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4. OS PLANOS URBANÍSTICOS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO

4.6 A relação dos planos urbanísticos da União com os demais planos urbanísticos

A questão que envolve a competência em matéria urbanística obviamente apresenta reflexos na prerrogativa dos entes federativos de elaborar planos de ordenamento territorial, sendo que a relação que se dá entre os planos é um dos assuntos mais complexos do direito urbanístico, vez que num mesmo território podem coexistir, todos válidos e eficazes, diversos planos.

A relação entre as normas dos planos territoriais pode resultar em harmonização ou em conflito, tendo como causas específicas a existência de diversos tipos de planos que se sobrepõem territorialmente, a competência dos diversos entes federativos, bem como a eventual ausência, no ordenamento jurídico urbanístico, de uma relação de necessidade entre os planos.164

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o modelo de planejamento territorial existente no Brasil parte da definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo o território, o que se visualiza, especialmente, naquilo que é preconizado como característica do plano nacional e dos planos regionais de ordenamento.

É o que enfatiza José Afonso da Silva:

Com base na Constituição de 1988, já se pode falar na implantação de um sistema de planos estruturais, porque ela fundamenta a construção de um sistema de planos urbanísticos hierarquicamente vinculados, de modo que os de nível superior sirvam de normas gerais e diretrizes para os inferiores, enquanto estes concretizem, no plano prático e efetivo, as transformações da realidade urbana, em vista de objetivos predeterminados. A questão estará em que a lei federal de desenvolvimento urbano busque instituir regras de aplicação das normas constitucionais que assegurem o equilíbrio das três esferas governamentais autônomas que compõem nossa Federação.165

Por certo, a expressão “hierarquia” utilizada pelo referido autor não se enquadra perfeitamente no quadro da relação que haverá de existir entre os planos urbanísticos, vez que cada uma das unidades federativas possui competências discriminadas constitucionalmente, sem que haja dependência normativa entre seus planos. Assim, não

164 Cf. CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo, p. 496. 165 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 106.

existe relação de dependência entre o plano diretor (do qual dependem todos os planos urbanísticos municipais) e os planos urbanísticos de competência da União e dos Estados.

Na atual Constituição, a prerrogativa da União de promover o planejamento urbanístico vem respaldada no art. 24, I e § 1º, que lhe estabelece a competência de legislar sobre normas gerais de direito urbanístico. Igual apoio encontra a competência suplementar dos Estados para legislar sobre direito urbanístico em âmbito estadual ou microrregional.166

Vale destacar aqui que o conceito de normas gerais consiste em dizer, em apertada síntese, que são normas que estabelecem as diretrizes, os princípios básicos que devem reger determinada matéria, sem descer aos pormenores.167

Há de se acrescentar que as competências urbanísticas da União encontram limites na competência reservada aos Municípios quanto a legislar sobre assuntos de interesse local e promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, assim como ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, ao executar a política de desenvolvimento urbano (CF, art. 30, I e VIII e art. 182).

Assim, José Afonso da Silva ensina:

Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, a competência da União e do Estado esbarra na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado.168

Não há duvida, portanto, que aquilo que for predominantemente de interesse local constitui um limite intransponível para a União, que deve se limitar a legislar sobre planejamento urbanístico em nível nacional e macrorregional, evitando atuação de efeitos

166 A competência de dispor de forma suplementar sobre a matéria urbanística é que confere aos Estados a

prerrogativa de estabelecer normas de coordenação dos planos urbanísticos no nível de suas regiões.

167 Odete Medauar atribui à expressão “diretrizes” o sentido de “linhas reguladoras, instruções ou indicações;

linhas básicas; balizas; esquemas gerais. Transposto para a fonte legislativa significa preceitos indicadores, preceitos que fixam esquemas gerais, linhas básicas em determinadas matérias; preceitos norteadores da efetivação de uma política. (...) As leis de diretrizes contêm, de regra, objetivos, princípios (nem sempre o termo é usado na acepção técnico-jurídica), indicadores para a elaboração de textos normativos daí decorrentes e para as práticas administrativas” (Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10.07.2001: comentários. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 20).

diretos e concretos intra-urbana. De outra banda, quando se fala em direito urbanístico, reza- nos a Constituição que a atuação conjunta, principalmente envolvendo a União e o Município, torna-se especialmente relevante na medida em que o ente local deve observar diretrizes de ordem geral e nacional ao elaborar seus próprios estatutos.

