbito nacional, regional ou local.53

A Constituição de 1988 adotou um sistema de repartição de competências complexo que as classifica em privativas e concorrentes, distribuindo-as à União, aos Estados e aos Municípios.

Pode-se afirmar que competências privativas são aquelas que “são próprias de cada entidade federativa” e concorrentes são as competências “exercitáveis conjuntamente, em parceria, pelos integrantes da Federação, segundo regras preestabelecidas”.54As competências privativas são repartidas horizontalmente e as competências concorrentes são repartidas verticalmente.55

José Afonso da Silva aponta uma diferença entre competência privativa e exclusiva. Para o autor em questão, a competência exclusiva não admite delegação para outros entes, ou mesmo suplementação, enquanto que aquela se caracteriza pela possibilidade de outras unidades federativas também cuidarem de determinada matéria, que inicialmente é atribuída a um único ente.56

Há de se ressaltar que existe, sim, competência exclusiva no ordenamento pátrio. Desse modo, a possibilidade que os Municípios têm de complementar e suplementar a legislação federal e estadual (art. 30, II, da Constituição Federal) não poderá ser exercida nos casos de competência exclusiva dos Estados-membros e da União, bem como os Estados- membros não podem suplementar a legislação federal, quando houver competência exclusiva de tal ente, vez que a competência concorrente dos Municípios e dos próprios Estados- membros não tem cabimento em toda e qualquer hipótese, mas apenas naqueles casos em que houver interesse local ou regional (predominância do interesse).

Seguindo o exemplo apresentado por Rafael Augusto Silva Domingues, pode-se indicar como hipótese de competência exclusiva da União a emissão de moeda (art. 21, VII). Cabe destacar que os Municípios não podem suplementar a legislação federal nessa

53 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1093. 54 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988, p. 78 e 129. 55 Ibid., p. 74.

situação, ante a evidente ausência de interesse local pelo assunto. De outra banda, o autor em questão indica que o Município poderá complementar ou suplementar a legislação federal em outras matérias como, por exemplo, desenvolvimento urbano, saneamento básico e transporte público (art. 21, XX), assuntos que tocam diretamente aos Municípios.57

Pode-se afirmar que os Estados-membros e os Municípios também têm competência exclusiva, resultado da capacidade de auto-organização, autolegislação, autogoverno e auto-administração. Assim, o princípio federativo assegura-lhes autonomia para tratar de questões referentes a bens públicos, processo administrativo, servidor público estatutário, com exclusão da atuação de qualquer outro ente federativo.

De outro turno, há que se distinguir entre a repartição de competência legislativa (poder de editar leis) e a repartição de competência administrativa (ou executiva).

Dentro da estrutura constitucional, a competência legislativa deve existir para todos os entes federativos, havendo uma repartição estabelecida segundo o critério “horizontal”. Assim, há competências privativas expressas à União (art. 22) e aos Municípios (art. 30). Os Estados, além das competências expressas atribuídas pelos §§ 2º e 3º, do art. 25, ficam com as competências residuais.

Por outro lado, existe uma repartição vertical, na qual se atribui o trato da mesma matéria a mais de um ente federativo (art. 23 e art. 24, §§ 1º, 2º, 3º e 4º). Nessa linha, ocorre a permissão para que mais de um ente cuide da mesma matéria estabelecendo limites de atuação para cada um deles (competência concorrente), ou permitindo que todos eles exerçam simultânea e integralmente sua competência (competência comum).

Com efeito, há uma competência concorrente deferida à União, quanto à edição de normas gerais58, resguardando aos Estados-membros sua suplementação (editando norma especial ou suprindo a omissão da União). Nesse sentido, verifica-se que o art. 30, II, da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.

57 Cf. DOMINGUES, Rafael Augusto Silva. A competência dos estados-membros no direito urbanístico –

limites da autonomia municipal, p. 95-99.