É o que destaca Mariana Novis:

Contudo, não é demais repetir: a precípua função que exerce o município em matéria urbanística não elide a atuação legislativa proveniente de outros entes governamentais. Excepcionalmente, no que toca à ordenação territorial, pode-se vislumbrar situações que demandem até mesmo o sacrifício de interesses locais em benefício do interesse de abrangência maior, seja de índole estadual ou federal, no campo ora tratado, desde que atendidos os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, motivação, entre outros. Mas, em geral, os entes federados devem sempre almejar a compatibilidade dos múltiplos interesses envolvidos na matéria, como, aliás, impõe a máxima norteadora do exercício das competências de caráter comum e concorrente.169

Como já enfatizado, a complexidade do tema ainda recebe a contribuição da ausência de dependência ou necessidade entre os planos, por ser possível a elaboração de um plano de menor abrangência territorial e com disposições diretamente vinculantes aos particulares (como ocorre com o plano diretor), sem que existam, previamente aprovados, os planos nacional, regionais e estaduais de ordenação do território, cuja superveniência é uma fonte potencial de conflitos normativos.

Aliás, no direito urbanístico, a relação de dependência entre os planos é apenas parcial e existe somente para aqueles que obtêm seu fundamento de validade no plano diretor, como é o caso, por exemplo, dos planos de operação urbana consorciada.

Mas, então, os critérios tradicionalmente apontados pela doutrina como de resolução de conflitos de normas são aplicáveis nos casos dos planos?

Segundo Marcos Geraldo Batistela, que se dedicou exclusivamente ao tema na elaboração da sua dissertação de mestrado, os conflitos, as antinomias ou as colisões entre os planos podem ser solucionados pelos critérios tradicionais de resolução de conflitos normativos e no âmbito das regras de competência. É o que ele explica:

Podem ser pensadas, então, as diferentes relações que existem entre os planos ou formas de ordenação territorial (aquelas que ainda não lograram alcançar a forma superior de plano) e previstas as soluções para as possíveis antinomias. Os eventuais conflitos podem ocorrer entre planos instituídos por um mesmo ou por diferentes centros de competências. Para estes, o critério decisivo é a aplicação da regra de competência, prevalecendo o plano elaborado pelo ente planejador competente. Para os planos elaborados por um mesmo centro de competências, aplicam-se os critérios tradicionais de solução de antinomias, especialmente o critério da hierarquia.170

Na realidade, o que se tem no Brasil, de forma ainda incipiente, é um modelo de planejamento territorial “descendente” ou em “cascata”, ou seja, que parte da definição de certos princípios e diretrizes gerais válidos para todo o território, que devem orientar os demais entes federativos na elaboração dos seus planos de ordenação espacial, sem que, necessariamente, haja uma relação de subordinação ou dependência entre eles.

Nessa linha, no que diz respeito ao plano nacional de ordenação do território, pode-se afirmar que a disposição constitucionalmente prevista no inciso I, do art. 24 c/c o § 1º do mesmo dispositivo (competência concorrente da União para legislar sobre direito urbanístico), permite a conclusão de que tal plano deve tratar essencialmente de diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano do país, que, por si só, não produzirá efeitos que vinculem os particulares.

A par disso, por ser norma com característica de lei nacional, suas determinações orientarão especificamente a atuação dos órgãos e das entidades administrativas federais, estaduais e municipais no desempenho de suas atividades urbanísticas, respeitando, obviamente, as fronteiras que incidem sobre o exercício das competências dos demais entes.

Sobre o assunto, vale a pena citar, mais uma vez, Marcos Geraldo Batistela:

Assim, ainda que um plano nacional possa conter disposições específicas vinculantes para a administração pública federal, não pode estabelecer diretamente o ordenamento territorial do Município (controle e planejamento do solo, da ocupação do solo urbano) ou o planejamento de regiões metropolitanas,

aglomerações urbanas e microrregiões, que são assuntos de competência dos Municípios e dos Estados.171

Os planos regionais de ordenação do território apresentam-se igualmente como planos de diretrizes e objetivos gerais. Da mesma forma que o plano nacional de ordenação do território, suas disposições dirigem-se aos demais entes planejadores, Estados e Municípios, sem atingir diretamente os particulares. Desse modo, têm primordialmente efeito diretivo e indutivo no setor privado.

Antes de analisar a relação dos planos setoriais da União com os planos dos demais entes federativos, cabe lembrar a diferenciação feita por José Afonso da Silva acerca dos planos gerais e dos planos especiais (particularizados ou pormenorizados).

Nesse sentido, o autor em questão destaca que os planos gerais são menos vinculantes em relação aos particulares, “porque são de caráter mais normativo e dependentes de instrumentos ulteriores de concreção”, enquanto que os especiais “vinculam mais concretamente a atividade dos particulares, mesmo nos regimes de economia de mercado”.172

Para Marcos Geraldo Batistela, o plano geral tem como fim o estabelecimento de um ordenamento integral do seu objeto, enquanto o plano setorial tem a finalidade de programação ou concretização de determinado aspecto de um objeto globalmente considerado. Assim, para o autor, “se o objeto considerado é o território de um município, plano geral é o plano diretor municipal e planos setoriais são os planos sobre transportes, saneamento, coleta e disposição de lixo, turismo, habitação, localização e realização de grandes empreendimento públicos”. 173

Assim, quanto aos planos urbanísticos setoriais da União, cumpre rememorar que a Constituição de 1988 delimitou a tal ente competências administrativas privativas e comuns, além de competências privativas e concorrentes no âmbito legislativo.

Nesse diapasão, por exemplo, a atribuição de poderes materiais para a União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (CF, art. 21, XVIII), implica possibilidade de a União esgotar totalmente a matéria, impondo normas gerais e igualmente normas específicas em eventuais planos, muito embora os Municípios possam suplementar a legislação federal diante de um interesse local (CF, art. 30, I e II).

171 Ibid., p. 49.

172Cf. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 93.

O mesmo raciocínio aplica-se à competência privativa da União para legislar sobre alguns assuntos de interesses urbanísticos, como por exemplo, os referentes às matérias de trânsito e transporte (CF, art. 22, XI), nas quais a União pode esgotar o tratamento da matéria em normas de determinado plano, a despeito da possibilidade conferida aos Municípios de suplementá-las, desde que presente o interesse local, o que pode ocorrer numa definição do destino de vias públicas, de locais de estacionamento ou em outras situações que envolvam peculiaridades do ente federativo local.

Nas matérias indicadas na competência comum (CF, art. 23), todos os entes federativos podem praticar atos simultaneamente, inclusive esgotando integralmente, ou não, a disciplina da matéria. Nestes casos, mais do que nunca, a articulação dos planos torna-se necessária, sendo para tanto imprescindível a edição de leis complementares que estabeleçam normas de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, conforme exigência prevista no parágrafo único, do art. 23 da Constituição Federal. 174

Já no art. 24 da Constituição Federal tem-se a chamada “competência concorrente” da União e dos Estados-membros para legislarem sobre as matérias nele indicadas. É possível apontar as questões elencadas nos incisos VI, VII e VIII, do referido dispositivo como de especial interesse urbanístico, em que a União deve se liminar a estabelecer normas gerais, restando aos Estados a possibilidade de fixar normas específicas sobre tais matérias, bem como de detalhar as normas federais existentes.

174 A Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, fixa diretrizes para a cooperação entre os entes

5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO DEVER DE A UNIÃO ELABORAR E