58 Segundo Hely Lopes Meirelles “norma geral é a que estabelece princípios ou diretrizes gerais de ação e se

aplica indiscriminadamente a todo o território nacional” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito urbanístico: competências legislativas. Revista de Direito Público, n. 73, p. 98). Para Lúcia Valle Figueiredo “As normas gerais serão constitucionais se e na medida em que não invadam a autonomia dos entes federativos, com particularizações indevidas” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Discriminação constitucional das competências ambientais. Aspectos pontuais do regime jurídico das licenças ambientais. Direito ambiental: fundamentos do

direito ambiental. (Org.) Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

Sobre o tema, merece registro a observação feita por Daniela Campos Libório Di Sarno:

(...) a própria Constituição Federal, em seu texto, enumera taxativamente as competências da União e adota um sistema dinâmico e exemplificativo para as competências dos outros entes federativos. Isto porque a Constituição Federal, além de ser o Texto Jurídico supremo de nosso país, exerce a função de Constituição da União Federal, assim como as Constituições dos Estados e as Leis Orgânicas para os Municípios.

Daquilo que não estiver explícito como sendo de competência da União caberá aos Estados-membros, Distrito Federal e/ou Municípios exercê-los. Esta equação poderia se resolver com razoável tranqüilidade fosse o texto constitucional dotado de rigor técnico inquestionável. Não é o que ocorre. Competências privativas e exclusivas ora se equivalem, ora se distanciam e mesclam-se com as reservadas. Concorrentes, complementares e suplementares também são competências de difícil delimitação na forma como se apresentam. Resta a verificação caso a caso, tentando preservar algum critério norteador para esta interpretação de definição de competências constitucionais. 59

A competência administrativa é, em princípio, correlata à competência legislativa. Assim, quem tem competência para legislar sobre uma matéria tem competência para exercer a função administrativa quanto a ela.60

O art. 21 da Constituição Federal dispõe sobre a competência geral da União, que é consideravelmente ampla, abrangendo temas que envolvem desde o exercício de poderes de soberano, bem como questões que transcendem interesses regionais e locais.

No entanto, para a defesa e o fomento de certos interesses, o constituinte desejou que se combinassem os esforços de todos os entes federais, conforme se nota no art. 23 da Constituição Federal, havendo um campo comum no plano administrativo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

A propósito, a Lei Fundamental prevê, no parágrafo único do art. 23, a edição de leis complementares federais, que disciplinarão a cooperação entre os entes para a

59 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Competências urbanísticas. DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ,

Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 63.

60 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo:

realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios.61

Por fim, é necessário ressaltar que cada ente federativo retira sua competência diretamente da Constituição Federal e não de normas infraconstitucionais, de modo que as disposições encartadas no Estatuto da Cidade sobre o tema (art. 3º) acrescentam muito pouco à análise das competências em direito urbanístico.

2.4 As competências urbanísticas

A ideia de que a problemática do urbanismo é um espaço aberto à intervenção concorrente e concertada de todos os entes federativos veio reconhecida na Constituição Federal de 1988, especialmente ao distribuir competências urbanísticas entre todas as esferas de governo.

Na realidade, o próprio conceito de federalismo reclama um mínimo de colaboração, existindo, em maior ou menor grau, instâncias de poder que trabalham juntas em qualquer Estado organizado como federação.

No que diz respeito à matéria urbanística, a Constituição de 1988 inovou ao disciplinar expressamente as competências legislativas, ao contrário dos regimes constitucionais anteriores, em que tais competências eram decorrentes dos poderes implícitos reconhecidos à União, dos poderes reservados dos Estados ou da competência dos Municípios para dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse.62

Identificam-se no texto constitucional normas de competência legislativa e material com implicações diretas na atividade urbanística. Há de se enfatizar que a política urbana, apesar de ser executada pelo Poder Público municipal, possui dimensões nacional, regional e local, e, portanto, uma concorrência de atribuições e competências entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Enfatiza-se que a própria Lei Fundamental estabelece formas e arranjos para possibilitar a inter-relação e a colaboração das unidades federativas na elaboração e implementação de políticas urbanas.

61 A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes

federativos em matéria ambiental.

62 Cf. BATISTELA, Marcos Geraldo. Coexistência de planos territoriais no Brasil. São Paulo, 2005.